domingo, 31 de agosto de 2014

As parceiras

 As parceiras, de Lya Luft, é a visão feminina sobre uma família marcada pela morte, pela loucura, por um mundo decadente que a envolve e a desagrega.Anelise relata sua adolescência no meio de mulheres, numa casa de praia onde há um sótão em que viveu sua avó louca. A presença de sua avó, presa por vontade própria em um sótão, que passa a representar  um mundo de infância, marca sua vida para sempre.  O medo que povoava a infância de Anelise tornou-se naqueles anos do casarão um pavor profundo. Do medo, a rebeldia.  Não queria aquela vida, nem aquelas ideias, nem aquela religião. Tudo lhe era um castigo.

Um dia Anelise sentiu vontade de visitar o sótão do casarão, para tentar recompor a vida que sua avó Catarina levara ali. Surgem as perguntas: quando teria começado a arrumar o sótão feito um quarto de menina? Por que teria se refugiado ali? O que pensaria sozinha anos e anos a fio? Com quem falava sempre, para quem eram aquelas famosas cartas, as misteriosas? Quem seriam seus fantasmas?
Ninguém sabia ao certo o que se passara entre as paredes do sótão. Pouco antes de morrer a avó começara com uma nova mania: escrever. Compunha longas cartas desconexas e garatujadas, em letra gótica, em alemão, língua que Catarina preferia sempre. Pareciam ora dirigidas a um homem, ora a uma mulher, talvez escrevesse também as respostas, tudo misturado.

Durante esse tempo de curiosidade e busca, Anelise conheceu Otávio, um cara muito especial, que se refugiava na música,tocando piano. Achava tudo diferente nele, amava-lhe tudo, os olhos, a pele, o cheiro, a boca, o cabelo, as mãos de pianista. Foi Otávio quem lhe deu o primeiro beijo na boca, a fez partilhar de uma primeira , incompleta e assustada experiência de sexo, ajudou-a  a enxergar outra vida além dos paredões sombrios daquela casa. Também a ajudou quando seu casamento desmoronou depois de anos perfeitos.Tudo o que ela experimentava naquele tempo a fez entender mais intensamente que o mundo não se resumia a uma casa grande e escura, com medos no sótão. Havia uma floresta de experiências que esperava por ela: havia a liberdade.

Escrita em forma de diário, na primeira pessoa, durante uma semana, as palavras revelavam a Anelise toda sua existência, através desse mergulho no passado, para enfrentá-lo com a coragem e a verdade.

As Parceiras  é o primeiro romance de Lya Luft, lançado no mercado editorial. Faz parte das leituras obrigatórias do Vestibular da UFRGS de 2015.

                                         paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Lya Luft. As parceiras. Rio, Record, 2003, 128 pp, R$ 28,00

domingo, 24 de agosto de 2014

Miserere

Miserere, o livro recém-lançado de Adélia Prado, é um diálogo com a divindade. O problema religioso sempre aparece em sua obra, mas não é a fé que a faz fazer poesia. Escrever versos faz parte da sua condição humana, é ela inteira que produz poesia. Aos 40 anos sentiu que precisava trabalhar a palavra: era poeta. Seus poemas são trabalhados com rigor, com o sentido de não trair o que está sentindo, pois detesta enfeites.
Seus versos revelam um sofrimento pessoal que todo mundo tem,  é condição de consciência, assim como a finitude da vida, sua precariedade, a velhice, a doença, a morte, os desconfortos físicos, morais e filosóficos. É preciso dizer um sim para aquela situação. O que alimenta sua poesia é o próprio susto e o próprio espanto que tem da vida. É poeta do cotidiano,  das paixões humanas, da perplexidade de existir. Existir é muito esquisito, ela costuma dizer. O que é, de onde veio, para onde vai são a base do questionamento da existência humana.
Adélia Prado, como sempre tem sido, conversa de forma aberta e afetiva com o leitor. Não acredito que exista alguém, mesmo ateu, que não goste de seus poemas. Sua poesia ecoa em todos os cantos.É linda! 

Deguste:

Branca de Neve

Caibo melhor no mundo
se me dou conta do que julgava impossível:
'Nem todo alemão conhece Mozart.'

