sábado, 26 de julho de 2014

Nossos ossos

Minha cama fica no centro do quarto e, em cima de mim, no escuro, um foco não me deixa pregar os olhos, é quente e intenso, como se uma plateia toda esperasse eu me levantar e fazer algo, rápido, essa tragédia não poderia ficar como está.
Eu sei que se eu vestir a roupa, colocar o blazer, usar as palavras certas, eu consigo o que eu quero, sim, saber notícias do menino assassinado, dar um jeito de avisar seus pais, arranjarei o endereço, aliviarei esse puxão de unha no peito, meu gato, Picasso, me alerta que eu me esqueci, mais uma vez, de tomar os remédios.
Eu ensaio, olha, é o seguinte, deu entrada no IML um rapaz bem moreno, assim, assado, eu gostaria de saber o que eu faço para levar o corpo do garoto embora, se for preciso eu pago, e apelo, desse jeito não, seria, no mínimo, escroto, pegaria mal qualquer insinuação de suborno.
Melhor falar a verdade, então, ele era meu namorado, um caso que eu tive, um rapaz inteligente, sabe, tipo um filho mais novo que eu resolvi tirar da rua, dessa vida prostituta, sem saída, sem alternativa, mas aí aconteceu o pior, essa merda de cidade, cada vez mais impossível, será que ele tinha inimigos, reflito e me calo, o que eu quero é que ele descanse em paz, por isso vim aqui ao IML, acredite, vim para salvá-lo.
Meu Cristo, ridículo é ficar aqui decorando o texto, desse jeito nada sairá do lugar, o melhor será eu me apressar, ir pessoalmente ao IML,tenho confiança de que muito ajudará essa minha postura digna, até romântica, esse meu ar professoral, essa minha cara de intelectual de branco europeu, mesmo não acreditando em Deus passei a acreditar, Ele há de me entender e perdoar.

Nossos ossos mostra o drama de Heleno, hoje dramaturgo famoso, vivendo em São Paulo. Partira de Recife em busca de Carlos, um ator por quem estivera apaixonado e que se mudara antes para a capital paulista. A história de amor não deu certo e Heleno caiu na vida, transando anonimamente com michês no Largo do Arouche e na Estação da Luz, contraindo HIV. Um dia sabe que um boy com quem tivera um caso esporádico fora assassinado brutalmente por dois motociclistas homofóbicos e estava no IML à espera de familiares que não sabiam do paradeiro do filho, que também partira de Pernambuco para tentar uma vida melhor em São Paulo.  Heleno decide encerrar desse jeito sua história em São Paulo, enfrentando dois mil e tantos quilômetros até o Recife, atravessando o Brasil em um carro funerário, levando, para seu último descanso o corpo desse garoto de programa com quem ele havia trepado uma história, digamos, de amizade. Essa viagem também  é a história de seu próprio corpo que  leva para morrer na terra onde viveu sua infância, buscando resgatar o conforto derradeiro junto à família.  É uma narrativa curta, comovente.

Marcelino Freire (1967) é pernambucano e vive em São Paulo. Contista, esse é seu primeiro romance.
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Marcelino Freire. Nossos ossos. Rio, Record, 2013, 128 pp, R$ 28,00

