terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A Inserção da Literatura de Consumo no Âmbito da Cultura - 2ª parte

Retornemos, então, aos meios de comunicação que difundem a cultura de forma mais rápida, popularizando-a através da imagem. A divulgação da imagem é de suma importância, porque passa a influenciar fortemente a poesia brasileira, a partir da década de 50 pelos concretistas. Com o advento da televisão, a partir da década de 60, a imagem passa a conviver com as formas escrita e auditiva (o rádio). O advento da tevê incorpora uma linguagem cotidiana, de massa, que altera e acrescenta elementos novos à cultura brasileira. Os meios de comunicação visual veiculam mais rapidamente os processos de aquisição e informação. A tevê substitui o cinema e passa a ter a fama de divulgadora de cultura de massa, atingindo um número cada vez maior de pessoas. Temos aí a questão da comunicação de massa, que se mistura com a cultura popular distanciada da cultura erudita. Por atingir grande número de pessoas, passa a ser utilizada para divulgar a propaganda de consumo. Para atingir um número maior de pessoas, há uma homogeneização do aspecto cultura e uma adequação mediana que agrade a gregos e troianos, tornando a cultura de massa fraca estética e significativamente.
A cultura de massa que surge na década de 60 vem impulsionada com a ideologia hípie da década de 60 exportada dos EUA para o mundo, da experiência grupal de vida, com os megafestivais ao ar livre, expressando uma arte também grupal. No Brasil, esse reflexo configurou-se através de uma atividade mais caracteristicamente brasileira, através dos festivais da canção que acabaram chegando à televisão. A música popular passa, a partir daí, a tomar gradativamente o lugar da poesia. As letras das canções retomam a importância da oralidade de tempos idos, para divulgar a palavra. Atualmente, elas tornam-se objeto de estudo da literatura brasileira. A questão da delimitação da literatura como forma de cultura da sociedade de consumo atual, compreende a forma da canção como veículo de expressão da arte da palavra.
Isto posto, e tomando-se a noção de que a canção, por apresentar o uso da palavra criativamente pode ser estudada literariamente, sigamos com uma análise de casos envolvendo imagens de nosso cotidiano - ou do cotidiano de uma determinada época, sob o pressuposto de que "Não é possível analisar uma obra literária, deixando de estabelecer a relação com a sociedade." A afirmação parte da concepção adorniana, de que a autonomia da arte é problemática, na medida que, a partir do século XIX, com a divisão do trabalho, transformou-se em mercadoria.
A canção popular, já dissemos, adquiriu força com os festivais da canção veiculados pela televisão na década de 60/70. Vem dessa época, também, o movimento artístico brasileiro que se denominou Tropicalismo e teve os músicos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil representantes das muitas figuras importantes da época. A Tropicália consistiu em reaproximar os ideais do manifesto modernista de 22, difundi-lo e acrescentar tudo o que de moderno estivesse acontecendo no momento, sendo incorporado no estilo de vida da sociedade urbana. Era a releitura do antropofagismo oswaldiano: deglutir e retornar à realidade sobre o aspecto da novidade.
Caetano Veloso utilizou em suas canções as imagens presentes na
sociedade de consumo da época. Alegria, Alegria, um dos ícones do movimento, revela interessantemente o cotidiano urbano de quem consome coca-cola, curte seus ídolos cinematográficos. A literariedade do poema está na afirmação do eu do poeta destacado do mundo massificado. No cotidiano de quem caminha contra o vento, sem uma identidade específica, encontra-se a pessoa que afirma: Eu vou/Por que não? Por que não? O poeta cantador pretende (quer) seguir vivendo, incorporando ao seu estilo de vida o que o mundo moderno lhe proporciona nas bancas de revistas, nas notícias, nos presidentes, na namorada (vínculo com a tradição: o casamento). Caetano Veloso veicula na canção dois universos: o da massificação (ou modernização, para sermos menos radicais) e o do indivíduo devidamente valorizado dentro desse universo. A canção apresenta o enredo de uma crônica da influência dos meios de comunicação de massa nos tempos modernos por um sujeito único.
