Na vila de Tizangara, em Moçambique, acontecimento era coisa
que nunca sucedia. Só os fatos eram sobrenaturais. Por isso, o narrador de O
último voo do flamingo nos diz que tudo que nos vai contar, ocorreu. O mundo
não é o que existe, mas o que acontece, ele diz. Eram os tempos de pós-guerra e
tudo parecia correr bem. Soldados das Nações Unidas vinham vigiar o processo de
paz. Coisas sobrenaturais começaram quando alguns desses soldados começaram a
explodir, num total de cinco. Um dia, apareceu um pênis decepado na estrada
principal que dava acesso à Vila. Um boné das Nações Unidas estava suspenso num
galho de árvore. Havia a tentativa de identificar o corpo. Uma delegação oficial estava prestes a chegar, para
investigar o caso do sexo decepado. Gente interna do governo, gente de fora.
Até das Nações Unidas. Vinham investigar o caso do sexo decepado, mais os
outros casos de soldados estrangeiros que explodiram. O administrador da vila
nomeou um habitante da vila que sabia ler e escrever, para ser o tradutor
oficial da comitiva, mais especificamente do italiano Massimo Risi, a quem o
moçambicano traduz não a sua língua, que o italiano sabia falar, mas a cultura
oral de seus ancestrais que está desaparecendo em decorrência da guerra que
expulsara os portugueses e firmara no país os rebeldes que passaram a governar
com mão de ferro, mantendo a corrupção e a miséria sobre seus semelhantes.
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Como costuma acontecer nas histórias do moçambicano Mia
Couto (1955), através de uma narrativa carregada de lirismo, conhecemos o
administrador Estevão Jonas, de guerrilheiro a empossado comandante da cidade,
usando de seu poder para desviar verbas para benefício próprio. Há personagens
fascinantes como Temporina, mulher de corpo exuberante com feições de anciã, a
prostituta Ana Deusqueira, chamada inicialmente para tentar identificar a quem
pertenceria o pênis decepado, o pescador Sulpício, pai do tradutor que nos
conta a história e que lhe passa verdadeiras lições de vida relativas à
ancestralidade do povo moçambicano, destruído pelo abranquecimento do
colonialismo português e pelas bombas que mataram milhares de gente inocente.
Mia Couto. O último voo do flamingo. SP, Cia. das Letras,
2005, 232 pp. R$ 46,00
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