Apesar
da estrada, que ele já apanhou bastante mais movimentada e atraente, a infância
de Geraldo Viramundo transcorreu como a de seus irmãos.Como seus irmãos ele
comeu terra, botou lombrigas, arrebentou cupim para ver como era dentro, seguiu
as formigas para ver aonde iam, misturou açúcar com sal no armazém, furtou
garrafa de guaraná e depois mijou dentro botando no lugar para o pai não descobrir,
brincou com fogo e mijou na cama, brincou de pegador, tic-tac carambola, este
dentro e este fora, matou passarinho com bodoque, enterrou ovo choco e fez fogo
em cima para ver se nascia pinto, foi mordido de marimbondo e ficou de cara
inchada, amarrou lata vazia em rabo de gato, fez galinha dançar em cima de lata
quente, contou com o ovo no rabo da galinha, enfiou o dedo no rabo dela, teve
sarampo, catapora, caxumba e coqueluche, pegou sarna para se coçar, correu de
boi bravo, botou cigarro na boca de sapo para ele fumar até rebentar, se
escondeu na cesta de roupa suja para ver a irmã mais velha tomar banho, quis
pegar a irmã mais nova e depois teve remorso, perdeu a virgindade numa
cabrita,fugiu de casa e apanhou e por isso tornou a fugir e por isso tornou a
apanhar, construiu casinhas de barro, caiu da árvore e se machucou, comeu manga
com leite e adoeceu, contou as estrelas do céu e ficou com berrugas, pegou
carona em caminhão, aprendeu a ler na escola, fez do travesseiro o corpo da
professora, teve medo do João Carangola que fugiu da prisão e gostava de
menino, assobiou e chupou cana ao mesmo tempo, fumou cigarro de chuchu, fez
coleção de favas, foi à missa aos domingos, assistiu fita de Tom Mix, Buck
Jones e Carlitos no cineminha da cidade, apanhou bicho-de-pé, pisou em urina de
cavalo e ficou com mijação, armou arapuca no mato, jogou futebol com bola de
meia, teve dor de dente de noite, foi coroinha na igreja, contou quantas vezes
fazia coisa feia para se lembrar na confissão, procurou não mastigar a hóstia
para que não saísse sangue, fez flautinha de bambu, ficou preso pela piroca num
gargalo de garrafa, molhou o pijama de noite e teve medo de estar doente, ficou
com pedra na maminha e perguntou à mãe o que era, se apaixonou pela filha mais
velha dos italianos do empório, tirou o cavalinho da chuva, pensou na morte da
bezerra, chorou escondido, teve medo, descobriu que o céu era imenso, teve
vontade de morrer, ficou acordado de madrugada ouvindo o galo cantar sem saber
onde, sentiu dores nos culhões, comeu a negra Adelaide e virou homem.”
Numa tarde
de sábado, o sino da igreja tinha acabado de bater, havia silêncio pairando
sobre as árvores e as coisas ao redor e ele estava deitado debaixo de uma
mangueira no quintal de sua casa. Então se apoiou nos cotovelos e estendeu o
olhar meio para longe: centenas de vezes tinha estado ali, naquela mesma
posição, era uma paisagem conhecida e tão familiar como o seu próprio modo de
viver, que nela se completava. Mas naquele mesmo instante uma buzina de automóvel
soou na estrada, um boi mugiu no pasto, uma menininha de vermelho passava
correndo lá longe na ponte, um vento leve começou a sacudir a ramagem das árvores.
O momento assim surpreendido parecia conter um significado qualquer que lhe
escapava, e a que tudo se subordinava, como as notas de uma música. Geraldo Viramundo
se sentiu mais só do que quando mergulhava no rio, mas era uma solidão feita de
desamparo e saudade da infância - quando, minutos mais tarde, se ergueu e
caminhou em direção à casa, percebendo que não era mais menino.
Foi levado
por um padre para o seminário. Saiu do seminário e fez longa viagem de Mariana
a Ouro Preto, onde conheceu a amada da vida inteira. Em Barbacena, colheu rosas
e espinhos, acabando internado em um hospício. Foge de lá e se candidata a
prefeito da cidade. Não ganha a eleição, mas passa por mirabolantes aventuras
no Esquadrão de Cavalaria em Juiz de Fora, fazendo façanhas militares durante
as manobras militares, que o leva a ser expulso do Esquadrão. Depois, passa um tempo na prisão.
Sai da prisão atravessando uma crise espiritual que o leva à desesperança em
Congonhas do Campo. Passa por maus bocados em Uberaba, buscando cumprir seu
destino, reverenciando a literatura mineira, passando a noite com um fantasma e
quase morrendo por uma mulher. Finalmente, em Belo Horizonte, entre retirantes,
mulheres, doidos e mendigos, cumpre seu destino.
Fernando
Sabino escreveu O Grande Mentecapto seguindo
a forma de romance picaresco, subgênero literário que descreve a vida de
personagens supostamente ardilosos e
espertos (por serem sonhadores, passam por tolos) , vivendo as peripécias da vida com o objetivo de
alcançar seus ideais. Dom Quixote e Memórias de um Sargento de Milícias são
romances picarescos. No caso do mentecapto de Fernando Sabino, ele é colocado na luta pela vida por vontade dos
outros. Essa trajetória, engraçada e trágica, o faz perceber que a alegria e a
felicidade que se vive na infância, podem transformar-se em martírio e dor.
Sabino começou a escrever a obra em 1946, interrompida em seu início e retomada
em1979, quando o autor já estava amadurecido e seus méritos literários
reconhecidos como escritor. Vale a pena
ler e reler. A obra encontra-se esgotada. Nos sebos virtuais é possível achar
um exemplar em excelente estado de conservação por um preço entre 10 a 20
reais.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Fernando Sabino.
O Grande Mentecapto. 70ª ed., Rio,
Record, 2007, 258