Mesmo que Deus exista, nada pode fazer por nós. Em Meridiano de sangue, Cormac McCarthy
(1933) parece nos dizer que estamos abandonados e nosso único confronto é com nossa própria existência.
A personagem principal, o Kid, órfão de mãe, foi esquecido pelo pai.
Largado no mundo, leva um tiro nas costas aos quinze anos de idade. Envolve-se
num bando de mercenários, mas logo se vê no meio de um ataque de apaches (por
ironia, uma das cenas mais fortes da narrativa). Vai para a prisão e logo é
contratado pelo capitão Glanton para ir com seu grupo caçar mais índios e um
mexicano. Será ali que reencontrará um sujeito que sempre o acompanhou
desde os tempos de infância, o juiz Holdem. Leia a cena do ataque dos apaches
ao grupo:
Meridiano de sangue é considerado obra-prima de Cormac McCarthy. Tem tradução de Cássio de Arantes Leite
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
=========================
Cormac McCarthy. Meridiano de sangue. Rio, Objetiva, 2009, 352 pp, R$ 49,90
Já se
podia ver, por entre a poeira, pintados sobre o couro dos pôneis, asnas e mãos
e sois nascentes e pássaros e peixes de todos os feitios como vestígios de
trabalho antigo sob o selante de uma tela e agora também se podia ouvir acima
do martelar dos cascos desferrados o sopro das quenas, flautas de ossos
humanos, e alguns dentro da companhia começaram a olhar para trás em suas
montarias e outros a se atropelar em confusão quando de um ponto além daqueles
pôneis assomou uma horda fantástica de lanceiros e arqueiros a cavalo portando
escudos adornados com pedaços de espelhos quebrados que lançavam mil sóis
fragmentados contra os olhos de seus inimigos. Uma legião medonha, às centenas
em números, seminus ou vestidos em trajes áticos ou bíblicos ou ataviados como
num sonho febril com as peles de animais e ornatos de seda e peças de uniforme
ainda marcadas pelo sangue de seus donos originais, capotes de dragoons
trucidados, casacos de cavalaria com galões e alamares, um de cartola e outro
com um guarda-chuva e mais outro com longas meias brancas de mulher e um véu de
noiva manchado de sangue e alguns com cocares de penas de grou ou capacetes de
couro cru ostentando chifres de touro ou búfalo e um metido em um fraque ao
contrário e de resto nu e outro com a armadura de um conquistador espanhol, o
peitoral e as espaldeiras com fundas mossas de antigos golpes de maça ou sabre
feitos em outro país por homens cujos ossos eram agora pó e muitos ainda com
suas tranças entrelaçadas ao pelo de outras feras a ponto de arrastar no chão e
as orelhas e rabos de seus cavalos ornamentados com retalhos de tecidos
coloridos brilhantes e um cujo animal tinha a cabeça inteira pintada de
escarlate e os rostos de todos os cavaleiros lambuzados de tinta de um jeito
espalhafatoso e grotesco como uma companhia de palhaços a cavalos, hilários
mortais, todos ululando em uma língua bárbara e caindo sobre eles como uma
horda de um inferno ainda mais horrível que o mundo sulfuroso do juízo cristão,
guinchando e gritando e amortalhados em fumaça como esses seres vaporosos de
regiões além da justa apreensão onde o olho erra e os lábios balbuciam e babam.
(...) uma sonora revoada de flechas atravessou a companhia e homens cambalearam
e tombaram de suas montarias. Cavalos empinavam e mergulhavam e as hordas
mongólicas os envolveram pelos flancos e viraram e investiram à plena carga com
suas lanças.= (59/60)
A violência, que parece fazer
parte de quase toda a narrativa de McCarthy, transmite um problema moral repleto de ambiguidade,
provando que, apesar de todo o caos, nele existe uma ordem que poucos têm a
coragem de aceitar. O autor usa de uma violência em prol de uma causa maior. Cria imagens poéticas da violência. A narrativa borbulha descrições poéticas e ações e situações que alimentam a vontade de ler o livro quase sem parar. O kid passa por um aprendizado da sua própria violência e a
dos outros para depois, ao reencontrar o juiz no final romance, chegar à
conclusão de que há algo além das carnificinas que testemunhou. As lições do
mal de McCarthçy educam seus personagens. A observação detalhada e poética da natureza é como um espelho
da alma do protagonista, um solitário arredio a uma
sociedade que se moderniza sem nenhum respeito pela tradição que se despede. A solidão é o mote principal da condição humana. A noção pessimista quase
mórbida do ser humano, em que um mal lógico é identificado como a origem de uma
violência que, se provoca ainda mais desgraça, também pode regenerar o mundo; escolhas que ninguém sabe por que são feitas, para que ele sinta em cada
um de seus ossos a solidão que permeia a vida dessas pessoas, a solidão que
enfim os faz se aproximar cada vez mais da morte, seja de si mesmos ou do
lugar onde moram, prontos a se tornarem lendas, mitos, pó.
