domingo, 23 de dezembro de 2012

O ano da morte de Ricardo Reis


Eu tentava gostar de José Saramago algumas vezes, mas implicava sempre com sua sintaxe meio endurecida. Sentia falta de poesia em sua prosa, dádiva da linguagem ficcional. Seu texto me ecoa sem emoção, com objetividade quase total. O evangelho segundo Jesus Cristo não me agradou, larguei após a leitura de uma dezena de páginas. Ensaio sobre a cegueira eu gostei, havia certo dinamismo na ação. Ensaio sobre a lucidez eu li todo. Mas não gostei. Vi na tevê uma entrevista com a patrona de uma das feiras do livro de Porto Alegre, Jane Tutikian, em que ela dizia não gostar dos livros de Saramago pós-Prêmio Nobel. Mas afirmava gostar de sua fase anterior, com livros como O ano da morte de Ricardo Reis, que decidi ler, para ver se me penitenciava do ranço ao autor.
Ricardo Reis é um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Segundo o poeta, teria nascido no Porto em 1887, estudado em colégio jesuíta e formado em medicina. Monárquico, auto-exilou-se no Brasil desde 1917.  Solteiro, evitava se apaixonar para não ter de sofrer. Aceitava, ainda as limitações e a fatalidade da condição humana. Latinista, de formação clássica, Ricardo Reis escrevia odes, buscando a serenidade da alma, sem medo de enfrentar a morte, vivendo cada instante como se fosse único, fugindo à dor, posto  que a razão sobrepunha-se sempre à emoção. Apresenta, em sua linguagem poética culta e precisa, muitas alusões à mitologia, em geral rica de ideias, com um caráter moralista.
Fernando Pessoa não nos informa a data da morte de Ricardo Reis. Isso serviu de pretexto para Saramago criar seu romance, com a volta de Ricardo Reis à Lisboa, em 1935, ano em que Fernando Pessoa faleceu. Sua morte ocorre em 1936, quando os sonhos monárquicos estão já enterrados e Salazar toma o poder, mergulhando Portugal numa ditadura fascista por 48 anos, até sua extinção em 1978, com a Revolução dos Cravos. Em toda sua vida, o Ricardo Reis de Saramago nunca assistira a um comício político. A causa dessa cultivada ignorância estaria nas particularidades do seu temperamento, na educação que recebeu, nos gostos clássicos com que se identificou, num certo pudor, também. Mas o alarido nacional, a guerra civil portuguesa, acordam-lhe no espírito uma pequenina chama de curiosidade.
A pedra no caminho da leitura do romance consistiu na separação do Ricardo Reis de Fernando Pessoa para o Ricardo Reis de Saramago. Durante toda a narrativa, eu cobrava uma prosa poética que não existiu, o Reis de Saramago pouco fala de sua poesia. O personagem de Saramago é um cidadão que vale pela profissão de médico, não de poeta. Ricardo Reis de Saramago tem relações afetivas não assumidas por diferenças de classe social e de cultura com a criada Lidia, de quem vai ter um filho. Também se interessa por Marcenda, uma jovem burguesa com deficiência física em um dos braços, mas a relação não se concretiza. Ricardo Reis dialoga com o espírito de seu criador, Fernando Pessoa, com quem tem digressões político-filosóficas.

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José Saramago. O ano da morte de Ricardo Reis. SP, Cia. Das Letras, 2011, 474 pp. R$ 59,00

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