Aconteceu
um dia, quando em torno do meio-dia me encaminhava para o meu barco, de eu
ficar extraordinariamente surpreso com a marca de um pé descalço de homem na
praia; claramente visível na areia: foi como se um raio me tivesse atingido, ou
como se tivesse avistado uma aparição. Eu me pus à escuta, olhei a toda a
volta, mas não ouvi e nem vi nada. Subi a um ponto mais elevado para enxergar
mais longe, percorri toda a praia de ida e de volta, mas tudo sem resultado, e
não vi outra pegada além daquela. Voltei até lá para verificar se encontrava
alguma coisa e se não podia ser minha imaginação; mas não havia a menor
possibilidade disso, pois era exatamente a marca de um pé descalço, com todos
os dedos, o calcanhar e todas as partes de um pé. Como tinha chegado ali eu não
sabia, nem tinha como imaginar. Mas depois de inúmeros pensamentos agitados,
completamente confuso e quase fora de mim, cheguei de volta a minha
fortificação sem sentir, como se diz, o chão debaixo dos meus pés, mas
aterrorizado até o último grau, olhando para trás a cada dois ou três passos,
confundindo cada arbusto ou árvore e imaginando que cada tronco a uma certa
distância era um homem. E nem sei descrever de quantas formas a imaginação
assustada me representava as coisas, quantas ideias insensatas brotavam a cada
momento em minha fantasia, e quantos caprichos estranhos e incontáveis
ocorreram no caminho aos meus pensamentos.
A
cena descrita brilhantemente por Defoe mostra a tensão que envolve um homem
solitário, já conhecedor da ilha, surpreso e temeroso de que seu isolamento
tivesse chegado ao fim. O vestígio de
outro ser humano, que lhe poderia ser amigo ou inimigo, marca uma crise no
desenrolar da história.
Ao
contrário de As viagens de Gulliver,
que mostra uma visão desacreditada da humanidade, Robinson Crusoé é o protótipo do colonizador inglês propulsor da
expansão territorial e do progresso da civilização. Ele é um marujo inglês que
conhece terras distantes, tendo inclusive morado no Brasil, onde teve fazenda,
cultivando e traficando escravos. Certo dia, cansado de ficar no mesmo lugar,
deixa suas posses brasileiras a cargo de sócios e empreende novas viagens
marítimas. Um dia, naufraga e chega numa ilha aparentemente deserta, onde vive
por quase trinta anos, tendo como servo e companheiro o índio Sexta-Feira, que
foi salvo por Crusoé quando índios canibais que aportaram na ilha tinham-no
trazido para comer.
Daniel
Defoe cria, assim, o microcosmo do processo civilizatório numa ilha localizada
no Oceano Pacífico, próximo à costa do Chile. Robinson Crusoé, para que possa
sobreviver, vai construindo cultura, domesticando a natureza a seu redor,
construindo casa, amansando animais e aprendendo a caçar os bichos certos para
comer. Depois ensina a língua e hábitos ocidentais ao indígena seu escravo.
Depois luta com forças externas à ilha para defender seu território. Cria uma
colônia no local onde vivera e volta à Inglaterra para morrer feliz.
Os
adeptos da ecologia vão se aborrecer com Robinson Crusoé, pela facilidade com
que ele mata as cabras com filhotes para domesticá-los, ou quando mata aves
para ensinar a Sexta-Feira como manejar uma arma. Crusoé também exerce sua
superioridade de homem branco em relação às populações ágrafas. As coisas eram
assim na Inglaterra de 1700. As expansões marítimas descobriam e tomavam posse
das terras descobertas, subjugando e matando índios.
Natural
de Londres, Daniel Defoe (1660/1731) era
exímio escritor. Aliás, foi um dos precursores da arte de escrever
profissionalmente, ainda que vivesse quase na miséria. Escreveu de tudo, de
tratados sobre criminologia, passando por ensaios científicos e também pela
escrita literária. Além de Robinson Crusoé, é conhecido pelo romance Moll Flandres, precursora do romance
burguês.
Robinson Crusoé também foi
adaptado para o público infanto-juvenil,mas a obra original é literatura para
os grandes.
Tradução
de Sérgio Flaksman
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário