Ivan
Junqueira morreu agora, em 03 de julho. A sagração dos ossos, livro de poemas
lançado em 1994, que lhe deu o Prêmio Jabuti, resgata a lembrança dos mortos,
da vida que foi , portanto não é mais. A infância para o poeta é uma canoa que
naufraga e a bordo não traz senão fantasmas.
Espelho
O
duro espelho me reflete:
olhos
míopes que pouco enxergam,
lábios
que muita vez se cerram,
rugas
que me entalham a testa,
as
pernas magras, talvez lerdas,
as
mãos ossudas e irrequietas,
a
barba cujo fio enfeza,
os
pés que percorreram léguas.
E
tudo mais que dele emerge,
de
muito pouco ou nenhum préstimo,
pois
logo no aço o tempo - névoa -
dissolve
os traços mais perpétuos.
Mas
algo de mim, certa inépcia
para
entender o que me cerca,
ali
se furta ao olho pérfido
de
quem se crê o seu intérprete.
E
não só: sequer uma réplica
da
luz que em mim sucumbe à treva
no
álgido espelho reverbera
ou
deixa um risco de seu périplo.
Algo
de mim: renirsism répteis,
algum
antigo e inútil verso,
a
alma de um rei que, sem remédio,
se
consumia na quimera
de
submeter servos e glebas,
mas
que findou seus dias déspotas
em
meio às moscas da taverna
e
ao pouco pó de algumas vértebras.
Todo
esse lodo e essa miséria...
E
deles sequer um reflexo,
como
se o espelho, mais que o inferno,
lhes
recusasse alívio ou crédito.
Olho-me
ali, e nem o espectro
de
quem sou (ou fui) se revela;
vejo-lhe
apenas a epiderme,
mas
não o fundo, que é secreto.
Poeta
de qualidade aprimorada, mas pouquíssimo lido, também adquiriu fama de
excelente tradutor, especialmente da obra de T. S. Eliot, Dilan Thomas e
Baudelaire (As Flores do mal teve inúmeros comentários honrosos graças à
tradução de Junqueira). No programa de televisão em homenagem ao poeta, na data
de sua morte (Globonews), o poeta falava que ser poeta é uma destinação. Tentou
fugir da poesia, por que o poeta tem destino difícil, sofre muito, há que se pensar que não haverá recompensa financeira, já que poesia
não vende. Mas ele não conseguiu e tornou-se um poeta maior muito pouco lido,
como toda poesia é.
Seu
primeiro ímpeto para traduzir poesia se deu quando leu pela primeira vez Os quatro quartetos, de T. S. Eliot, no
original. Eliot lhe dizia tudo que o poeta Junqueira gostaria de dizer em
poesia. Então, começou a traduzi-lo para seu bel prazer, para se aproximar mais
da poesia do escritor anglo-americano. Aconteceu que Antônio Houaiss leu a tradução
e se apaixonou. E o livro foi publicado em português. A partir daí cresceu o
respeito da crítica sobre o trabalho de tradução do poeta brasileiro. Traduziu
também Baudelaire (As flores do mal
ganhou prêmio de melhor tradução), Dilan Thomas e Margueritte Yourcenar.
O poeta falou também que todo tradutor deve levar em conta
que se pode traduzir o que o poeta quis dizer, mas nunca o que ele disse. Num
certo sentido a poesia seria intraduzível. Mesmo assim, deve acreditar que possa traduzi-la. Em
relação ao processo criativo, não se poderia confundir propriamente intuição
com inconsciente. Não são campos opostos, são terrenos tangenciais. Há uma participação
muito grande do inconsciente na intuição. Só que a intuição não é um processo
de transe mediúnico, dentro do processo de intuição. Há todo um processo de
escolha intelectual, de percepção intelectual, podendo ser mais ou menos
refinada, dependendo da formação intelectual do poeta.
Ivan
Junqueira foi membro da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a João Cabral
de Melo Neto, de quem teria sido influenciado. Além de poeta, foi ensaísta
brilhante. Ao morrer, deixou no prelo dois livros que serão editados em breve.
Como toda obra literária de qualidade, sua poesia encontra-se praticamente esgotada,
uma das exceções é O outro lado, Ed.
Record. Você pode encontrá-la nos
sebos virtuais por preços bem acessível. Recomendo-lhes A sagração dos ossos, Ed. Civilização Brasileira e Poemas reunidos, Ed. Record. Certamente
sua obra deva ser relançada em breve.
O enterro dos ossos
Não pude enterrar meus
mortos:
Baixaram todos à cova
Em lentos esquifes
sórdidos,
Sem alças de prata ou
cobre.
Nenhum bálsamo ou corola
Em seus esquálidos
corpos:
Somente uma névoa
inglória
Lhes vestia os duros
ossos
Foram-se assim, nus e
pobres,
Sem deixar feudo ou
espólio,
Ou mesmo uma ínfimajóia
Que lhes trouxesse à
memória
O frágil brilho de
outrora,
Quando lhes coube essa
sobra
Que Deus larga pouco
importa
Nas mãos de quem caia a
esmola.
Passo a passo vida afora,
Sempre os vi em meio às
górgonas
Da loucura cujo pólen
Lhes cegou a alma e os
olhos.
Não pude enterrar meus
mortos.
Sequer aos lábios
estóicos
Lhes fiz chegar uma
hóstia
Que os curasse dos
remorsos.
Quer esquecê-los. Não
posso:
Andam sempre à minha
roda,
Sussurram, gemem,
imploram
E erguem-se às bordas da
aurora
Em busca de quem os chore
Ou de algo que lhes
transforme
O lodo com que se cobrem
Em ravina luminosa
|
O poeta
O poeta está morto.
Cerrem-lhe as pálpebras,
o olhar absorto,
a boca cheia de tropos
e metáforas barrocas.
Sepultem aquele broto
que em sua garganta rouca
endureceu com o caroço
e a voz outrora doce
lhe afogou em fundo poço.
Deixem-lhe o corpo exposto
para que vejam o que pôde
fazer a morte e sua foice
com aquele que fora
corola, diamante, voo.
O poeta está morto.
Pouco importa agora o sopro
que lhe deu vida e alvoroço,
como tampouco o áspero corvo
que a alma lhe pôs em fogo.
Restam-lhe os versos, poucos,
e as sílabas já sem fôlego
às quais se agarrou com força
porque as ouvia como agouro
de um fugaz e último coro.
O poeta está morto.
Que nos sangrem, garras de osso,
as suas marcas do zorro.
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paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Ivan Junqueira. A sagração dos ossos. Rio, Civ. Brasileira, 1994. 120 pp.