A leitura começa com os olhos.
Quando vemos um texto lembramo-nos melhor dele do que quando apenas o
ouvimos. Até aqui está óbvio para
qualquer leitor: as letras são apreendidas pela visão. Mas por meio de
qual alquimia essas letras se tornam palavras inteligíveis? O que acontece
dentro de nós quando nos defrontamos com um texto? De que forma as coisas
vistas, as "substâncias" que chegam através dos olhos ao nosso
laboratório interno, as cores e formas dos objetos e das letras se tornam legíveis?
O que é, na verdade, o ato que chamamos de ler? Uma história da leitura é
o relato da nossa história da leitura. Descobrimos com Alberto Manguel que
ler nos propicia desvendar mistérios e ficarmos pasmos diante de outros mais. É
um livro de ensaios, que o prestigiado escritor argentino que ajudava Borges em
seu processo de leitura e foi por ele influenciado, nos delicia com uma
prosa muito bem amarrada.
Os leitores de livros ampliam ou
concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras de uma página é
apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo lendo um mapa de estrelas
que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será
erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo
lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do
parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações
do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão
lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo
várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo
no rosto do bebê sinais de alegria, medo, admiração; o adivinho chinês
lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo
cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os
pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo
as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o
tempo no céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de
decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo
conhecimento de que a coisa lida foi criada para aquele propósito
específico por outros seres humanos - a notação musical ou os sinais de
trânsito, por exemplo - ou pelos deuses, - o casco da tartaruga, o céu à
noite. Outras pertencem ao acaso. E, contudo, em cada caso é o leitor
que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade
possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado
a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo
à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para
compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler.
Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.
Alberto Manguel descobriu pela
primeira vez que podia ler, aos quatro anos de idade. Tinha visto uma
infinidade de vezes as letras que sabia (porque tinham lhe dito) serem os nomes
das figuras colocadas sob elas. O menino desenhado em grossas linhas pretas,
vestido com calção vermelho e camisa verde (o mesmo tecido vermelho e
verde de todas as outras imagens do livro, cachorros, gatos, árvores, mães
altas e magras), era também, de algum modo, percebia, as formas pretas e
rígidas embaixo dele, como se o corpo do menino tivesse sido desmembrado
em três figuras distintas: um braço e o torso, b; a cabeça isolada,
perfeitamente redonda, o;
e as pernas bambas e caídas, y.
Desenhou os olhos e um sorriso no rosto redondo e preencheu o vazio do
círculo do torso. Mas havia mais: sabia que essas formas não apenas
espelhavam o menino acima delas, mas também podiam lhe dizer exatamente o
que o menino estava fazendo com os braços e as pernas abertas. O menino corre,
diziam as formas. Ele não estava pulando, como poderia ter pensado, nem
fingindo estar congelado no lugar, ou jogando um jogo cujas regras
e objetivos lhe eram desconhecidos. O menino corre. Depois que
aprendeu a ler suas letras, leu de tudo: livros, mas também notícias,
anúncios, os tipos pequenos no
verso da passagem do bonde, letras jogadas no lixo, jornais velhos
apanhados sob o banco do parque, grafites, a contracapa das revistas de
outros passageiros no ônibus. Quando ficou sabendo que Cervantes, em seu
apego à leitura, lia até os pedaços de papel rasgado na rua, entendeu
exatamente que impulso o levava a isso. Essa adoração do livro (em
pergaminho, em papel ou tela) é um dos alicerces de uma sociedade letrada.
O Islã leva a noção ainda mais longe: o Corão não é apenas uma
das criações de Deus, mas um de seus atributos, tal como a onipresença ou
a compaixão.A experiência veio a ele primeiramente por meio dos livros.
Mais tarde, quando se deparava com algum acontecimento, circunstância ou
tipo semelhante àquele sobre o qual havia lido, isso lhe causava o sentimento
um tanto surpreendente mas desapontador de déja vu, porque imaginava que
aquilo que estava acontecendo agora já havia lhe acontecido em palavras,
já havia sido nomeado.
O livro irá agradar aos que possuem
uma bagagem considerável de boa literatura. Mas poderá surpreender aos
curiosos que também gostam de ler.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Alberto Manguel. Uma
história da leitura. SP, Cia. das Letras, 1997, 408 pp, R$ 60,00
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