A fotografia seguinte
representa uma árvore alta, sem folhas, como se realmente queimada, e um grande
galho donde pende o negro, pelo pescoço, baloiçando sem camisa. A seguinte tem
a mesma árvore, o mesmo galho, o mesmo negro, mas agora nem tem nem calças nem
camisa. O negro baloiça no galho da árvore, rodeado por soldados. Helena segura
a fotografia. "Disse o Jaime que as calças dele escorregaram e que
ejaculou para cima do capim, em frente dos soldados portugueses! O Jaime diz
que nunca mais acontece - agora vão amarrar sempre as calças de quem for
enforcado, para se pouparem a cenas dessas!" - disse ela.
"Passe" - disse, com um olho na porta outro na janela. Passou outro
pacote (...) que dizia Víbora
Venenosa. Eram imagens de incêndios, aldeias em chamas, sem qualquer
referência. O fotógrafo deveria gostar dos rolos de fumo. As seguintes tinham
referência, localização, e número de palhotas destruídas - destruídas trinta,
oitenta e três... Também traziam coordenadas. Agora no meio das palhotas
incendiadas havia soldados correndo. Adiante, novo pacote. Estávamos sentadas
num sofá de pano onde Helena ia empilhando e desempilhando. Helena mostrou-me
com precaução o pacote que dizia spoilt
como os outros e Víbora Venenosa III.
Mais rostos, mais cabeças de soldados escondidos entre sarças, mais incêndios, e
logo a imagem dum homem caído de bruços, depois dois telhados, e sobre um dos
telhados de palha, um soldado com a cabeça dum negro espetada num pau. Viam-se vários corpos sem cabeça à beira duma
chitala, um bando de galinhas avoejava sobre eles na mesma fotografia. Helena
passou. Helena tomou a seguinte e mostrou o soldado em pé, sobre o caniço.
Via-se nitidamente o pau, a cabeça espetada, mas o soldado que a agitava não
era um soldado, era o noivo. Helena de Tróia disse - "Vê aqui o seu
noivo?" Ela queria que Evita visse. Era claro como a manhã que despontava
que Helena de Tróia me havia trazido até àquela divisão da casa para que eu
visse sobretudo o noivo.
Essa é uma das muitas cenas inquietantes em que se vê
portugueses em meio às atrocidades da guerra em Moçambique. É a fase final da
guerra, quando a nação africana prepara sua independência. A costa dos
murmúrios, de Lidia Jorge, apresenta em sua estrutura duas narrativas. A
primeira, Os Gafanhotos, é uma narrativa curta que termina com um FIM. Trata-se da comemoração do casamento do
alferes português Luis Alex (o da foto com a cabeça do negro) e sua noiva, Evita, durante uma trégua nos
combates. Um cortejo de convidados dança e se diverte num clima eufórico no
terraço do hotel Stella Maris, enquanto um fotógrafo registra as cenas da
festa. Enquanto isso acontece no hotel, uma aglomeração de cadáveres de negros
aparece na praia, recolhidos em caminhões de lixo. Também acontece uma praga de gafanhotos e a
morte do noivo de Evita. A segunda, que ocupa as demais páginas do romance
retomam e desvendam uma série de imagens da primeira página, contada por vários
personagens, sendo Evita uma delas. A morte misteriosa do noivo revela uma
relação de adultério.
Se o leitor conseguir deixar de lado o estilo encaixado, com
a colocação dos pronomes rigorosamente respeitados, vai se deixar envolver pela
prosa criativa e inquietante de Lídia Jorge, que vem crescendo na literatura
portuguesa e universal. Outro romance dela, A Noite das mulheres cantoras será
comentada adiante, quando abordarmos a lista de livros recomendados pelo
vestibular da UFRGS.
A obra em papel encontra-se esgotada. Pode ser encontrada em
sebos por um preço médio de 40 reais um exemplar em bom estado de conservação.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Lídia Jorge. A costa
dos murmúrios. Rio, Record, 2004. 290 pp,
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