A crônica é outra forma de expressão da literatura que representa a sociedade urbana em seu cotidiano. Não podemos esquecer de que o jornal e a revista continuam a existir como forma de divulgação da cultura popular. E a crônica, assim, insere-se como modelo de divulgação da literatura, pela simplicidade discursiva e por veicular elementos da atualidade do leitor de jornais e revistas, propiciando, também, leitura rápida e descartável.
Gênero híbrido, a crônica trabalha com o fato real. O cronista é um contador de histórias curtas, geralmente irônicas, que mistura o narrador à personagem, criando o contraste que acentua a ironia presente.
Luís Fernando Veríssimo, um dos melhores cronistas atuais, faz uma sátira da miséria humana em O mais terrível. A história gira em torno de um motorista que para no sinal e é abordado por uma criança de rua que lhe pede um trocado, chamando-o de tio. O narrador/personagem vai acrescentando elementos a partir da expressão "O mais terrível", até quebrar a expectativa criada pela expressão, provocando um efeito do humor. Contrapõe o mais terrível de ela estar no chão e ele no carro bacana, dele escolher a cara para dizer que não tem trocado, dela ter-lhe cuspido na cara e, o mais terrível: não lhe ter acertado o cuspe. A crônica é formada for partes, a princípio autônomas, mas que se relacionam no sentido geral do texto, que é a crónica da convivência com a dor dos outros, sem que se possa fazer nada para mudar a realidade do momento.
Nelson Rodrigues foi outro dos que modernizaram a literatura brasileira, pela presença cotidiana do ser humano comum, do subúrbio, como personagem central de sua obra, tanto o conto, a crônica e o teatro. Moderno por colocar o ser humano comum com sua linguagem, suas taras, seus impulsos primários que movem as paixões. No conto A Esbofeteada, o narrador conta a história de Silene, que rouba o namorado da amiga pelo prazer de ser esbofeteada como Ismênia tivera sido por Sinval, o namorado.
Assim, Nelson Rodrigues trabalha a ambivalência ódio/amor, repulsão/atração. Toda a castidade esconde em si a obscenidade. O grande tema de Nelson Rodrigues em sua obra foi o puritanismo. Tema esse que aparece no conto desenvolvido pelo absurdo, mostrando o seu reverso: a inconfessada satisfação pela subjugação física que sexualmente dá prazer, numa inversão moral de Silene, a tarada.
Finalizando, cumpre ressaltar os limites da criação literária através do que ela expressa de popular em personagens e situações através da canção, da crônica e do conto de cujos autores citados tivemos um caso elucidativo. Dentro de cada forma literária encontra-se o elemento integrador dessas três modalidades: a classe média exposta em seu cotidiano, envolvida em fatos sociais presentes da vida brasileira.

Bibliografia consultada:
Textos teóricos:
SODRÉ, Nelson W. Síntese da história da cultura brasileira. 3a. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974.
PEREIRA, Carlos A. M. O que é contracultura. 4a. ed. São Paulo, Brasiliense, 1983.
SANTANA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis, Vozes, 1986.
PAVIANI, Jayme. Estética mínima. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1996
Textos literários:
Alegria, alegria. Caetano Veloso
O mais terrível. Luís Fernando Veríssimo
A esbofeteada. Nelson Rodrigues

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A inserção da literatura de consumo no âmbito da cultura - 1ª parte

Para pensar a forma literária e seu lugar na cultura brasileira, precisa-se começar firmando os pressupostos gerais e algumas referências teóricas básicas para se objetivar os limites da literatura no âmbito dessa cultura.
Entendem-se os limites da literatura nas formas como ela se apresenta, para desvendar os valores de uma época. A crónica, o conto e a canção (como forma substitutiva da literatura poética na atualidade) serão objeto de discussão neste trabalho, como modelos delimitativos presentes na sociedade moderna, isto é, os modelos de expressão artística consumidos pela classe média na atualidade.
