domingo, 28 de abril de 2013

Aqui nos encontramos


John Berger (1926) é inglês. Sua escritura mistura ficção e autobiografia, numa sensível percepção política e histórica da realidade. Além do romance, exerce o conto, a crônica e a crítica literária. No Brasil, seus livros são editados pela Rocco. 
Na ficção Aqui nos encontramos, o autor elege o passado como a forma única para definir o presente. Visita lugares (que formam os capítulos do livro) para trazer à lembrança pessoas importantes em sua vida, todas já mortas. Conta que gostava de livros que o levavam para outra vida. Quando lia, perdia o sentido de tempo por completo. Ler para juntar-se a outras vidas que já viveu ou poderia ter vivido. Neste livro, John Berger está disposto a não esquecer seus mortos. Movendo-se através do tempo e do espaço, ele nos conta que é possível amar os que habitam no passado, sem perder a lucidez. Nessa trajetória de rebuscar pessoas amadas, leva-nos a Lisboa, para matar a saudade da mãe, que um dia esteve lá com ele. Justifica que talvez em Lisboa os mortos se exibam mais que em qualquer outra cidade. Seus bondes, suas ladeiras, praças, as casas antigas, tudo alimenta a atmosfera das lembranças que viveu junto ao carinho materno. Em Genebra, a figura que vem à tona é a de Jorge Luís Borges, que teve em Genebra seu segundo lar. Mas não é Borges o mote dessa narrativa, e sim Katya, que namorou enquanto trabalhou na cidade suíça. Andando pelas ruas da Genebra presente, dá-se conta de que para encontrar algum sentido na vida, era inútil procurar nos lugares onde era instruído a fazê-lo. O sentido da vida só seria encontrado em segredos. Em Cracóvia, ele se encontra com o “fantasma” de Ken, que havia conhecido quando tinha 11 anos. Ken lhe traz a lembrança do massacre de judeus na Cracóvia, durante a segunda guerra mundial. E assim transcorrem as narrativas, em sete lugares, mais um capítulo sobre algumas frutas lembradas pelos mortos.

Narrativa inteligente e de pouco fôlego, mas agradável de ler.

Tradução de Ana Deiró


                                                           paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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John Berger. Aqui nos encontramos. Rio, Rocco, 2008. 208 pp. R$ 33,50

domingo, 21 de abril de 2013

Ibiamoré: o trem fantasma

Roberto Bittencourt Martins (1937) nasceu em Bagé. É filho de dois pioneiros da psicanalistas: Mário e Zaira Martins. Formou-se em medicina, especializando-se em psicanálise. Paralelamente, dedicou-se à literatura, colaborando em jornais e revistas. Escreveu os romances Ibiamoré: o trem fantasma, O Vento nas Vidraças e Amor Ardente. Vive atualmente no Rio de Janeiro.
Ibiamoré: o trem fantasma, envolve mitos e a história sul-rio-grandense. O cenário é Ibiamoré, cidade imaginária localizada na fronteira do Brasil com o Uruguai e a Argentina. De lá parte o tem que não respeita fronteiras, passando por onze estações, onde entram em cena muitos personagens: heróis, índios, jesuítas, espanhóis, portugueses, imigrantes e mestiços. Quem entra nesse trem não sai mais dele. Historicamente, episódios são lembrados, a partir da guerra jesuítica até a construção das primeiras estradas de ferro no final do século XIX.
A história começa com um velho que entoa uma canção acerca de um trem fantasma que corta os campos de Ibiamoré. A partir daí inicia-se a narrativa de Martins. Em cada estação, há a história de um personagem que acaba entrando no trem. O romance termina num círculo, com o velho entoando os versos finais, só que dessa vez sozinho, como se ninguém mais o quisesse escutar. Pronto para entrar no trem que o levará ao caminho do esquecimento. Embora cada capítulo desenvolva a vida de personagens diferentes, cada um deles mantém com o anterior e o próximo uma ligação nem sempre explícita, já que os capítulos não estão organizados em ordem temporal, mas por associação. Assim, o leitor é levado a participar desse processo.
O romance de Martins, embora apresente um narrador em terceira pessoa, que sabe de tudo e de todos, também apresenta outros supostos narradores, oferecendo diferentes relatos e versões da lenda do trem fantasma e daqueles que a contam. Romance original, escrito de forma poética, com personagens bem construídos, constitui leitura interessante.
Roberto Bittencourt, como a maioria dos bons escritores da literatura sul-rio-grandense, é pouco conhecido da maioria das pessoas. Seu romance Ibiamoré veio à tona em 2001, quando foi incluído na lista de leituras obrigatórias do vestibular da Unisinos de 2002. O romance, assim como toda sua obra, encontra-se esgotada. Mas pode ser encontrado nos sebos virtuais pelo preço médio de dez reais, exemplar em boas condições de leitura.

