A cearense Ana Miranda (1951) surgiu no cenário cultural
como atriz de cinema. Se você tem mais de 50 anos e bebeu da fonte dos
movimentos culturais de 1968, deve tê-la visto nos filmes Como era gostoso
meu francês, Mãos vazias, A faca e o rio etc. É irmã de Marlui Miranda, cantora
e ativista da causa indígena, que também foi marcante nesse período e continua
ativa como cantora. Ana surgiu no meio literário como poeta. Sua incursão pelo
romance deu-se em 1989, com Boca do
Inferno, de que falaremos a seguir. Sua originalidade como romancista
consiste no fato de se apropriar de figuras conhecidas da historiografia
brasileira e construir
uma narrativa bem elaborada, sem o ranço de romance histórico.
A ação de Boca do
Inferno se passa na Bahia dos 1600. A Companhia de
Jesus fortificava-se em igrejas, missões de catequese dos indígenas e colégios
para evangelizar as novas gerações, de norte a sul do Brasil. Na Bahia, eram senhores de quase tudo,. Naquele tempo Gregório de Matos acreditava-se
dono de uma grande vocação religiosa. Por isso quis ser um deles. Porém, cansou-se
dela e passou a procurar algo diferente. Partiu para Portugal. Lá, passou
muitas horas à margem do Tejo olhando as frotas, as pessoas na rua, aprendendo
a lidar com as mulheres. Leu muitos livros até entrar na Universidade de
Coimbra. A poesia trovadoresca portuguesa aguçou-lhe o estilo do escárnio e
maldizer. Formou-se em Direito e voltou ao Brasil, atuando como desembargador,
função que passou a odiar em seguida. Como conhecesse bem os pecados e a
hipocrisia do clero, sentia-se desconfortável entre os louvores da fé a
mesquinhez das atitudes humanas. Passou a frequentar embriagado lugares
sórdidos da Bahia. O dom da poesia se manifesta nessa fase e passa a compor
seus versos de escárnio e maldizer ao lado de outros versos religiosos e
amorosos, frutos de diversas relações afetivas mal resolvidas.
Mas Boca do Inferno não é a biografia romanceada de Gregório de Matos. No romance de Ana Miranda, o poeta envolve-se em uma trama da qual participam o padre Antônio Vieira, cujo irmão está metido num complô para eliminar o governador da Bahia, acusado de corrupção. O assassinato do alcaide-mor, por parte desse grupo desencadeia uma perseguição do poder estabelecido contra os conspiradores, para prender e julgar os culpados. Essa perseguição conduz o leitor pelos meandros da política, dos conchavos pelas vielas tortuosas de uma cidade, cuja topografia de altos e baixos atolados de imundície, espelha de modo exemplar a vida colonial brasileira. Vieira é preso, Gregório de Matos é investigado, até o reino português interfere politicamente, para conduzir a história a seu final.
Boca
do Inferno deu o Prêmio Jabuti de revelação. Ana Miranda escreveu
ainda Dias e Dias, envolvendo a
figura do poeta Gonçalves Dias; A
última quimera, com o poeta Augusto dos Anjos como tema central; Desmundo, trata
da história de órfãs que vinham de Portugal para o Brasil para casarem-se com
os colonos; Amrik revive a saga de imigrantes árabes
recém chegados em São Paulo no final do século XIX, e muitos romances mais. Em
2014 publica Semíramis, que
tematiza o escritor José de Alencar.
Ana Miranda escreve muito bem. Vale a pena conferir.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Ana Miranda. Boca
do Inferno. 5ª ed, SP, Cia. das Letras, 1990, 336 pp, R$ 31,00
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