Um óbvio, pois nem é preciso, 
cada país tem seu universal
e basta um para nos entendermos.
Com os russos me sinto em casa,
não podem ver uma névoa,
uma aguinha, uma flor no capim
e param eternos minutos fazendo diminutivos.
Como o jagunço Riobaldo que sabe do mundo todo
e tem Minas Gerais na palma da sua mão.
Fico hiperbólica para chegar mais perto.
"Geração perversa, raça de víboras"
não é também um exagero do Cristo
para vazar sua raiva?
Escribas e fariseus o tiravam do sério.
Mas todos eles? Todos?
Cheiramos mal, a maioria,
e sofremos de medo, todos. O corpo quer existir,
dá alarmes constrangedores.
Me inclino aos apócrifos como quem cava tesouros.
É evangélico que trabalhem cantando
os anõezinhos da história.
No fundo todos queremos
conhecer biblicamente,
apesar de que os pés de página,
por mania de limpeza,
não é sempre que ajudam.
O verdadeiro é sujo,
destinadamente sujo.
Não são gentilezas as doçuras de Deus.
Se tivesse coragem, diria
o que em mim mesma produziria vergonha,
vários me odiariam,
feridos de constrangimento.
Graças a Deus sou medrosa,
o instinto de sobrevivência
me torna a língua gentil.
Aceito o elogio
de que demonstro 'tino escolhitivo'.
Pra quem me pede dou lista de filme bom.
Demoro a aprender
que a linha reta é puro desconforto.
Sou curva, mista e quebrada,
sou humana. Como o doido,
bato a cabeça só pra gozar a delícia
de ver a dor sumir quando sossego.


                                 paulinhopoa2003@hotmail.com
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Adélia Prado. Miserere. Rio, Record, 2013, 96 pp, R$ 25,00

domingo, 17 de agosto de 2014

A costa dos murmúrios

A fotografia seguinte representa uma árvore alta, sem folhas, como se realmente queimada, e um grande galho donde pende o negro, pelo pescoço, baloiçando sem camisa. A seguinte tem a mesma árvore, o mesmo galho, o mesmo negro, mas agora nem tem nem calças nem camisa. O negro baloiça no galho da árvore, rodeado por soldados. Helena segura a fotografia. "Disse o Jaime que as calças dele escorregaram e que ejaculou para cima do capim, em frente dos soldados portugueses! O Jaime diz que nunca mais acontece - agora vão amarrar sempre as calças de quem for enforcado, para se pouparem a cenas dessas!" - disse ela. "Passe" - disse, com um olho na porta outro na janela. Passou outro pacote (...) que dizia Víbora Venenosa. Eram imagens de incêndios, aldeias em chamas, sem qualquer referência. O fotógrafo deveria gostar dos rolos de fumo. As seguintes tinham referência, localização, e número de palhotas destruídas - destruídas trinta, oitenta e três... Também traziam coordenadas. Agora no meio das palhotas incendiadas havia soldados correndo. Adiante, novo pacote. Estávamos sentadas num sofá de pano onde Helena ia empilhando e desempilhando. Helena mostrou-me com precaução o pacote que dizia spoilt como os outros e Víbora Venenosa III. Mais rostos, mais cabeças de soldados escondidos entre sarças, mais incêndios, e logo a imagem dum homem caído de bruços, depois dois telhados, e sobre um dos telhados de palha, um soldado com a cabeça dum negro espetada num pau.  Viam-se vários corpos sem cabeça à beira duma chitala, um bando de galinhas avoejava sobre eles na mesma fotografia. Helena passou. Helena tomou a seguinte e mostrou o soldado em pé, sobre o caniço. Via-se nitidamente o pau, a cabeça espetada, mas o soldado que a agitava não era um soldado, era o noivo. Helena de Tróia disse - "Vê aqui o seu noivo?" Ela queria que Evita visse. Era claro como a manhã que despontava que Helena de Tróia me havia trazido até àquela divisão da casa para que eu visse sobretudo o noivo.

Essa é uma das muitas cenas inquietantes em que se vê portugueses em meio às atrocidades da guerra em Moçambique. É a fase final da guerra, quando a nação africana prepara sua independência. A costa dos murmúrios, de Lidia Jorge, apresenta em sua estrutura duas narrativas. A primeira, Os Gafanhotos, é uma narrativa curta que termina com um FIM.  Trata-se da comemoração do casamento do alferes português Luis Alex (o da foto com a cabeça do negro) e sua noiva, Evita, durante uma trégua nos combates. Um cortejo de convidados dança e se diverte num clima eufórico no terraço do hotel Stella Maris, enquanto um fotógrafo registra as cenas da festa. Enquanto isso acontece no hotel, uma aglomeração de cadáveres de negros aparece na praia, recolhidos em caminhões de lixo.  Também acontece uma praga de gafanhotos e a morte do noivo de Evita. A segunda, que ocupa as demais páginas do romance retomam e desvendam uma série de imagens da primeira página, contada por vários personagens, sendo Evita uma delas. A morte misteriosa do noivo revela uma relação de adultério.

