Em
Dom Quixote, Cervantes (15457/1616)
faz o contraste entre a aparência e a realidade, na figura de Don Alonso
Quijano, um personagem maravilhoso por
conter em si um paradoxo: é bom e ridículo. Leitor assíduo de livros de
cavalaria , de repente começa a se imaginar um cavaleiro andante. Enlouquece,
mas sem perder necessariamente a razão.Seus discursos são enlouquecidos, quando
trata de cavalaria, e sensatos, quando se trata de outras coisas. Na intenção de viver sua fantasia, trata de
conseguir um cavalo, mais tarde um escudeiro e um amor impossível. E passa a se chamar Dom Quixote de La Mancha.
A
primeira saída de Quixote de sua aldeia, para viver suas aventuras, foi de
forma solitária. Ao chegar a uma venda, dizendo-se cavaleiro, faz com que os
frequentadores do lugar armem uma paródia das festa solenes dos livros de
cavalaria, onde armam o herói com toda
pompa e fervor religioso. Quixote jura defender os fracos, a justiça e os
crentes a Deus. Assim, passa a ter sua
espada e esporas para cavalgar seu cavalo Rocinante. A partir daí, o romance
vai transcorrer centrado nesse equívoco. As pessoas que cruzarão com Quixote em
sua jornada sabem tratar-se de um louco, mas interagem com ele, compondo
inúmeras farsas muito engraçadas.
A
segunda saída do herói se dá do capítulo VI ao LII, fechando a primeira parte
da narrativa. Dom Quixote se empenha em encontrar alguém a acompanhá-lo em sua
nova jornada, servindo-lhe de ajudante. Acaba encontrando em Sancho Pança essa
figura, um sujeito bom, ingênuo e parvo, o único que parece acreditar na
veracidade de suas loucuras. Quixote lhe promete uma ilha para ser governador,
caso saiam vencedores de suas batalhas. A
partir daí, aparecem a aventura dos moinhos de vento, que Quixote vê como
terríveis gigantes a serem derrotados. Encontram-se depois com uns pastores de
cabras que lhe contam a história de Grisóstomos, jovem rico que se toma de
amores por Marcela, pastora órfã. Marcela recusa-se a casar com o jovem e este
morre de infelicidade. Depois, há o encontro com um rebanho de ovelhas, que a
imaginação de Dom Quixote converte em exércitos. De outra feita, num ato de
caridade, liberta um cativo dos grilhões impostos por doze homens
perigosos. Quando chegam a Sierra
Morena, acompanham a comovente história de Cardenio e Lucinda e Fernando e
Dorotea. Essa história segue por vários capítulos da primeira parte da
narrativa. Cardenio ama Lucinda e Fernando está comprometido dom Dorotea.
Fernando decide abandonar Dorotea e ficar com Lucinda. Cardenio e Dorotea
protagonizam sua desilusão amorosa coadjuvado por Quixote, Sancho e outros
moradores do lugar. O relato dos dois faz Quixote pensar em ter sua amada, e
decide escrever uma carta à figura idealizada de Dulcineia del Toboso. O cura,
o barbeiro e Dorotea, para apaziguar
Quixote, lhe contam a história da princesa Micomicona, uma invenção para tentar
levar Quixote de volta a sua cidade e fazê-lo recuperar a razão. Dorotea
representa a princesa e trata de satisfazer todas a dúvidas de Quixote. Depois
de muitas aventuras e histórias intercaladas, ele é levado de volta para sua
cidade para que se cure de sua
loucura e volte a viver tranquilamente.
Cervantes,
que até então se punha como um narrador erudito que recopilava dados de outros
autores para formar sua história, passa a introduzir um narrador árabe chamado
Cide Hamete Benengeli, que escrevera a História de Dom Quixote de La Mancha.
Desde então, até o final da narrativa, Cervantes oferecerá a seus leitores a
tradução desse suposto texto árabe, como forma de parodiar o estilo dos livros
de cavalaria. Há outras paródias como a do Amadis
de Gaula, a dos Dez livros de
fortuna de amor, de A Araucana e de Orlando Furioso, de Ariosto. No caso de
Orlando, este enlouquece de amor, ao passo que Quixote enlouquece da leitura.
