Rubião fitava a enseada, — eram
oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do
chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava
aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra
coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é
agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que
lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada,
para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na
mesma sensação de propriedade.
- Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele.
Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança
colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o
que parecia uma desgraça...
Quincas Borba é um romance realista. Não o
realismo que reduz seus personagens a simples produtos da sociedade ou à sua
carga genética. Trata-se de um realismo em vários níveis de leitura, com toques
psicológicos, com uma ironia fina inteligentíssima. O excerto acima ilustra o
fato de que Rubião, no presente momento, é um capitalista, pensando na
transformação que sua vida tivera, quando ficou rico. Rubião recém entrou no
mundo dos que avaliam as coisas sob o ponto de vista do lucro. Mas há um abismo
entre a consciência e os sentimentos de Rubião (que acabará levando-o à loucura).
Quincas Borba começa em1867 e termina em
1871. Rubião, modesto professor
primário, herda do filósofo Quincas Borba uma fortuna, com a condição de cuidar
de seu cachorro, a quem dera o próprio nome. Entretanto, com o dinheiro herda
também a loucura do amigo. Sua fortuna se esvai em ostentação e no sustento de parasitas;
mas serve sobretudo como capital para as especulações comerciais de um
arrivista hábil, Cristiano Palha, por cuja mulher,Sofia, Rubião era apaixonado.
Palha usa a sensualidade de Sofia, sua esposa, para atrair Rubião e, assim,
espoliá-lo. Ao contrário de Bentinho, que queria esconder Capitu dos olhares
alheios, Palha tira prazer da inveja dos outros. Sofia também gosta de atrair
os homens, anda habitualmente muito decotada, apesar de seus desejos de um
possível adultério fiquem apenas na fantasia.
No fim, pobre e louco, morre abandonado. Os
fracos e os puros foram sutilmente manipulados como coisas e em seguida são
postos de lado, mostrando os crápulas como triunfadores. Rubião observava em
sua solidão, que o cachorro que maltrata
vez ou outra, era humano. Seria o Quincas Borba cachorro o próprio filósofo
Quincas Borba que começa como homem, enlouquece e acaba como um pobre bicho,
fustigado pela fome e maus tratos.
É do filósofo e louco Quincas Borba o
conceito de Humanitas, que encerra o princípio de substância ou vontade. O encontro
das duas manifestações, ou a expansão de duas formas, pode determinar a
supressão de uma delas, porque a
supressão de uma é condição da sobrevivência da outra, Daí o fato de Quincas
Borba afirmar o caráter benéfico da guerra. Ele cita a Rubião a famosa
expressão "ao vencedor, as batatas". Supõe o leitor um campo de
batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das
tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra
vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em
paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de
inanição. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria
da vitória e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse
isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se pelo motivo real de que o homem
só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de
que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor,
as batatas.
Ao Palha, a fortuna de Rubião. A este, a
loucura, a miséria e o esquecimento.
paulinhopoa2003@hotmail.com
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Machado
de Assis. Quincas Borba. SP,
Penguin/Companhia, 2012, 360 pp,
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