O luiz Holden, albino, desprovido
de pelos, enorme na altura e na largura, perito em armas brancas e de fogo,
culto em várias línguas, um gentleman que encanta as mulheres com suas danças
e, ao mesmo tempo, estupra criancinhas, escalpelas índios apaches sem nenhuma
hesitação e anota minuciosamente todas as coisas ao seu redor em um livro de
couro para despois apagá-las de sua existência, sem deixar nenhum rastro. A
conversa definitiva que ele tem ao reencontrar o garoto, quase no final da
narrativa, desconcerta:
Os
homens nasceram para os jogos. Nada mais. Qualquer criança sabe que brincar é
mais nobre que trabalhar. Sabe também que o valor ou mérito de um jogo não é inerente ao jogo em
si, mas antes ao valor do que está em risco. Jogos de azar exigem uma aposta
para significar alguma coisa. Jogos esportivos envolvem a habilidade e força
dos oponentes e a humilhação da derrota e o orgulho da vitória são em si mesmos
aposta suficiente pois estão indissociavelmente ligados ao valor dos envolvidos
e os definem. Mas seja qual for a prova, se de sorte ou valor, todo jogo aspira
à condição de guerra pois nesse caso o que se aposta suprime tudo, jogo,
jogadores, tudo. (...) Imaginem
dois homens jogando cartas sem outra coisa para apostar além de suas vidas.
Quem já não ouviu falar de algo assim. A virada de uma carta. Para esse jogador
o universo inteiro avançou laboriosamente em todo o seu fragor para chegar a
esse momento que dirá se ele vai morrer na mão daquele homem ou se ele morrerá
da sua. Que confirmação mais definitiva o valor de um homem pode ter que essa?
Essa intensificação do jogo a sua condição suprema não admite qualquer
discussão relativa a ideia de destino. A seleção de um homem em detrimento de
outro é uma preferência absoluta e irrevogável. E é um estúpido genuíno aquele
capaz de supor decisão assim tão profunda sem um agente ou significação, uma
coisa ou outra. Em tais disputas em que está em jogo é a aniquilação do
derrotado, as decisões são cristalinas. Esse homem, segurando esse arranjo
particular de cartas em sua mão, é por isso removido da existência. Essa é a
natureza da guerra cuja aposta é, ao mesmo tempo, o jogo, a autoridade e a
significação. Vista dessa forma, a guerra é a forma mais legítima de divinação.
Significa pôr à prova a vontade de um indivíduo e a vontade de outro no
contexto dessa vontade mais ampla, que, ao ligar a deles é, por conseguinte, forçada
a selecionar. A guerra é o jogo supremo, por que é, em última instância, um
forçar da unidade da existência. A guerra é Deus. Não faz diferença o que o
homem pensa da guerra, a guerra perdura, é a mesma coisa que perguntar o que o
homem pensa da guerra. A guerra sempre vai existir. Antes do homem aparecer, a
guerra estava a sua espera. A ocupação suprema, a espera, do praticante
supremo. Assim foi e assim será. Assim e de mais nenhum outro jeito. (261)
Para o leitor que gosta ou quer conhecer melhor a obra de Cormac McCarthy, recomendo o ensaio esclarecedor de Martim Vasques da Cunha, no Jornal Rascunho: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-visao-do-abandono/Meridiano de sangue é considerado obra-prima de Cormac McCarthy. Tem tradução de Cássio de Arantes Leite
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
=========================
Cormac McCarthy. Meridiano de sangue. Rio, Objetiva, 2009, 352 pp, R$ 49,90
Nenhum comentário:
Postar um comentário