                                                                   paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Roberto Bittencourt Martins. Ibiamoré: o trem fantasma. 2ª ed, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995,
                                              424 pp.


sábado, 20 de abril de 2013

A Invenção de Morel

O argentino Adolfo Bioy Casares (1914/1999) trabalhou como colaborador de Jorge Luís Borges durante muito tempo. Entre o que produziram juntos entre roteiros e antologias, há o livro Seis Problemas Para Dom Isidro Parodi & Duas Fantasias Memoráveis escrito sob o pseudônimo H. Bustos Domecq. Por trás do jogo de máscaras da autoria, em que os dois grandes escritores argentinos dão lugar, na verdade, a um heterônimo, ao menos dois aspectos se destacam: a raridade da literatura a quatro mãos e a modernidade do autor como outra criação do autor.
Borges considerava Bioy Casares um dos grandes da literatura universal, escrevendo que sua novela mais famosa, A invenção de Moral, é estruturalmente perfeita. Um fugitivo venezuelano esconde-se numa ilha deserta. Um dia percebe que há outras pessoas na ilha, especialmente uma mulher que lhe interessa sobremaneira. Busca  aproximar-se, mas ela não o nota, assim como os demais também não. Torna-se, então, um voyeur. De repente, assiste a um acontecimento insólito: Morel, o homem que mantém relacionamento cordial com a tal mulher, cria uma espécie de gravador multimídia que reproduz todos os elementos sensíveis da realidade. Morel é impulsionado pela fantasia trágica de vencer a morte para viver a eternidade. Morel fotografara os habitantes da ilha para que vivessem naquela fotografia para sempre.
A invenção de Morel é considerada pelos críticos como uma novela policial. Bioy Casares sempre se interessou por esse tipo de literatura, assim como foi um entusiasta da literatura fantástica, tendo publicado vários contos desse gênero. Tratar A invenção de Morel como novela policial tem um tanto de exagero, embora a história esteja muito bem amarrada e com suspense, levando ao interesse na elucidação da invenção de Morel. Você começa a leitura e não consegue largar até o final de suas cento e poucas páginas.

                          paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Adolfo Bioy Casares. A invenção de Morel. 3ª Ed., SP, Cosac Nsify, 2006, 136 pp., R$ 47,00

domingo, 14 de abril de 2013

Juventude


J. M. Coetzee (1940) nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul. Ganhou o Nobel em 2003. Mas é bem mais que isso. É um dos pensadores mais ativos da atualidade. Defende em suas palestras e ensaios a ideia de que o escritor contemporâneo precisa lidar com a sensibilidade estética, o pensamento e o sentido ético.  Sua literatura elegante e sóbria nos revela personagens que, apesar das adversidades, são ansiosos por viverem experiências, lidarem com dificuldades da vida e do relacionamento com os outros, inclusive no sexo e no amor. O cenário sul-africano social e político se faz presente em boa parte de sua obra (combateu veementemente o apartheid), mas os problemas que seus personagens carregam, através da fluidez exemplar das narrativas, são universais e nos tocam profundamente.
No romance Juventude, o autor nos apresenta um jovem estudante de matemática sul-africano e candidato a poeta que não acredita em si próprio. Nunca pensou em fazer terapia, pensa que pessoas felizes não são interessantes. Mora em um apartamento alugado de um cômodo. Foi para fugir à opressão da família, que saiu de casa. Arrumando um emprego, quer usar sua independência para afastar os pais de sua vida. Afastado dos pais, está tentando provar que todo homem é uma ilha: ninguém precisa deles. Envolve-se com uma mulher dez anos mais velha, que passa a morar com ele. Logo em seguida, percebe que está sendo sufocado, que precisa de seu tempo de solidão, longe da bagunça que ela realizou em sua vida. A mulher o deixa. Aparecem outras que acabam sumindo de sua vida. O que o atrai na matemática, além dos símbolos arcanos, são seus usos, sua pureza. Se houvesse um Departamento de Pensamento Puro na universidade, ele se matricularia, mas matemática pura lhe parece o que a academia tem de mais próximo ao reino das formas. Seu plano futuro, entretanto, é ir para Londres, depois de formado, para se dedicar à arte. Enquanto estiver aperfeiçoando sua capacidade poética no estrangeiro, ganhará a vida fazendo alguma coisa obscura e respeitável. Esse é o começo de uma trajetória atraente e muito bem amarrada que envolverá o leitor nas páginas de Juventude, romance com traços autobiográficos que faz parte da trilogia Cenas da vida na província, precedido de Infância e seguido de Verão. Juventude pode ser lido de forma independente. 