Entretanto, para que se possa pensar a literatura dentro da cultura, é necessário que se determine sucintamente o que se entende por cultura, e que se delimite o marco inicial do avanço desse tipo de manifestação literária desde o surgimento da contracultura, lá pela década de 60.
Nelson Werneck Sodré, em sua Síntese da História da Cultura Brasileira, abre o livro apresentando uma definição dicionarizada de cultura (constante do Dicionário Filosófico Abreviado, de M. Rosental e P. ludin, Ediciones Pueblos Unidos, Montevidéu, 1950, p. 104): "cultura é um conjunto de valores materiais e espirituais criados pela humanidade no curso de sua história. Esses valores se expressam através da educação, do progresso, do trabalho, da literatura, da arte e demais instituições afins. Portanto, a cultura é um processo de recriação e por isso supõe em cada caso um espaço social e histórico determinado com marcas próprias."
Existem, assim, estágios de cultura que acompanham épocas históricas. Carlos Alberto Pereira em seu livro O Que é Contracultura , cita o escrito de Luís Carlos Maciel, publicado originalmente no Pasquim, sobre o fenômeno da contracultura, apontando a definição de cultura "como um produto histórico e uma criação arbitrária da liberdade, cujo modelo supremo é a arte." Importa, então, fixar a questão de que a manifestação artística é o símbolo mais completo da expressividade humana.
A necessidade da abordagem da cultura faz-se necessária para situar um estágio específico de sua evolução histórica na década de 60, quando as manifestações populares ganham causa e expandem-se os limites de acesso ao fenômeno cultural, através dos meios de comunicação, principalmente da televisão como fonte de entretenimento e lazer. A partir dessa década, a imagem passa a ocupar o sentido da arte de forma mais acentuada que a palavra escrita.
A televisão pode ser considerada o veículo máximo da massificação da cultura e de tudo o que se quiser fazer para canalizar informações e fixar hábitos e costumes como nenhum outro. Ela poderia abreviar o fim da literatura de grande porte (o romance, por exemplo) e sobressalta a homogeneização de gostos através da imagem? Espera-se que não. Mas, pode-se firmar o conceito de cultura de massa, ligando-o ao veículo de comunicação chamado televisão. A sociedade brasileira transforma-se, da década de 60 para cá, igualando gostos e costumes. E incentivando o consumo.
É importante destacar, que a análise da formalização literária está presente ao momento atual da literatura para a sociedade, com todo o lastro da necessidade de expressar e consumir a obra de arte como mercadoria. Por isso mesmo, a partir do consumo, é importante distinguir que ela assume conceitos um pouco mais restritos, cultura popular, cultura erudita, cultura de massa, contracultura. Toda essa dicotomia de conceitos expressa uma adequação moderna do que vem a ser a a literatura como uma forma de arte em sua acepção moderna, buscando adequar-se à sociedade de consumo.
Cabe, também, pensar como se processou a evolução da literatura dentro da sociedade de consumo. O fato dela ser uma sociedade capitalista, põe a literatura para ser aborvida como mercadoria. Esse dado inquieta, porque torna-se difícil a delimitação, uma vez considerada a arte um produto a ser consumido, da qualidade que classifica determinada forma de expressão como sendo arte ou não, arte boa ou ruim. Que valor possui uma arte popular? O que se dizer da arte massificada (e massificante)? Ou ainda, que tipo de literatura pode ser veiculada como forma de arte para ser vendida?
A cultura popular, embora seja confundida às vezes com cultura de massa, não tem uma correlação qualificativa sinônima uma da outra. A cultura popular, antes tida como uma manifestação natural do ser humano, passou a ser considerada historicamente cultura popular, a partir da criação do proletariado no final do século XIX. Ou seja, começa-se a falar de cultura a partir de uma sociedade urbana estabelecida sobre o capitalismo, o homem vendendo sua força de trabalho, caracterizando a sociedade de consumo. A arte popular passa a ser a arte do proletariado, uma arte mais simples.