Se o leitor conseguir deixar de lado o estilo encaixado, com a colocação dos pronomes rigorosamente respeitados, vai se deixar envolver pela prosa criativa e inquietante de Lídia Jorge, que vem crescendo na literatura portuguesa e universal. Outro romance dela, A Noite das mulheres cantoras será comentada adiante, quando abordarmos a lista de livros recomendados pelo vestibular da UFRGS.
A obra em papel encontra-se esgotada. Pode ser encontrada em sebos por um preço médio de 40 reais um exemplar em bom estado de conservação.

                                           paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Lídia Jorge. A costa dos murmúrios. Rio, Record, 2004. 290 pp, 

domingo, 10 de agosto de 2014

Uma história da leitura

A leitura começa com os olhos. Quando vemos um texto lembramo-nos melhor dele do que quando apenas o ouvimos.  Até aqui está óbvio para qualquer leitor: as letras são apreendidas pela visão. Mas por meio de qual alquimia essas letras se tornam palavras inteligíveis? O que acontece dentro de nós quando nos defrontamos com um texto? De que forma as coisas vistas, as "substâncias" que chegam através dos olhos ao nosso laboratório interno, as cores e formas dos objetos e das letras se tornam legíveis? O que é, na verdade, o ato que chamamos de ler? Uma história da leitura é o relato da nossa história da leitura. Descobrimos com Alberto Manguel que ler nos propicia desvendar mistérios e ficarmos pasmos diante de outros mais. É um livro de ensaios, que o prestigiado escritor argentino que ajudava Borges em seu processo de leitura e foi por ele influenciado, nos delicia com uma prosa muito bem amarrada.

Os leitores de livros ampliam ou concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras de uma página é apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo, admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres humanos - a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo - ou pelos deuses, - o casco da tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso. E, contudo, em cada caso é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial. 

Alberto Manguel  descobriu pela primeira vez que podia ler, aos quatro anos de idade. Tinha visto uma infinidade de vezes as letras que sabia (porque tinham lhe dito) serem os nomes das figuras colocadas sob elas. O menino desenhado em grossas linhas pretas, vestido com calção vermelho e camisa verde (o mesmo tecido vermelho e verde de todas as outras imagens do livro, cachorros, gatos, árvores, mães altas e magras), era também, de algum modo, percebia, as formas pretas e rígidas embaixo dele, como se o corpo do menino tivesse sido desmembrado em três figuras distintas: um braço e o torso, b; a cabeça isolada, perfeitamente redonda, o; e as pernas bambas e caídas, y. Desenhou os olhos e um sorriso no rosto redondo e preencheu o vazio do círculo do torso. Mas havia mais: sabia que essas formas não apenas espelhavam o menino acima delas, mas também podiam lhe dizer exatamente o que o menino estava fazendo com os braços e as pernas abertas. O menino corre, diziam as formas. Ele não estava pulando, como poderia ter pensado, nem fingindo estar congelado no lugar, ou jogando um jogo cujas regras e objetivos lhe eram desconhecidos. O menino corre. Depois que aprendeu a ler suas letras, leu de tudo: livros, mas também notícias, anúncios, os tipos  pequenos no verso da passagem do bonde, letras jogadas no lixo, jornais velhos apanhados sob o banco do parque, grafites, a contracapa das revistas de outros passageiros no ônibus. Quando ficou sabendo que Cervantes, em seu apego à leitura, lia até os pedaços de papel rasgado na rua, entendeu exatamente que impulso o levava a isso. Essa adoração do livro (em pergaminho, em papel ou tela) é um dos alicerces de uma sociedade letrada. O Islã leva a noção ainda mais longe: o Corão não é apenas uma das criações de Deus, mas um de seus atributos, tal como a onipresença ou a compaixão.A experiência veio a ele primeiramente por meio dos livros. Mais tarde, quando se deparava com algum acontecimento, circunstância ou tipo semelhante àquele sobre o qual havia lido, isso lhe causava o sentimento um tanto surpreendente mas desapontador de déja vu, porque imaginava que aquilo que estava acontecendo agora já havia lhe acontecido em palavras, já havia sido nomeado.


O livro irá agradar aos que possuem uma bagagem considerável de boa literatura. Mas poderá surpreender aos curiosos que também gostam de ler.

                                paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Alberto Manguel. Uma história da leitura. SP, Cia. das Letras, 1997, 408 pp, R$ 60,00

domingo, 3 de agosto de 2014

De gados e homens

A escritora fluminense Ana Paula Maia (1977) não gosta de se alongar muito em uma história. Há um tempo para escrever um livro, ela disse em uma entrevista ao jornal Rascunho. Gosta das coisas acontecendos. A cada capítulo deve ter alguma coisa acontecendo. Acha meio chato quando o personagem está com uma dúvida e fica cinco capítulos com essa dúvida. Ela disse que acha Proust uma coisa chatérrima.