Coetzee vem sendo traduzido no Brasil, através da Editora Companhia das Letras. Além de Juventude, temos Desonra (livro que me impressionou bastante), Diário de um ano ruim, O homem lento e A infância de Jesus, recém-lançado.

Dia 18 de abril o autor dará uma palestra no Salão de Atos da Ufrgs, a partir das 19h30 com o tema Literatura e Censura. Se o leitor tiver interesse, a inscrição poderá ser feita diretamente no sítio http://www1.ufrgs.br/extensao/inscricoes/ins_inscricao.php. A inscrição custa R$ 50,00 para o público externo à Universidade.
                                               paulinhopoa2003@yahoo.com.br                                                

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J. M. Coetzee. Juventude. SP, Cia. Das Letras, 2005, 190 pp. R$ 22,00 (edição de bolso)

domingo, 7 de abril de 2013

Leite derramado

Em Leite derramado, seu quarto romance, Chico Buarque (1944) nos conta a vida de um velho indigente num hospital público do Rio de Janeiro, que narra, de uma forma às vezes desarticulada a alguém que parece ser a enfermeira, sua saga familiar, caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos. O discurso da personagem apresenta muitas personagens que conseguem vida própria em um texto enxuto. Proeza do escritor Chico Buarque que consegue narrar sua história de forma concisa e precisa.
 
Para o velho, todo dia acordava com o sol na cara, a televisão alta no corredor do hospital infecto, ouvindo as vozes das macas com meliantes, aleijados, leprosos e drogados. Sua linhagem não lhe trazia privilégios naquele lugar.Todo cagado nas fraldas, nos conta que teve berço. Seu trisavô desembarcara no Brasil com a Corte Portuguesa. Entretanto, isso agora não o faz melhor do que ninguém. Nem pelo fato de seu trisavô ter sido confidente de Dona Maria Louca. Aquela a gente ao lado dele, agora, não fazem a menor ideia de quem tenha sido Maria Louca. Hoje ele é a escória igual a eles. Antes de ser internado, morava com uma filha de favor, numa casa de um só cômodo nos cafundós do Rio de Janeiro. Ele começa, então, a entrecortar lembranças do passado de seus ancestrais e a decadência econômica da família, antes rica, que foi gradativamente, a cada geração, perdendo seus bens e a educação aristocrática, de que ele tanto sentia saudade. A paixão por Matilde, sua mulher, que de início parece ter sido uma linda história de amor, acaba, no decorrer da narrativa, mostrando a infelicidade dos dois, em meio a preconceitos, traição e loucura.

Leite derramado perdeu o prêmio Jabuti de melhor romance para Ednei Silvestre, com Se eu fechar meus olhos agora. Entretanto, o livro de Chico ganhou o Jabuti como livro do ano. Houve muita confusão entre a editora Record, de Ednei Silvestre e a Companhia das Letras, de Chico. Chico foi atacado por alguns setores da imprensa, que queriam que devolvesse o prêmio. Chico, entretanto, não entrou na briga.

                                                                           paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Chico Buarque. Leite derramado. SP, Cia das Letras, 2009, 200 pp.  R$ 39,50