A arte erudita, por sua vez, apossa-se da arte popular - não exclusivamente dessa arte popular do proletariado - mas da arte popular como um caráter imanente do ser humano que se manifesta de forma pura, simples, universalmente. A arte erudita sofistica esteticamente as formas de expressão da arte popular, passando a ser consumida por uma classe social aristocrática.
Continua

domingo, 12 de dezembro de 2010

O silêncio - uma leitura pessoal

Há um essencial promordial que aproxima a psicanálise da literatura: a metáfora. A literatura lida com a metáfora no campo ficcional, em confronto com a vida real. A personagem, embora verosimilhante, faz parte da fantasia. É dessa personagem que buscamos interpretar atos, atitudes, estilos de vidas, principalmente os conflitos,trazendo-os para nossa história cotidiana.
A psicanálise, grosso modo, lidaria com o paciente (o uso da terminologia é intencional), um ser real de carne e osso que relata ao terapeuta as histórias de sua vida, para que se possam traçar orientações para uma conduta mais saudável. Mas esse paciente relata fatos de uma fantasia porque, ao recontar determinado acontecimento, cria uma história, sua memória seleciona os que lhe interessa (ou seleciona coisas que surgem sem a censura prévia do paciente). Ao analista, cabe trabalhar com a metáfora de verdade contida nessa história. O paciente, como o escritor, usa-se da ficção para contar um fato real, com a diferença de o escritor tem domínio do que escreve e o paciente pode derrapar no inconsciente, esquecendo o que não lhe interessa ou o que lhe causa incomodação. Assim sendo, a história contada pode revelar nuances que só o analista consegue captar. Daí uma diferenciação da metáfora da psicanálise, da metáfora literária.
O silêncio é uma dessas metáforas. O silencio, esse mistério. Silêncio como segredo, como esquecimento, como inibição, como soberba ( menosprezo com o silêncio aos que não me interessam), como afeto, como fuga, como uma espécie de covardia, medo, insegurança.
Silêncio como falta do que dizer (quantas vezes busquei na memória um acontecimento que me marcou e não consegui me expressar ou não fui compreendido suficientemente e me calei, mudei de assunto pela certeza da incomunicabilidade de uma emoção que se truncou...).
O silêncio como esquecimento – aquilo que a memória não guardou, se é que há coisas esquecidas – estas estariam num território do silêncio, enigmáticas, à procura de indagações.
Silêncio como conforto, quando precisamos dele para ler um livro, para escrever uma poesia, para ouvir um cd de música instrumental. Conforto também onde a comunicação se dá através do carinho e do afeto. Comunicação sem diálogos verbais.

Para quem quiser se aventurar no tema do silêncio e suas metáforas, recomendo dois filmes de Bergman: O silêncio, cuja temática é a incomunicabilidade entre seres que deveriam se amar - no caso, duas irmãs. Outro, belíssimo, é Sonata de Outono. Há uma imagem crucial no filme, em que a mãe (Ingrid Bergman)toca piano junto com a filha (Liv Ullman). Enquanto a sonata é tocada, a filha olha a mãe profundamente e a sensação que se tem, é de que ela enxerga perdas, afetos que não se concretizaram na relação de vida das duas.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Anthropos, polis, ethos

Para compreendermos a ética em seu sentido antigo, é preciso ter em vista que o homem grego antigo buscava na ética uma estética da existência. A ética eram caminhos de aperfeiçoamento, que visavam à estilização da vida. Essa estética tomou como referencial a própria beleza inscrita no cosmos. Ordenar-se, tornar-se virtuoso, conquistar um bem, uma excelência, transformar-se em alguém dotado de virtude, seria de certa maneira trazer para a vida pessoal e para a cidade a beleza que esse cosmos revela.
