Afastemos discretamente uma dobra do reposteiro que
recata a câmara nupcial.
É uma sala em quadro, toda ela de
uma alvura deslumbrante, que realçam o azul celeste do tapete de riço recamado
de estrelas e a bela cor de ouro das cortinas e do estofo dos móveis.
A um lado, duas estatuetas de
bronze dourado representando o amor e a castidade, sustentam uma cúpula oval de
forma ligeira, donde se desdobram até o pavimento, bambolins de cassa
finíssima.
Por entre a diáfana limpidez
dessas nuvens de linho, percebe-se o molde elegante de uma cama de pau-cetim
pudicamente envolta em seus véus nupciais, e forrada por uma colcha de
chamalote também cor de ouro.
(...)
Correu-se uma cortina, e Aurélia
entrou na câmara nupcial.
Seu passo deslizou pela alcatifa de
veludo azul marchetado de alcachofras de ouro, como o andar com que as deusas
perlustravam no céu a galáxia quando subiam ao olimpo.
A formosa moça trocara seu vestuário
de noiva por esse outro que bem se podia chamar trajo de esposa; pois os suaves
emblemas da pureza imaculada, de que a virgem se reveste quando caminha para o
altar, já se desfolhavam como as pétalas da flor no outono, deixando entrever
as castas primícias do santo amor conjugal.
Trazia Aurélia uma túnica de cetim
verde, colhida à cintura por um cordão de torçal de ouro, cujas borlas tremiam
com seu passo modulado. Pelos golpeados deste simples roupão borbulhavam os
frocos de transparente cambraia, que envolviam as formas sedutoras da jovem
mulher.
As mangas amplas e esvasadas eram
apanhadas, na covinha do braço e sobre a espádua, por um broche onde também
prendia a ombreira, mostrando o braço mimoso, cuja tez roseava a camisa de
cambraia abotoada no punho por uma pérola.
Os lindos cabelos negros refluíam-lhe
pelos ombros presos apenas com o aro de ouro, que cingia-lhe a opulenta
madeixa; o pé escondia-se em um pantufo de cetim que às vezes beliscava a orla
da anágua, como um travesso beija-flor.
O casto vestuário da moça recatava-lhe
as graças do talhe; entretanto quando ela andava, e que seu corpo airoso nadava
nas ondas de seda e cambraia, sentia-se mais n'alma do que nos olhos o debuxo
da estátua palpitante de emoção. A cada movimento que imprimia-lhe o passo onduloso,
acreditava-se que o broche da ombreira partira-se e que os véus zelosos se
abatiam de repente aos pés dessa mulher sublime, desvendando uma criação
divina, mas de beleza imaterial, e vestida de esplendores celestes.
Aurélia atravessou o aposento, e chegando
à porta que ficava fronteira àquela por onde entrara, curvou de leve a cabeça
recolhendo-se para escutar; mas não ouviu senão o arfar do seio, que lhe
ofegava.
(...)
Seixas ajoelhou aos pés da noiva,
tomou-lhe as mãos que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode
sublime do coração que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o
balbuciar do filho.
A moça com o talhe lângüidamente
recostado no espaldar da cadeira, a fronte reclinada, os olhos coalhados em uma
ternura maviosa, escutava as falas de seu marido; toda ela se embebia dos
eflúvios de amor, de que ele a repassava com a palavra ardente, o olhar
rendido, e o gesto apaixonado.
-- É então verdade que me ama?
-- Pois duvida, Aurélia?
-- E amou-me sempre, desde o primeiro
dia que nos vimos?
-- Não lho disse já?
-- Então nunca amou a outra?
-- Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios
nunca tocaram a face de outra mulher, que não fosse a minha mãe. O meu primeiro
beijo de amor, guardei-o para minha esposa, para ti...
Soerguendo-se para alcançar-lhe a
face, não viu Seixas a súbita mutação que se havia operado na fisionomia de sua
noiva.
Aurélia estava lívida, e a sua beleza,
radiante há pouco, se marmorizava.
-- Ou para outra mais rica!... disse
ela retraindo-se para fugir ao beijo do marido, e afastando-o com a ponta dos
dedos.