Na
segunda parte, dom Quixote e Sancho saem da esfera da realidade a que
pertenciam no livro primeiro, para vagar em carne e osso, saudados pelos
leitores de sua história, por um mundo que, também ele, representa um grau mais
alto de realidade em relação ao mundo impresso. Quixote tem um discurso
humanista quando discorre sobre a educação, e sobre a poesia, todos repletos de
razão, sentido de justiça, humanidade e nobreza formal. Quixote pode ser
considerado louco, mas não é tolo. Tem a história que narra as bodas campestres
da belíssima Quitéria com o rico Camacho. Só que havia um noivo preterido, o
valente Basílio. Quitéria e Basílio amavam-se desde crianças. Mas o pai da
noiva força a filha a casar-se com Camacho. A história começa como uma tragédia,
mas termina de forma bem humorada, pois trata-se de uma pantomima arquitetada
por Basílio, para tentar impedir o casamento da amada.
A
aventura do leão também é outro dos grandes momentos da narrativa de Cervantes.
Trata-se de uma comédia patética que termina com a admiração do escritor pela
loucura heroica de seu protagonista. Quixote encontra uma carroça que leva
feras africanas. Quixote desce de Rocinante empunhando o escudo e sua espada de
araque, pronto para lutar com o leão. Exige que lhe abram a jaula para que o
animal saia. O bicho olha para Quixote com cara de aborrecido, dá-lhe as costas
e volta a se deitar na jaula. Quixote fica indignado com a atitude do animal,
pede que o açoitem para que ele venha para a luta, mas o animal não lhe dá a
mínima.O heroísmo de Quixote é anulado, não fosse ele pensar que a grandeza de
seu coração já está suficientemente demonstrada. Nenhum guerreiro está obrigado
a mais do que chamar o inimigo para o combate e esperá-lo em campo aberto. Se o
outro refuga o combate, que a infâmia caia sobre ele! A partir de então,
Quixote passa a ser outorgado com outro título, o fidalgo dos leões.
Um
romance será grandioso, quando mais vida interior tiver. E há muito mais, no
romance. Dom Quixote é apresentado, finalmente, à figura de Dulcineia del
Toboso, figura idealizada por Sancho Pança para satisfazer as fantasias de seu
amo. Ao vê-la, entretanto, Quixote percebe que aquela mulher feia e de maus
modos não poderia ser sua amada Dulcineia, a menos que algum mago a tenha transformado
daquela maneira para enganá-lo. Quixote agora passa a ver a realidade tal como
ela é, buscando enganar-se de que poderes mágicos transformam alhos em
bugalhos.
No
final, Quixote recobre a sanidade, dorme profundamente, e ao despertar está curado,
por misericórdia divina. Seu entendimento está livre do mundo nebuloso da
cavalaria. Quixote reconhece a própria loucura e não quer mais ser chamado de
Dom Quixote de La Mancha, mas Alonso Quijano, cidadão comum.
"Já
tenho o juízo livre e claro, sem as sombras tenebrosas da ignorância que sobre
ele puseram minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de
cavalaria. Já reconheço seus disparates e seus logros, e só me pesa que este
desengano tenha chegado tão tarde, que sejam luz da alma. Eu me sinto às portas
da morte, minha sobrinha, mas gostaria de encará-la de um modo que mostrasse
que minha vida não foi tão ruim a ponto de me deixar com fama de louco, porque,
apesar de eu tê-lo sido, não gostaria de confirmar essa verdade e minha morte.
Vamos, minha amiga, chame meus bons amigos, o padre, o bacharel Sansão Carrasco
e Mestre Nicolás, o barbeiro que quero me confessar e fazer meu testamento".
No
testamento, Dom Quixote deixou as suas posses para a sobrinha Antônia Quixana.
Se ela quiser-se casar, que case com homem que deteste livros de cavalaria. Se
por infortúnio isso viesse a acontecer, a sobrinha perderia todos os bens
deixados a ela naquele testamento.
Dom
Quixote morre e assim acaba a história do cavaleiro da triste figura (ou triste
semblante).
Tradução
de Ernani Ssó
Imagens
de Samuel Casal
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Miguel
de Cervantes. Dom Quixote - 2
volumes. SP, Penguin Companhia, 2012, 1328 pp. Preço médio de 80 reais, a caixa
com os volumes novos.
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