O linguista alemão Harald Weinrich nos fala em seu livro Lete, arte e crítica do esquecimento
(tradução de Lya Luft pela Civilização Brasileira) que "A morte é o mais
poderoso agente do esquecimento. Mas não é onipotente. Pois os homens desde
sempre ergueram trincheiras de recordação contra o esquecimento na morte, de
modo que rastros que fazem concluir a existência de uma memória dos mortos são
considerados por arqueólogos e estudiosos da história os mais seguros sinais de
que existiu uma civilização humana. Os rituais de culto aos mortos, com seus
pedidos, sacrifícios e ofertas nos túmulos, em muitos casos servem em primeiro
lugar para assegurar aos mortos um certo bem-estar no Além. Mas os monumentos
fúnebres fitam os vivos exortando-os a não esquecerem os seus mortos, e mesmo
assim, às vezes a esquecê-los um pouco, porque "a vida continua".
Portanto, o tempo se liga antes com o esquecer do que com
o lembrar. Mas quando os poetas abordam a memória dos mortos o esquecimento não
pode mais realizar seu jogo costumeiro com a memória humana. Ter mostrado isso
em perfeição clássica é privilégio de um dos maiores poetas da literatura
mundial, Dante, que ergueu em torno da memória dos mortos - sempre ameaçada
pelo esquecimento - a duradoura catedral da sua Divina Comédia. Dante Alighieri (1265-1321) escreveu essa obra em
cem cantos de 14.233 versos no começo do século XIV, quando ele próprio fora
banido da cidade natal e estava ameaçado de esquecimento no exílio.
A Divina comédia é o relato da salvação da alma de seu autor,
Dante. Ele descreve uma jornada épica através do Inferno, do Purgatório e do
Paraíso que culmina numa série de visões que lhe revelam o sentido final da
criação de Deus. O poeta romano Virgílio, autor da Eneida, é o guia de Dante
pelos nove círculos do Inferno e pelos sete terraços do Purgatório, mas, quando
os dois chegam ao Jardim do Éden, situado no topo da montanha do Purgatório,
Virgílio vai embora e Dante se reencontra com Beatriz, a mulher morta que ele
ainda adora, e é ela que o conduz através dos nove céus do Paraíso até o plano
da Presença Absoluta de Deus, para além do espaço e do tempo. Lá, por fim, é
concebida a Dante uma visão da Rosa do Justo, formada pelas almas daqueles que
conquistaram a salvação. De repente,
Dante nota que Beatriz não está mais com ele; ele grita de consternação, mas
então a vê no lugar designado para ela, em um dos círculos da rosa mística.
Beatriz sorri para ele uma última vez, antes de virar-se para contemplar em êxtase a fonte do amor eterno de
Deus.
Beatriz é a personagem que desempenha um papel providencial
no início e no desenrolar do poema de Dante. Graças à intersecção dela, Deus
permite que Dante empreenda a jornada e é ela também que propicia a inspiração
para a composição do poema que revelará o destino pessoal de Dante e oferecerá
um sentido final para a existência do homem na terra. Quem era, então, Beatriz?
Trata-sede Bice Portinari, que diz ter visto pela primeira vez quando tinha
nove anos de idade e tê-la revisto só nove anos depois, quando se negou a
reconhecê-lo. Essa rejeição fez com que Dante sublimasse seu amor por
Beatriz,um processo que continuou mesmo depois que ela se casou com outro
homem. Após sua morte, o amor de Dante tornou-se totalmente espiritual. (1)
A melhor tradução de A
Divina Comédia, segundo os críticos, parece ser a de João Trentino Ziller, pela editora Unicamp/Ateliê,
com desenhos de Botticelli. Mas, a obra
encontra-se esgotada. A tradução que eu li é de Ítalo Eugenio Mauro, em edição
bilíngue, em 3 volumes, da Editora 34.
Depois de conhecer universo de Dante, recomento
a leitura de Nove cartas sobre A Divina Comédia, de Marco Lucchesi,
estudioso da obra do poeta italiano, pela Editora Casa da Palavra. Escrito em
formato de cartas, é um convite para uma
viagem reveladora pelo universo poderoso da poesia e também da filosofia,
história e religião, a partir dA Divina Comédia.
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(1) Edwin Williamson in Borges, uma vida. Companhia das Letras.
Trad. Pedro Maia Soares
Obrigado pela informação, Raiom!
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