Essa questão da estética da existência vai acontecer no mundo antigo em várias linhas. A forma mais antiga sobre ética vem dos primeiros documentos que ficaram registrados, tornando-se a tradição literária inaugural do ocidente, que são as epopéias homéricas. A ética está identificada à situação natural, espontânea de determinados homens, chamados de os bons, os belos, os melhores. Essas pessoas possuem um bem, porque são os nobres, os descendentes das grandes famílias, consideradas até descendentes de deuses. Daí o sangue nobre ser dotado de excelência. Veremos essa herança mais adiante, em texto sobre a tragédia de Shakespeare.
Vamos encontrar na Grécia, também, a manifestação explicita de uma nova maneira de entender esse estilo e essa nobreza. A questão do sangue perde sentido, à medida que a virtude passa a ser vista como o resultado de um esforço, de um conquista, ou seja, não mais o sangue torna inata a virtude no ser aristocrático, mas é necessário conquistar a virtude através de um esforço, de um trabalho.
Percebe-se, também, que o corpo vivo pode tanto manifestar saúde e beleza, como pode representar doença e feiúra. Ele é saudável e belo quando todas as suas partes estão funcionando de maneira correta e integrada. A saúde do ponto de vista da alma, do ponto de vista da realidade interior do homem, como a saúde do ponto de vista da cidade, também serão fundamentadas no modelo da saúde do corpo. A metáfora do corpo saudável vai ser fortíssima para a construção das estilísticas diferentes que vão ser os vários sistemas filosóficos voltados para a ética.
Por outro lado, o homem se percebe como um ser em trânsito, como um ser navegante, como um ser itinerante. Ele sabe que a sua dimensão é temporal, por isso ele se chama o tempo todo de mortal, em contrapartida aos deuses, que são imortais. O ser humano se constitui no tempo, nele navega, dentro de seu território de duração limitada, que é seu destino. Só que precisa ter um certo rumo, se ele quer construir um caminho voltado para o bem, para o belo, para a virtude.
A metáfora da navegação é fundamental como a metáfora do corpo. E a cidade é entendida por Platão como uma grande nau que exige de cada um determinada função muito bem delimitada, muito bem executada; mas, é importante também que haja alguém capaz de lidar com o leme e estabelecer o rumo certo. A ética, quer na dimensão em que transborda em política quer na dimensão em que se restringe ao campo pessoal e mesmo na esfera subjetiva, interior, tem na navegação um paradigma e um modelo igualmente rico que alguns estudiosos vão explorar.
Acontece que o surgimento da ética no discurso dos filósofos gregos entre o clássico e o helenístico teve destaque justamente no momento de decadência material da pólis. Sócrates, Platão, Aristóteles e Epicuro aparecem no momento em que a sociedade grega em geral, e a ateniense em particular, vivem o momento de maior desagregação interna, de dominação da política pelos demagogos, pela decadência dos velhos modos de vida, da superação da riqueza intelectual pela material.
O dinamismo da sociedade grega acaba criando os conflitos da crescente camada de comerciantes enriquecidos contra as velhas aristocracias – cuja base do poder era de um lado a tradição e de outro a propriedade fundiária – e termina com a ascensão dos tiranos – magnatas que se postulam defensores das camadas mais pobres da população, evoluindo para mundo que iria, aos poucos, infiltrar-se no antigo, voltar contra si mesmos os princípios tanto da democracia quanto da filosofia. Estimula-se o florescimento da demagogia. É o período dos grandes monumentos, do supremo desenvolvimento da escultura, da mais ampla extensão da democracia que chega à sofisticação de pagar uma contribuição a todos os cidadãos que compareçam às Assembléias, como absoluta garantia do direito a todos a participar das decisões da cidade. É também o momento no qual os sábios de todo o mundo helênico – da Ásia Menor à Calábria, então chamada de Magna Grécia – convergem à Atenas na busca tanto de um ambiente de efervescência cultural como de patronos, os mecenas.