domingo, 20 de julho de 2014

Encrenca

Eu me lembrava do Invetral 2.500 sempre que contava para mim mesmo como havia sido a farra no hospital, relação hospital-remédio mais que uma relação com o rótulo vermelho do Invetral 2.500?, eu não sabia, o vidro de Invetral 2.500 eu havia deixado no carro, talvez fosse hora, decidi pagar a conta (do bar) e ir até o carro, naquele momento um sujeito de óculos de uma lente escura e uma clara aproximou-se do balcão, parou ao meu lado, fez um pedido e enquanto esperava ser servido virou-se para mim e perguntou: posso fazer uma pergunta?
Demorei para dizer alguma coisa porque fixei as minhas atenções nos óculos dele, a primeira impressão era que o sujeito não teria necessidade de usar óculos com uma lente escura e uma clara, a primeira impressão foi que ele chamaria a atenção mesmo sem óculos com lentes diferentes, talvez eu tenha imaginado o sujeito sem óculos com lentes diferentes, talvez eu tenha imaginado o sujeito sem óculos com um olho escuro e um claro, pode ter sido, pode não ter sido, passou algum tempo e o sujeito sentiu demora ou hesitação, e repetiu a pergunta: posso  fazer uma pergunta?
Depois que ele repetiu a pergunta, fiz uma pergunta para mim mesmo: por que alguém pergunta se pode fazer uma pergunta?, porque duas perguntas em vez de uma?, cogitei perguntar para ele se poderia fazer uma pergunta e perguntar sobre os óculos com lentes diferentes, novamente demora ou hesitação, o sujeito repetiu a pergunta: posso fazer uma pergunta?
Achei melhor responder logo porque minhas reflexões sobre perguntas estavam sendo interrompidas pelas perguntas dele e isto poderia acabar me irritando, eu me lembrava de que naquele momento emiti um sorriso porque considerei engraçado o que eu havia pensado, ele percebeu o sorriso, deve ter creditado o sorriso a uma tentativa minha de ser simpático, sorriu também e repetiu a pergunta: posso fazer uma pergunta?
Pode sim, pode, é claro que pode, é evidente, fui repetindo, e ele tendo recebido a resposta da primeira pergunta não fez o esperado, a segunda pergunta, em vez dela fez um comentário, uma introdução à segunda pergunta, a segunda pergunta tinha uma introdução, eu pensei, deveria ter imaginado, eu pensei, então ele fez a introdução à segunda pergunta: é uma velha mania.
Eu me lembrava de que a frase me pareceu mesmo como uma introdução à segunda pergunta, introdução como preparação para alguma coisa que poderia me surpreender?, ele acreditava que a segunda pergunta me surpreenderia?, a segunda pergunta me surpreenderia mais que os óculos dele?, então ele fez a segunda pergunta.
Que horas são?, ele disse.

Ao ler Encrenca, de Manoel Carlos Karam, achamos que compreendemos tudo, mas acabamos vendo que tudo acontece sem acontecer : as frases contêm uma expectativa que não se concretiza nunca. O absurdo aparece como se fosse uma coisa natural. Encrenca começa e termina no nada. O estranho é real, numa prosa bem humorada e aparentemente sem pé nem cabeça que poderá causar um desconforto no leitor desacostumado com a prosa engenhosamente elaborada, com um pé no absurdo. Mas não se trata de uma prosa difícil. Ela prende o leitor desde o início. É impossível passar por suas páginas sem dar algumas gargalhadas, devido ao humor refinado de Karam.

Manoel Carlos Karam (1947/2007) é quase desconhecido do público leitor. Era catarinense radicado em Curitiba. Há quem disse que a literatura de Karam faz um bem danado para as ideias.  Encrenca funciona como um drinque delicioso para atiçar a inteligência. Adorei!
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Manoel Carlos Karam. Encrenca.  SP, Ateliê /Imprensa Of. do Paraná, 2002, 160 pp., R$ 34,00

