Eu tentava gostar de José Saramago algumas vezes, mas implicava sempre com sua sintaxe meio endurecida. Sentia falta de poesia em sua
prosa, dádiva da linguagem ficcional. Seu texto me ecoa sem emoção, com objetividade quase total. O evangelho segundo Jesus Cristo não me
agradou, larguei após a leitura de uma dezena de páginas. Ensaio sobre a cegueira eu gostei, havia certo dinamismo na ação. Ensaio sobre a lucidez eu li todo.
Mas não gostei. Vi na tevê uma entrevista com a patrona de uma das feiras do
livro de Porto Alegre, Jane Tutikian, em que ela dizia não gostar dos livros de
Saramago pós-Prêmio Nobel. Mas afirmava gostar de sua fase anterior, com livros
como O ano da morte de Ricardo Reis,
que decidi ler, para ver se me penitenciava do ranço ao autor.
Ricardo Reis é um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Segundo o poeta, teria nascido no Porto em 1887, estudado em colégio jesuíta e
formado em medicina. Monárquico, auto-exilou-se no Brasil desde
1917. Solteiro, evitava se apaixonar para não
ter de sofrer. Aceitava, ainda as limitações e a fatalidade da condição humana. Latinista, de formação clássica, Ricardo Reis escrevia odes, buscando a serenidade da alma, sem medo de enfrentar a morte, vivendo cada instante como se fosse único, fugindo à dor, posto que a razão sobrepunha-se sempre à emoção. Apresenta, em sua linguagem poética culta e precisa, muitas alusões à
mitologia, em geral rica de ideias, com um caráter moralista.
Fernando Pessoa não nos informa a data da morte de Ricardo
Reis. Isso serviu de pretexto para Saramago criar seu romance, com a volta de
Ricardo Reis à Lisboa, em 1935, ano em que Fernando Pessoa faleceu. Sua morte
ocorre em 1936, quando os sonhos monárquicos estão já enterrados e Salazar toma
o poder, mergulhando Portugal numa ditadura fascista por 48 anos, até sua
extinção em 1978, com a Revolução dos Cravos. Em toda sua vida, o Ricardo Reis de Saramago nunca assistira a um comício político. A causa dessa cultivada ignorância
estaria nas particularidades do seu temperamento, na educação que recebeu, nos
gostos clássicos com que se identificou, num certo pudor, também. Mas o alarido nacional, a guerra civil portuguesa, acordam-lhe no espírito uma
pequenina chama de curiosidade.
A pedra no caminho da leitura do romance consistiu na separação
do Ricardo Reis de Fernando Pessoa para o Ricardo Reis de Saramago. Durante
toda a narrativa, eu cobrava uma prosa poética que não existiu, o Reis de Saramago
pouco fala de sua poesia. O personagem de Saramago é um cidadão que vale pela
profissão de médico, não de poeta. Ricardo Reis de Saramago tem relações
afetivas não assumidas por diferenças de classe social e de cultura com a
criada Lidia, de quem vai ter um filho. Também se interessa por Marcenda, uma
jovem burguesa com deficiência física em um dos braços, mas a relação não se
concretiza. Ricardo Reis dialoga com o espírito de seu criador, Fernando
Pessoa, com quem tem digressões político-filosóficas.
=====================
José Saramago. O ano da morte de Ricardo Reis. SP, Cia. Das
Letras, 2011, 474 pp. R$ 59,00
Nenhum comentário:
Postar um comentário