O fruto filosófico deste período atribulado são os sofistas e seu relativismo moral. O pensamento sofista não deixa de ser um ataque à hipocrisia ateniense no qual os velhos valores não são mais evocados senão como uma justificativa da dominação de Atenas sobre outros Estados, dos ricos demagogos sobre os velhos. É nesse contexto de decadência e crise moral que os esforços intelectuais de Sócrates, Platão, Aristóteles devem ser entendidos. Quando se enxerga a questão por esse prisma, o fato de Sócrates ter "inventado" a Ética, revela não o surgimento de uma nova ordem, mas antes a necessidade de se refletir, sistematizar e defender conceitos que antes eram dados como automáticos, em especial quanto à essência da ética, ou seja, as relações entre o bem comum e a felicidade individual.
Basta saber o que é a bondade para ser bom?
Esse pressuposto básico da Ética de Sócrates – que basta saber o que é bondade para que se seja bom - pode parecer ingênuo no mundo de hoje, mas na sua época era uma noção perfeitamente coerente com o pensamento – ainda que não com a prática – da sociedade grega.
É com os sofistas que Sócrates dialoga, em um esforço para refutar seu relativismo moral cuja validação, sabe ele, significaria o fim do "espírito grego". O grande mérito de Sócrates foi enfrentar de forma virulenta a hipocrisia da sociedade ateniense, cuja resposta aos sofistas era apenas a reafirmação insincera dos velhos valores. Sócrates defende a identidade entre os interesses individuais e os comunitários como único caminho para a felicidade, o que implica na valorização da bondade, da moderação dos apetites, na busca do conhecimento.
Assim ao mesmo tempo Sócrates busca uma volta às velhas tradições da Cidadania, mas para isso precisa voltar-se contra essas próprias tradições. Ele aceita os princípios gerais definidos por aquelas tradições, mas apenas como um conceito, uma categoria a ser investigada pela mente humana, rejeitando tanto a forma pela qual estes valores são apreendidos como o conteúdo usualmente atribuído a eles.
À questão sobre o que é a Justiça – para dar um exemplo prático desta dupla oposição de Sócrates – os sofistas dizem que ela é a convenção estabelecida pelo mais forte para dominar o mais fraco; os tradicionalistas a entendem como o conjunto das instituições que definem o "Império da Lei". Sócrates diz que ambos estão certos e errados ao mesmo tempo. Os sofistas não estão errados, porque a descrição deles corresponde ao estado de coisas na época, os tradicionalistas também não estão errados porque o princípio que teoricamente rege aquelas instituições seriam aqueles elevados valores da cidadania. Mas ambos estão errados, porque a deterioração da justiça não significa que não exista objetivamente uma Justiça e que esta não seja uma meta a ser alcançada – ao contrário do que pensam os sofistas – e porque o que as pessoas entendem como justiça não é justiça de fato, apenas uma visão distorcida daquele conceito – ao contrário do que dizem os tradicionalistas. O problema ético, para Sócrates é, sobretudo, uma questão de definição de termos.
A essência da Ética Socrática é o poder libertador do verdadeiro conhecimento confrontado com a hipocrisia. É através dese conhecimento, crê Sócrates, que cada indivíduo é capaz de um dia chegar à compreensão do que é o Bem, conhecimento que por si só tem efeito transformador tanto de quem o adquire como da sociedade na qual ele vive.

Platão e a sociedade perfeita
Platão defendia que o homem estava em contato permanente com dois tipos de realidade: a inteligível (a realidade imutável, igual a si mesma) e a sensível (todas as coisas que nos afetam os sentidos são realidades dependentes, mutáveis, imagens das realidades inteligíveis). Alguma coisa é, na medida em que particida da Ideia desse objeto. Platão cria, então, sua Teoria das Ideias. O que há de permanente em um objeto é a Ideia; mais precisamente, a participação desse objeto na sua Ideia correspondente.