domingo, 13 de julho de 2014

O círculo trágico tebano

A tragédia de Édipo foi motivada pelo pai dele, Laio, que era filho de Labdaco, rei de Tebas. Era criança quando o pai morreu e o reino foi entregue a Lico que, mais tarde, foi morto por usurpadores do trono, fazendo com que  Laio fugisse para a Frígia, com medo de ser morto. Lá, tomou-se de amores pelo jovem Crisipo, filho do rei, raptando-o. O jovem, temendo a reação do pai, suicida-se. O rei, com a ajuda dos deuses, amaldiçoou Laio e todos seus descendentes. Mais tarde, Laio é chamado a Tebas para retomar o trono da cidade e casa-se com Jocasta.  Ele temia ter um filho homem, pois o oráculo lhe predisse que seria morto por seu filho. Mas, nasceu Édipo. O rei mandou que abandonassem o filho num monte. Alguns pastores o encontraram,  com os pés inchados. Por isso,  chamaram-no de Édipo (= de pés inchados) e levaram-no a Corinto, onde foi criado como filho dos reis.  Já adulto, Édipo ouviu de um cidadão coríntio insinuações sobre sua origem. Ele consultou o oráculo de Delfos, que lhe revelou que mataria o pai e casaria com a própria mãe. Pensando tratar-se dos pais que o criaram, abandonou Corinto. Durante sua trajetória errante, quase foi atropelado por uma carruagem em um desfiladeiro. Insultado, matou o desconhecido, Laio. Estava assim cumprida a primeira parte da profecia. Na entrada de Tebas, encontrou-se com a Esfinge, que lhe propôs um enigma. Se errasse, seria devorado pelo monstro. Mas Édipo decifrou o enigma e a Esfinge, desesperada, jogou-se no abismo. Como reconhecimento de sua proeza, Creonte, o rei de Tebas, lhe passou o trono e Édipo casou-se com a rainha viúva, Jocasta, sua mãe. É a segunda parte da profecia. Dessa relação incestuosa nasceram Etéocles, Polinice, Antígona e Ismena.  Depois de algum tempo de reinado feliz, abateu-se uma epidemia na cidade e Édipo dirigiu-se novamente ao oráculo, que lhe disse que a peste só seria dizimada quando o matador de Laio fosse expulso de Tebas. Aí começa o enredo de Édipo Rei, de Sófocles. Édipo empenha-se em encontrar o assassino. Consulta o adivinho Tirésias, que lhe faz sérias revelações e Édipo acaba descobrindo a verdade. Jocasta, envergonhada, enforca-se. Édipo fura os próprios olhos, é expulso de Tebas e passa a vagar errante, acompanhado de sua filha Antígona.
Sófocles deu continuidade ao ciclo trágico tebano que forma a trilogia que engloba, além de Édipo-Rei,  Édipo em Colono e Antígona.

Em Édipo em Colono a ação inicia, quando Édipo cego chega ao lugar onde findariam suas provações.  Pede a Teseu, rei de Atenas, que o acolha naquele lugar, em troca de impedir qualquer agressão que venha de Tebas. Ismena vem juntar-se ao pai e a Antígona. Etéocles, filho de Édipo, havia assumido o trono de Tebas e Creonte, irmão de Jocasta,  informado de que a terra onde fosse enterrado o corpo do infeliz cunhado seria abençoada pelos deuses, aparece em Colono para buscá-lo. Teseu se opõe à mudança e Creonte ameaça Atenas com uma guerra. Em seguida aparece Polinices, que preparava uma expedição contra Tebas, cujo trono era ocupado pelo irmão e contava com a ajuda do pai para a conquista. Diante da recusa de Édipo, que reitera a profecia de que os dois irmãos se matariam um ao outro, Polinices, mesmo assim, parte para o combate e pede a Antígona que, se voltasse a Tebas e ele tivesse morrido, lhe desse uma sepultura digna. Édipo morre em Colono, em local misterioso. Bem, os irmãos se matam um ao outro, Etéocles recebe pompas fúnebres, enquanto Polinices apodrecerá sem ser enterrado, segundo as ordens de Creonte.  A luta de Antígona para enterrar seu irmão é o mote da terceira peça da trilogia, Antígona. O tema da peça é o choque do direito natural, defendido pela heroína, com o direito impositivo de Creonte.

Eurípedes escreveu uma peça, abordando o mito de Édipo: As Fenícias passa-se em Tebas, quando Édipo ainda lá estava cego. Segundo a versão de Eurípedes, Jocasta está viva e sabe que seus dois filhos vão se enfrentar em combate e tenta demovê-los da decisão, o que não acontece.
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Sófocles.Trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. 9ª ed.,Zahar, 2001, 264 pp, R$ 54,90

domingo, 6 de julho de 2014

Medeia

Caro leitor, queres ganhar Terras do sem fim novinho? Escreve pra mim, manifestando o interesse. Esse é um de outros livros que pretendo brindar a meus leitores. Leitor compulsivo, acabo comprando exemplares duplicados.

