valter hugo mãe disse em um
programa de televisão que escolheu o nome mãe como uma coisa literária de
completude. Sempre esteve convencido de que as mulheres, através da
maternidade, experimentam o extremo da humanidade: não há nada que um ser
humano possa fazer de mais milagroso do que a multiplicação, de desdobrar seu
corpo em dois. os homens são a parte fraca da humanidade, pois há uma lacuna,
um espaço vazio no homem, pois temos uma dimensão afetiva que não fica
aproveitada, a menos que tenhamos filhos. a vida é uma coisa terrível, por isso
se precisa de epifanias de felicidade que é uma coisa que se perde à medida que
se conquista. a felicidade é podermos ser o que somos.
a máquina de fazer espanhóis é a renúncia da
felicidade de sonhar, pela consciência da perda. o título refere-se a uma
frustração portuguesa contínua, que durou 800 anos de soberania e fez com que
os portugueses pensem de vez em quando: se fôssemos espanhóis teríamos uma
dignidade de melhor qualidade. a máquina de fazer espanhóis é Portugal. vejamos
um trecho emblemático:
antônio
jorge da silva está diante do corpo da mulher morta que não lhe diria mais
nada, por mais insistente que fosse o seu desespero, sua necessidade de
respirar através dos seus olhos, sua necessidade vital de respirar através de
seu sorriso. ele e sua mulher morta que se demitia de continuar a
justificar-lhe a vida e que, abraçando-lhe como podia, entregava-lhe tudo de
uma só vez. e ele, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do
medo e recomeçava a gritar.
com a
morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia
esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou
de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para
que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez
por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte,
tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o
fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem
não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os
braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe
deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas
não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante. caí sobre a cama
e julguei que fui caindo por horas, rostos e mais rostos colocando-se diante de
mim, e eu por ali abaixo, ainda, sem saber de nada. quando, por fim, me
levantei, estava a anos-luz do homem que reconheceria, e aprender a sobreviver
sos dias foi como aceitar morrer devagar, violentamente devagar, à reveia de
tudo quanto me pareceria menos cruel. e a natureza, se do meu coração não se
esvaziou o amor pela laura, estaria numa aniquilação imediata para mim também,
poupando-me à miséria de ver o sol que arde sem respeito por qualquer tragédia.
um
problema com o ser-velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas
quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim
seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento,a
inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas
a alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se
destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico. a
repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos
mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder
capacidades. a esperança que se deposita na criança tem de ser inversa à que se
nos dirige. e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é
por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir
como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que,
na distração cada vez maior, na perda de reflexo e de agilidade mental, fazemos
coisas sem saber e não as fazemos estupidez. fazemos por descoordenação entre o
que está certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certou ou
errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós.
enquanto alguns velhos queriam
acreditar que a saúde não lhes faltaria e que poderiam concretizar muitos
projetos, antônio jorge da silva não concebia o que era chegar àquela idade e
ter projetos. o seu projeto era esquecer tudo, era protestar contra a morte de
laura convencendo-se de que, depois da morte de alguém que nos é essencial, ao
menos a memória do amor deveria ser erradicada também.
a máquina de fazer espanhóis, assim como outros livros
do autor é escrito todo ele em minúscula, como forma de colocar tudo no mesmo
pé de igualdade. Ele abandonou esse recurso nos livros mais recentes.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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valter hugo mãe. a máquina de
fazer espanhóis. sp, cosac naify, 2013, 256 pp., R$ 39,00
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