A voz da moça tomara o timbre
cristalino, eco da rispidez e aspereza do sentimento que lhe sublevava o seio,
e que parecia ringir-lhe nos lábios como aço.
-- Aurélia! Que significa isto?
-- Representamos uma comédia, na qual
ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este
orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a
esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor.
Entretemos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao
que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.
-- Vendido! exclamou Seixas ferido
dentro d'alma.
-- Vendido sim: não tem outro nome.
Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste
indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o.
Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o
triplo, toda a minha riqueza por este momento.
Aurélia proferiu estas palavras
desdobrando um papel, no qual Seixas reconheceu a obrigação por ele passada ao
Lemos.
Não se pode exprimir o sarcasmo que
salpicava dos lábios da moça; nem a indignação que vazava dessa alma
profundamente revolta, no olhar implacável com que ela flagelava o semblante do
marido.
Seixas, trespassado pelo cruel
insulto, arremessado do êxtase da felicidade a esse abismo de humilhação, a
princípio ficara atônito. Depois quando os assomos da irritação vinham
sublevando-lhe a alma, recalcou-os esse poderoso sentimento do respeito à
mulher, que raro abandona o homem de fina educação.
Penetrado da impossibilidade de
retribuir o ultraje à senhora a quem havia amado, escutava imóvel, cogitando no
que lhe cumpria fazer; se matá-la a ela, matar-se a si, ou matar a ambos.
Aurélia como se lhe adivinhasse o
pensamento, esteve por algum tempo afrontando-o com inexorável desprezo.
-- Agora, meu marido, se quer saber a
razão por que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la; e peço
que me não interrompa. Deixe-me vazar o que tenho dentro desta alma, e que há
um ano a está amargurando e consumindo.
A moça apontou a Seixas uma cadeira
próxima.
-- Sente-se, meu marido.
Com que tom acerbo e excruciante
lançou a moça esta frase meu marido,
que nos seus lábios ríspidos acerava-se como um dardo ervado de cáustica
ironia!
Seixas sentou-se.
Dominava-o a estranha fascinação dessa
mulher, e ainda mais a situação incrível a que fora arrastado.
Senhora é a história de uma jovem rica, linda e formosa que compra um
marido. Nada demais, considerando-se os costumes da sociedade brasileira
da segunda metade do século XIX. Era praxe a famílias ricas o casamento por
interesse e o oferecimento de
um dote a
um homem que se dispusesse a casar. Era assim que muitos homens bastardos
ascendiam socialmente. Entretanto, o que José de Alencar nos oferece no romance
é uma dura crítica social a esse tipo de transação, em que os bens materiais
subjugam o sentimento amoroso. Aurélia Camargo é a nova estrela que raiou no
céu fluminense; a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em
disponibilidade. Acontece que Aurélia não fora sempre assim. Era moça pobre e
órfã que ajudava a mãe nas costuras, o único sustento das duas. Tinha 16 anos
quando conheceu Seixas. Apaixonaram-se. Porém, movido por dificuldades
financeiras, Seixas a abandona para casar-se com outra, devido a um dote de 40
contos de réis. Inesperadamente, para sorte de Aurélia, morre-lhe o avô rico
que lhe deixa enorme fortuna. Aurélia torna-se rica e arma o plano para ter Seixas
de volta por um dote de 100 contos de réis, como forma de vingança.
Senhora só não é um romance extraordinário, porque José de Alencar não leva
a cabo a ideia primeira de desmontar a hipocrisia da sociedade imperial de sua
época. Seixas acaba se mostrando um moço fino de boa índole, que fez o que fez
forçado por pressões econômicas. Ele trava uma árdua batalha para resgatar sua
independência. Mas é um romance ótimo de se ler ou reler. José de Alencar
era exímio construtor de metáforas e descrições deslumbrantes de ambientes e
pessoas. O romance prende a tenção do leitor desde o início.
Caso queira entrar em contato com a obra, busque a edição da Penguin/Companhia
das Letras, que apresenta um texto bem diagramado, de leitura confortável, além
de apresentar uma introdução esclarecedora do professor Antônio Dimas. Vale a
pena!
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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José de Alencar
. Senhora. SP,
Penguin/Cia. Das Letras, 2013, 336 pp, R$ 29,00