Crisômalos ou tosão de ouro ou velocino de ouro eram denominações que os antigos gregos davam a um carneiro com pêlo de ouro que nadava, voava e corria melhor que qualquer outro animal. Transportou Frixo e Hele sua irmã para o Oriente, para fugir da madrasta que os queria sacrificar a Zeus. Frixo sacrificou o carneiro a Zeus e ofereceu a pele a Eetes, rei da Cólquida (hoje República da Georgia) . Enquanto isso, no reino de Iolcos, na Grécia, Pélias havia usurpado o trono de seu meio-irmão Eseu, pai de Jasão. Mais tarde, adulto, Jasão reclama o trono e Pélias lhe propõe trazer da Cólquida o velocino de ouro em troca do trono. Jasão e um grupo de grandes heróis a bordo do navio Argos partiram em busca do velocino de ouros. Eram os argonautas: Jasão, Teseu, Hércules, Orfeu, Castor e Pólux, entre outros. Após muitas peripécias perigosas, alguns deles chegam finalmente à Cólquida. O rei Eetes, que era pai de Medeia, impõe a Jasão uma série de tarefas dificílimas que consegue vencer, contando muito com a ajuda de Medeia, que era feiticeira.  Jasão consegue, finalmente, apossar-se da pele preciosa, inciando a viagem de volta, trazendo consigo Medeia, que se apaixonara por ele. Para que não fossem perseguidos, Medeia mata seu irmão. Ao chegarem a Iolcos, Medeia mata Pelias, para vingar o castigo que ele havia imposto a Jasão, com a busca do carneiro de ouro.  Medeia e Jasão são expulsos e fogem para Corinto. Os dois têm dois filhos. Depois de tempos,Jasão apaixona-se pela filha do rei Creonte, Creusa. Sentindo-se traída e abandonada, Medeia joga sua ira contra Jasão e a noiva. Aí começa a tragédia Medeia, de Eurípedes, quando ela transforma o amor por Jasão em ódio sobre-humano. Outra humilhação lhe é imposta por Creonte, a expulsão da feiticeira e de seus filhos de Corinto, com medo de seus poderes extraordinários. Medeia, humilhada e confiante em seus poderes mágicos decide se vingar de Jasão por todos os meios possíveis e em tudo o que puder feri-lo. Durante a peça, o abatimento pelo repúdio do marido vai se transformando em desejo terrível de vingança e extermínio: Medeia planeja e executa a morte da jovem noiva e dos filhos de Jasão, deixando-o abandonado e mergulhado em uma dor profunda. E ainda foge impune no carro de Apolo. Essa solução inesperada, improvável e mirabolante para terminar uma obra de ficção ou drama é conhecida como deus ex machina. Este dispositivo é na verdade uma invenção grega. No teatro grego havia muitas peças que terminavam com um deus sendo, metaforicamente, baixado por um guindaste até o local da encenação. Esse deus então amarrava todas as pontas soltas da história.
A primeira encenação de Medeia teria sido em 431 a.C, mas continua sendo encenada até  hoje pelo mundo todo, graças à atualidade de seu argumento.  O texto apresenta uma intensidade dramática e o delineamento dos personagens através das falas impecáveis.  O momento da conciliação simulada que Medeia tem com Jasão, assim como o solilóquio em que se reflete sua indecisão quanto a matar ou não os filhos, fazem de Medeia um dos mais finos e profundos estudos que um autor fez da alma humana feminina, conforme nos diz Mario da Gama Kury, tradutor dedicado do teatro grego antigo.
Existe uma edição de Medeia traduzida por Trajano Vieira por 39 reais, livro novo. É possível garimpar nos sebos o Teatro de Eurípedes com as peças Hipólito, Medeia e As Troianas, com tradução de Mario da Gama Kury (é a que eu tenho) por um preço médio de 28 reais. Chico Buarque e Paulo Pontes adaptaram Media para o teatro, com Gota d'água, na  atuação impecável de Bibi Ferreira. A peça aconteceu no Teatro Leopoldina (depois Teatro da Ospa, na Av. Independência), lá por 1980. Alguém assistiu?
                                                paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Eurípedes. Teatro de Eurípedes: Hipólito, Medeia, As Troianas. Rio, 
Civilização Brasileira/Mec, 1977, 276 pp.