O problema, entretanto, é quando o leitor vê coisas acontecendo a todo momento e quando termina o livro se pergunta: tá, mas e daí?

O enredo do curto romance De gados e homens gira em torno de um abatedouro de carne bovina, onde homens rudes agem de forma quase desumana. Edgar Wilson está apoiado no batente da porta do escritório do seu patrão, que conclui um telefonema aos berros, já que desde cedo aprendeu a berrar, quando solto no pasto, ainda bem menino, disputava com o bezerro a teta da vaca. O escritório não passa de um cômodo espremido ao lado do setor de bucharia do matadouro. O patrão lhe pede que vá até a fábrica de hambúrguer fazer uma cobrança. Edgar Wilson alerta que há gado a ser abatido, mas o patrão passa a tarefa para o Zeca.
Edgar Wilson acena com a cabeça e apanha a ordem de cobrança. Segue por um corredor fétido e mal iluminado e ao virar à direita entra no boxe de atordoamento, local em que trabalha muitas horas por dia. A fila de bois e vacas é sempre longa. Um funcionário abre a portinhola e o boi que já passou pela inspeção e pelo banho entra devagar, desconfiado, olhando ao redor. Edgar apanha a marreta. O boi caminha até bem perto dele. Edgar olha nos olhos do animal e acaricia a sua fronte. O boi bate uma das patas, abana o rabo e bufa. Edgar cicia e o animal abranda seus movimentos. Há algo nesse cicio que deixa o gado sonolento, intimamente ligado a Edgar Wilson, e dessa forma estabelecem confiança mútua. Com o polegar lambuzado de cal, faz o sinal da cruz entre os olhos do ruminante e se afasta dois passos para trás. Suspende a marreta e acerta a fronte com precisão, provocando um desmaio causado por uma hemorragia cerebral. O boi caído no chão sofre de breves espasmos até se aquietar. Não haverá sofrimento, ele acredita. Agora o bicho descansa sereno, inconsciente, enquanto é levado para a etapa seguinte por outro funcionário, que o suspenderá de cabeça para baixo e o degolará.
 Vai até o setor de triparia e chama por Zeca, que imediatamente acata sua ordem. É com o coração pesaroso que Edgar vê, minutos depois, o rapaz, sorridente, seguir até o boxe de atordoamento ao sair da sala de Milo. Zeca é um garoto de dezoito anos, perturbado. Gosta de ver o animal sofrer. Gosta de matar. Se prepara para a tarefa quando Edgar entra no boxe e o adverte: não deixa o bicho sofrer. Zeca apanha a marreta, faz sinal para que o funcionário deixe o boi entrar. Quando o animal fica frente a frente com ele, a marretada propositalmente não é certeira, e o boi, gemendo, caído no chão, se debate em espasmos agonizantes. Zeca suspende a marreta e arrebenta a cabeça do animal com duas pancadas seguidas, fazendo o sangue respingar em seu rosto.
Edgar Wilson não responde à afronta de Zeca. Vira de costas e caminha até o banheiro, onde troca de roupa. Veste uma calça jeans e uma camisa quadriculada de botões. Após apanhar as chaves, segue até a caminhonete e lamenta o rádio quebrado do carro. Ao retornar, já e fim de tarde, estaciona a caminhonete do pátio do matadouro, entra no escritório e entrega o cheque ao Milo. No boxe de atordoamento repara na quantidade excessiva de sangue e em pedaços de crânio esfacelado. Entra no banheiro do alojamento. Espera que reste apenas o Zeca no banho. Com a marreta, sua ferramenta de trabalho, acerta precisamente a fronte do rapaz, que cai no chão em espasmos violentos e geme baixinho. Nenhuma gota de sangue foi derramada. Seu trabalho é limpo. No fundo do rio, com restos de sangue e vísceras de gado, é onde deixa o corpo de Zeca.
Cumprido seu dever, ele vai para a cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado.
 Ao terminar o primeiro capítulo do livro achei que ia ser arrebatado por uma narrativa tensa, instigante. A orelha do livro diz isso e diz que cativará o leitor pelo terror, pela agonia, e pelo espanto. Mas a violência imposta no início do romance se esvai em um enredo que parece beirar um real maravilhoso descosturado, com o rio morto cuja água fica salgada, vacas libanesas misturadas a vacas israelenses, também as vacas que se suicidam. O assassinato do Zeca, relatado acima, fica por isso mesmo.. Li matérias em jornais literários enaltecendo a prosa de Ana Paula Maia neste romance, mas tudo parece, agora, resenha de amigos. Eu esperava mais.

                             paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Ana Paula Maia. De gados e homens. Rio, Record, 2013, 128 pp, R$ 30,00