"Na cidade puritana de Salém, na primeira metade do século
XIX, seus habitantes esperavam um acontecimento grave. Quando a porta da cadeia
foi aberta, surgiu na praça uma jovem, que avançou a céu aberto. Segurava
nos braços um bebê de cerca de três meses, Assim que a jovem — mãe dessa
criança — se revelou por inteiro à multidão, pareceu ter sido seu primeiro
instinto abraçar com mais força o bebê junto ao peito; não tanto por um impulso
de afetividade materna, mas como se escondesse um símbolo, o qual vinha gravado
ou costurado naquela altura do vestido. No momento seguinte, no entanto,
percebendo que não fazia mais do que ocultar de maneira precária um emblema de
sua vergonha com outro, ela tomou o bebê num dos braços e, com o rosto
queimando, um sorriso arrogante e o olhar de quem não se deixaria humilhar,
encarou a gente de sua cidade e os vizinhos que a rodeavam. No peitoral da
túnica, em tecido vermelho fino e adornada por um elaborado bordado e
fantásticos floreios em linha dourada, trazia a letra A. O emblema fora bordado com arte, exuberância e
beleza decorativas, dando a impressão de um toque final e preciso à
roupa que ela usava; roupa que, por sua vez, exibia esplendor conforme ao gosto
da época, mas muito além do que permitiriam as normas da colônia no que dizia
respeito a ostentação e luxo. A jovem era alta, uma figura de perfeita
elegância em todos os sentidos, tinha cabelo escuro e abundante, e um rosto que causava aquela impressão bem
feminina, para os padrões da época; caracterizava-se por certa postura e
dignidade. Talvez houvesse nela algo delicadamente doloroso. Seu traje, que, na
verdade, confeccionara para a ocasião na própria cadeia, modelando-o bem ao seu
gosto, parecia expressar, com insolente e pitoresca peculiaridade, uma postura
de espírito, a desesperada temeridade de seu estado de ânimo. Mas o detalhe que
atraía todos os olhares e, como era de esperar, transfigurava sua portadora — a
ponto de homens e mulheres para quem ela fora até ali uma presença familiar
agora a olharem como se pela primeira vez — era aquela letra escarlate, tão
magnificamente bordada e iluminada em seu peito. Funcionava como um feitiço,
apartando-a das relações humanas ordinárias para encapsulá-la numa esfera
própria. O lúgubre oficial de justiça fez um gesto com o bastão, para abrir
caminho. Chegara a hora em que a virtuosa colônia de Massachusetts, onde a
justiça se faz à luz do sol visse a jovem mulher exibir sua letra escarlate na
praça pública, expondo, assim, sua vergonha."
O que acontecera é que essa mulher era casada com um
homem tido como honrado, ainda que não tivesse aparecido ainda na cidade, pois
a mulher tinha vindo antes dele para Salém. Como tivera um filho, certamente
não seria do marido. Agora, em praça pública, querem que ela revele o nome do
pai da criança. Mas ela se cala, como gesto de proteção.
Percebe-se no trecho narrado acima, que estamos diante de uma obra romântica: dignidade, beleza física, recato. O romance retrata o adultério na sociedade puritana do século XVIII. A letra escarlate, entretanto, é uma obra muito mais complexa. Os puritanos insistem numa sociedade absolutamente pública, porque acreditam necessitar de toda a energia de cada indivíduo na tarefa de estabelecer uma colônia duradoura. Segundo esse ponto de vista, a sociedade e a própria civilização seriam incompatíveis com a privacidade. Para isso, os puritanos precisam manter cada aspecto da vida das pessoas sob controle.Tal objetivo é incompatível com a permissão de que os indivíduos tenham vida privada ou existência íntima. Para os puritanos, o adultério é um
pecado aos olhos de Deus e, consequentemente, considerado um crime. Mas a
questão importante na história não é o pecado, mas a maneira como a crença de
que é conduz os puritanos a certas ações que, por sua vez, afetam pessoas que
mantêm opiniões diferentes sobre o adultério.
Embora Hester, a adúltera, sofra enormemente pela vergonha de sua desonra pública e
pelo isolamento que seu castigo impõe, jamais consegue aceitar, no íntimo de
seu coração, a interpretação puritana para seu ato. Mantém, assim, seu amor
próprio e sobrevive à sua pena com dignidade e caráter cada vez mais
fortalecido.
A tradução é de Christian Schwartz.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
A tradução é de Christian Schwartz.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Nathaniel Hawthorne. A
letra escarlate. SP, Penguin Companhia, 2010, 336 pp, R$ 29,00
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