sábado, 10 de julho de 2010

Perdas

Lidar com perdas não é tarefa das mais fáceis. Mas é inevitável. As perdas fazem parte de nossa vida, seja uma perda amorosa, a perda de um emprego, uma oportunidade, seja a perda de um ente querido. A dimensão dramática do que significa uma perda eu tive com a morte de minha mãe. A ausência dela mostrou um espaço irreparável que não poderia mais ser preenchido. Era tratar de reorganizar a vida, o que fiz buscando meu primeiro emprego, pois era adolescente, nessa época. Hoje, pensando sobre isso, sinto que a pessoa que mais sentiu e se modificou, a partir da ausência de minha mãe, foi meu pai.
Seu sorriso já não era mais o mesmo, até quando algum tom alegre no ambiente o fazia sorrir. Quando não gostava de alguma coisa, limitava-se a resmungar e fechava a cara de poucos amigos. Às vezes eu implicava, perguntando-lhe o que era. Ele respondia nada. Certas dores no corpo, a pedra nos rins...
Percebia-se a mudança também no rosto. A boca que pronunciava palavras silenciosas, enquanto jogava cartas sozinho na sala, não tinha mais cor. Era uma boca de defunto. Os olhos castanhos acumulavam as marcas do tempo a seu redor e os poucos cabelos da parte lateral da cabeça não escondem mais a mescla de grisalhos: era completamente branca.Quando me aproximava para lhe desejar bom-dia, o braço que me tocava o ombro estava completamente flácido.
Quando me sentava na outra ponta da mesa para tomar o café da manhã, sentia sua respiração ofegante. Tossia de vez em quando. Ouvia o barulho da xícara raspando o pires e me sentia assim como ele, também diminuído, gelado, trancado na mesma saudade, parceiro de mesma solidão.
O silêncio enchia a sala. Quando essa triste lembrança da morte dela se tornar saudade, talvez pudéssemos voltar a discutir futebol e política, sorrindo e brigando como velhos amigos. Torcia para que o tempo fizesse surtir seu efeito.
Não foi possível. A saudade dela acabou tirando-lhe a vida alguns anos depois.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Solidão que une

Ontem assisti a um filme perturbador em dvd: "Ander", filme falado em basco e espanhol, com legendas em espanhol. Ander era um homem de quarenta anos que dividia suas tarefas numa fábrica de bicicleta com a vida no campo. Morava com sua mãe velha, moralista e autoritária, que se negava a falar espanhol com quem não fosse basco. Havia também a irmã, que estava prestes a casar.
Um dia, Ander sofre um acidente e quebra uma das pernas. Foi preciso contratar um ajudante rapidamente. Encontraram um peruano, Juan, que estava na região à procura de trabalho. Ele é contratado, apesar da objeção da mãe, por ser estrangeiro.
Aí a história ganha interesse: os dois tornam-se amigos e Ander descobre sentimentos que até então desconhecia. Busca aproximar Juan da família, contra a vontade da mãe. Na festa de casamento da irmã, Juan leva Ander ao banheiro, para ajudá-lo a urinar; Juan demonstra-lhe fisicamente seu afeto. Fazem sexo - Juan penetra Ander, que se desestabiliza, a partir de então.
Logo em seguida sua mãe morre. Os dois passam a viver sozinhos no sítio. Juan passa a ser maltratado. Ander trata-o com desprezo, mas vai conseguindo observar a dedicação do empregado para com ele e as coisas da casa. Sente a crise, vê seu relacionamento com amigos e parentes se modificar, e precisa decidir se deseja realmente incluir Juan em sua vida.
O que me chamou a atenção no filme foi que a solidão de Ander, assim como a de Juan, pediam a presença um do outro. Viver solitariamente é uma arte difícil de se aplicar na vida de alguém. Viver junto é bacana, mas difícil. Viver sozinho também é bacana, se for mais que uma opção, uma filosofia de vida. Permitir a presença do outro em nossas vidas requer uma política de relacionamento muito bem articulada. O amor (e a amizade), para criar raízes, precisa ser administrado com razão e sentimento.
Ander, que vivia solitariamente em seu cotidiano, fazendo sexo evetualmente com uma prostituta, descobriu a necessidade do amor na figura suave de Juan, que demonstrava seu carinho na maneira discreta de ser e agir.
O filme carrega outras simbologias interessantes: a atração que Ander sente por Juan começa situada na dominação do forte pelo fraco. O relacionamento dele com a mãe, a rigidez da educação que quando se desfaz, com a morte dela, deixa Ander desorientado. A homofobia de Ander, o moralismo da cultura espanhola, em termos mais abertos, enfim, o filme é riquíssimo. Pena que dificilmente circule nas telas brasileiras, não é filme fácil de se ver. Na Espanha ele foi proibido. Circula em festivais gueis, onde já ganhou prêmios, mas a temátima homossexual não é a bandeira do filme. Vale a pena vê-lo!
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Ander, Direção: Roberto Castón
Elenco: Joxean Bengoetxea, Christian Esquivel, Mamen Rivera