Assim como Sócrates, Platão pensava que a essência do conhecimento não se poderia buscar nas coisas, pois estas variam, mudam, surgem e se vão. A verdade plena, deve ser buscada em algo estável, nas verdadeiras causas, pois logicamente a verdade não pode variar e, se há uma verdade essencial para os homens, essa verdade deve valer para todas as pessoas. Logo, a verdade deve ser buscada em algo superior.
Também o conhecimento tinha fins morais, isto é, levar o homem à bondade e à felicidade. Assim, a forma de conhecimento era um reconhecimento, que faria o homem dar-se conta das verdades que sempre possuíra e que o levavam a discernir melhor dentre as aparências de verdades e as verdades. A obtenção do autoconhecimento era um caminho árduo e metódico.
A resposta de Platão à necessidade de se resgatar o velho sentido da Ética, da Justiça e da Moral, perdidos durante o período de crescimento e enriquecimento de Atenas, contaminados pela hipocrisia, é a "volta a uma sociedade mais simples". Mas não uma volta ao passado real, antes a um passado imaginário situado em algum lugar do futuro, onde os velhos valores – renovados a partir das indagações e críticas de Sócrates – possam orientar uma sociedade estável que tende à perfeição.
Assim, à dissociação entre o mundo real e os valores éticos, Platão contrapõe a necessidade de uma reconstrução da sociedade segundo esses valores, por mais radical que possa parecer. O eixo da ampla reforma sugerida por Platão, para construir a sociedade perfeita, é a substituição do poder exercido pelos mais ricos que reinava na Atenas Imperial dos mercadores, por uma em que os governantes seriam os melhores dentre os homens de seu tempo, em termos de conhecimento e sabedoria.
Aristóteles e a ética como ciência das condutas
Aluno de Platão, Aristóteles discorda de uma parte fundamental da sua filosofia, que concebe dois mundos existentes: aquele que é apreendido por nossos sentidos, o mundo concreto -, em constante mutação; e outro mundo - abstrato -, o das ideias, acessível somente pelo intelecto, imutável e independente do tempo e do espaço material. Aristóteles, ao contrário, defende a existência de um único mundo: este em que vivemos. O que está além de nossa experiência sensível não pode ser nada para nós.
Para Aristóteles, a ética não se ocupa com aquilo que no homem é essencial e imutável, mas daquilo que pode ser obtido por ações repetidas, disposições adquiridas ou hábitos que constituem as virtudes e os vícios. Seu objetivo último é garantir ou possibilitar a conquista da felicidade.
Na filosofia aristotélica, a política é um desdobramento natural da ética. Ambas, na verdade, compõem a unidade do que Aristóteles chamava de filosofia prática. Se a ética está preocupada com a felicidade individual do homem, a política se preocupa com a felicidade coletiva da pólis. Desse modo, é tarefa da política investigar e descobrir quais são as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva. Trata-se, portanto, de investigar a constituição do estado.

O universo interior
Epicuro foi outro dos maiores pensadores éticos da história do pensamento e suas ideias têm extraordinária atualidade. Para o filósofo, o sentido de liberdade adquire o sentido de libertação interior. Em grande parte, sua ética é um ensino de virtuosismo pessoal, para que se possa ser feliz, sereno e ter prazer, mesmo na adversidade.
Epicuro viveu no século III a.C, numa Grecia que não era mais livre, mas que fazia parte do império macedônico. Não era mais um mosaico de cidades com sua própria fisionomia cultural. Era o pedaço de um grande império que se estendia até a Asia. Agora as leis irmanam de cima, de um imperador ou rei, e têm de se curvar a sua vontade. Mas, para Epicuro, mesmo nesses momentos de cerceamento da liberdade, há a possibilidade de trabalhar o universo interior, que pode ser objeto de processo de libertação pessoal. No tempo de adversidade, mesmo assim, o homem pode e deve ser feliz, porque nasceu para a felicidade. Devia-se, então, partir para a saúde da alma, pelo afastamento da ignorância, da crendice, através de um conhecimento que aclara a mente interior, fazendo com que o homem, a partir do conhecimento e da natureza das coisas, possa posicionar-se e compreender sua existência e seu papel.
