Crime e castigo inaugura a trilha de
obras-primas de Dostoiévski, junto com, O
Idiota e Os Demônios, além de
duas novelas primorosas, O Jogador e O Eterno Marido. Quando se
conhecem as condições em que ele viveu, parece incrível o fato de ele ter sido
capaz de produzir, em tão pouco tempo, tantas obras-primas. Enfrentou a pobreza
e contínuas mudanças de residência para fugir de credores (por causa do jogo) e
de familiares gananciosos e foi viver obscuramente na Alemanha e na Suíça até
1871. Também sofreu repetidos ataques epiléticos. . Se nos romances anteriores
já havia a preocupação com a dignidade do ser humano independentemente de sua
condição social, agora encontramos um viés filosófico e psicológico envolvendo
as ações de Raskólnikov, o protagonista.
Dostoiévski
apresenta Raskólnikov como um rapaz muito pobre, apesar de extremamente
orgulhoso, causando a impressão de que ocultava algo de si aos demais. Se
esquivava de todos na universidade, menos de Razumíkhin, que se tornou seu
amigo. Sua mãe e irmã moravam no
interior, também em situação de emergência. Mesmo assim, pede dinheiro à família
para atenuar a miséria em que vivia, em São Petersburgo. A ideia de cometer um
assassinato com fins utilitaristas (mais ou menos a ideia de que devemos considerar o bem-estar de
todos e não o de uma única pessoa), já vinha rondando a mente do protagonista.
A época em que transcorre a narrativa coincide com o movimento pregado pelos jovens intelectuais russos, o
nihilismo, cuja principal característica era uma visão cética radical em
relação às interpretações da realidade, que aniquila valores e convicções. O
grande mérito de Dostoiévski, ao criar o personagem, é que ele não é plano.
Pelo contrário, é um personagem complexo que delira entre ideias racionais que
forjam-lhe um conceito de moral, e os princípios cristãos de compaixão e
igualdade.
Passeando
num final de tarde pela zona do mercado de ambulantes de gêneros diversos e frutas, notou
uma senhora conversando com uma conhecida. Essa conhecida era Lisavieta
Ivánovna, a irmã caçula de uma velha viúva usurária, com quem ele estivera na
véspera, empenhando um relógio. Ao ouvir que essa irmã não estaria em casa na noite
seguinte e que a velha estaria sozinha em casa, foi tomado de uma sensação
estranha que foi originando o seguinte pensamento: se matasse e saqueasse a
velha maldita, não sentiria remorso. Com o dinheiro da velha poderia distribuir o dinheiro a pessoas necessitadas,
ajudar algum mosteiro, salvar famílias da miséria, da desagregação, da morte,
da depravação e das doenças venéreas. Ele rouba o machado do zelador do prédio
onde aluga um quarto e segue até a casa da usurária. O que não contava, é com o
fato de que a irmã da agiota, provavelmente grávida, estivesse em casa. Acaba
matando as duas e foge com os bens.
Quando
volta para seu quarto, recoloca o machado no quarto do zelador, esconde o
produto do roubo num buraco no papel de parede e tenta tirar as manchas de
sangue da roupa. Desgastado pela tensão nervosa e pela doença, cai num sono
febril até que é despertado por uma intimação do posto de polícia local. Chega
lá horrorizado, mas fica sabendo que a intimação diz respeito a uma dívida que
tem com a dona da pensão onde mora. Sente-se salvo, mas desmaia de fraqueza, ao
ouvir dois policiais mencionarem o assassinato. Pensando que sua atitude
pudesse levantar suspeitas, quando se recupera, volta ligeiro ao quarto a fim
de remover os bens roubados, escondendo-os debaixo de uma pedra junto ao
mictório num parque. A seguir, perde a consciência por quatro dias. Quando
desperta, vê que está sendo cuidado pelo amigo Razumílkin e mais o delegado.
A
partir daí, é esmagado e oprimido pelas consequências morais e psíquicas de seu
ato criminoso, ao mesmo tempo em que passa a revelar traços de caráter. Em vez
de medo e angústia, mostra agora raiva e ódio contra todos os que estiveram
cuidando de sua doença e decide fugir desse cuidado opressivo.
Escreve
e publica, então, um artigo polêmico lançando a questão de que os indivíduos se
subdividiam em "ordinários" e
"extraordinários". Os ordinários são predestinados a viver na
obediência, para cuidar dos outros, sem o direito de infringir a lei. Já os
extraordinários teriam o direito de cometer toda sorte de crimes e infringir a
lei de todas as maneiras justamente por serem extraordinários.
O
romance é um primor de suspense policial, onde D0stoiévski traça com maestria o
caráter psicológico contraditório de Raskólnikov. O encontro dele com Sonia,
jovem prostituta, quase no final da narrativa, é fundamental para o desfecho do
livro.
Tradução
de Paulo Bezerra.
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Fiódor
Dostoiévski. Crime a castigo. 6ª
ed., SP, Editora 34, 2009, 568 pp.
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