O lirismo na prosa, fácil
de encontrar em mulheres escritoras, também permeia a alma masculina de Paulo
Mendes Campos. Em O amor acaba,
estão compiladas as melhores crônicas do autor mineiro, que também foi poeta,
cujo tema é a divagação existencial da natureza humana. Ser cronista, para
Paulo Mendes Campos, é frequentar os bares, habitar todos os lugares, promover
misturas, enamorar-se do mundo. Ser cronista é dar à literatura as janelas sem
as quais ela não teria vida. É adotar o ponto de vista dos cegos e dos bêbados.
É adorar o impossível, reinstaurar a desordem, viver entre a beatitude e o
horror. Ser cronista é esvaziar o sentido das coisas que transbordam de
sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto, é anunciar
desolações, como fazem os profetas. É defender o homem contra seu destino
obscuro. É amar “todos os serzinhos humanos” e ainda mais os passarinhos. Ser cronista
não é apenas embalar o leitor com algumas doses de lirismo, ou diverti-lo com
ditos espirituosos, mas atormentá-lo muitas vezes com desilusões, puxões de
orelha e socos no estômago. Ser cronista é, a despeito de si mesmo, amar a vida
– e escrever sobre seus dissabores, mesmo consciente de que “a vida não vale
uma crônica”.
Na crônica que dá título ao
livro recém-lançado pela Companhia das Letras, o cronista nos diz, O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num
domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados,
diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do
cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no
cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da
aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e
acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas
se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem
antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e
acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de
alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela
pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado
de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia;
no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da
pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas
silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da
Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da
simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à
beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns
dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o
pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados,
aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na
poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em
salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o
tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas
de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não
começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio,
frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que
chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na
descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou,
com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e
diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres,
Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia
imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos,
até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o
mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é
simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem
razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se
fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma
palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de
tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na
dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor
acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para
recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
Paulo Mendes Campos. O amor acaba. SP, Cia. das Letras, 2013, 286 pp. R$ 39,00