Compreensão da natureza das coisas. Era isso! Procura e valorização do prazer, afirmando que o homem não existe em função do sofrimento, mas da felicidade. Como isso é feito? Através de uma autogestão de si mesmo. Uma independência interior, um desvio da fatalidade externa, administrando sua vida de forma saudável. Alternativa: ou vida política ou serenidade. Hoje, podemos ver isso através da diferença entre o campo da vida pessoal e o campo da vida pública. A vida pública é um campo de antagonismo. A vida pessoal, ao contrário, deve ser uma vida de serenidade, de felicidade.
Se a procura da liberdade interior é uma procura que retira o homem da turbulência da pólis, ele se recolhe entre os seus e procura no intercambio, nas conversas, no esforço de grupo, tentar manter aí o seu trabalho interior e só assim, dentro da amizade, é que esse projeto pode ser realidade. Não se trata de isolar o homem, mas substituir a pólis pelo grupo, com a sua amizade, que está no fundo do próprio projeto da filosofia, que é o amor à sabedoria, a amizade pelo conhecimento, que aproxima os amigos no mesmo processo de busca do conhecimento.
É importante, portanto, lembrar que a ética de Epicuro fundamenta-se, primeiro, no conhecimento, no apoio à razão, na recusa ao obscurantismo, na recusa à crendice, na colocação do mundo como alguma coisa dentro da possibilidade da medida humana. O mundo é mensurável pela razão do homem. É essa idéia básica que afasta tudo que é obscuro, intangível, absolutamente insondável, que faz com que os próprios deuses sejam compreensíveis e os homens, a natureza, tudo, sejam explicáveis racionalmente. Na verdade, o que Epicuro propõe, é que a amizade que se concretiza no jardim desses seres que procuram cada vez mais a clareza e a liberdade interior e que estimula reciprocamente a permanecer nesse esforço, imite à distancia os deuses. Não que os deuses venham fazer a libertação, os deuses são serenos justamente porque não estão preocupados com a humanidade e com o mundo, eles vivem plenamente a serenidade porque estão tão distante dos homens, quanto os homens do jardim se separam da pólis turbulenta.
O direito à felicidade, ao bem, à plenitude de vida, à cidadania completa, não é ilimitado como fora na democracia ateniense de antigamente. Lá, apenas alguns podiam fazer esse trabalho: os homens maiores, nascidos em Atenas e não escravos. Com Epicuro, a felicidade está acessível a qualquer um, independentemente de posição social. Por isso, suas idéias chegam até nós com extrema atualidade.
Não há adversidade externa que decida o nosso projeto ético pessoal. A dimensão pessoal da busca do bem da felicidade é subjetiva, intransferível e só pode ser feita por cada um e ou com o apoio dos que se aproximam do mesmo ideal.
Na ética de Epicuro:
- não há nada a temer quanto aos deuses
- Não há necessidade de temer a morte
- a felicidade é possível
- podemos escapar à dor
Na verdade, isso é um resumo, como uma receita da ética de Epicuro. A questão da saúde aparece aí com toda a clareza. A felicidade é uma conquista, é um direito de qualquer um, todos devem buscar o bem o prazer, a serenidade, não importando a quem. É o resultado de um luta incessante de autolibertação, de criação do espaço de sua autonomia e de busca permanente de seu prazer sábio e sereno.
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Fontes de consulta:
Convite à filosofia. Marilena Chauí, ed. Ática. 2003
Ética. Pessanha et alii. Cia. de Bolso. 2007
O que é ética. Alvaro Valls. Brasiliense. 1996
http://pt.wikipedia.org/wiki/Plat%C3%A3o (sobre Platão)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teles (sobre Aristóteles)
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3crates (sobre Sócrates)
http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%B3lis (sobre pólis)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Epicuro (sobre Epicuro)