domingo, 29 de janeiro de 2012

O jogo da amarelinha

O texto da capa que divulga O jogo da amarelinha diz que se trata da história de Oliveira e Magda, os amigos do Club da Serpente, das caminhadas por Paris em busca do céu e do inferno. Em contrapartida, temos a aventura simétrica de Oliveira, Talita e Traveler numa Buenos Aires marcada pelas recordações.
O surgimento de O jogo da amarelinha em 1963 foi uma verdadeira revolução dentro da novelística em língua espanhola. Pela primeira vez levava-se às últimas conseqüências a vontade de transgredir a ordem tradicional da história e a linguagem para contá-la.
São no mínimo dois romances dentro do romance. Cortázar convida o leitor a escolher uma das duas possibilidade que o livro oferece: a primeira, ler a história de forma linear até o capítulo 56, quando termina o romance. A segunda, ler a partir do capítulo 73, seguindo a orientação indicada ao final de cada capítulo. A segunda possibilidade tem a ver com o jogo da amarelinha. Você avança, retrocede, avança novamente e assim sucessivamente. É um jogo de leitura deveras interessante.
O Jogo da Amarelinha é uma espécie de anti-romance, sem enredo convencional, sem suspense, sem comentários psicológicos, quase desprovida de uma descrição e cronologia, elementos que captam a descontinuidade e a desordem da vida. A jornada de Oliveira, o protagonista, começou em Paris, onde sua amante Magda e seu filho mais novo, conversam na sala que se torna o centro da reunião do grupo de amigos, artistas e intelectuais que, juntamente com Magda e Oliveira são os parceiros no diálogo que completa a maior parte do texto.
Em Buenos Aires, no decorrer da hstória, Oliveira trabalha com seus amigos, o casal Talita e Traveler, primeiro em um circo e em seguida num asilo, onde Oliveira é considerado, possivelmente, um louco suicida.
A novela termina de forma ambígua, mais hipotética que real. Faz os leitores mergulharem numa tentativa de encontrar outra maneira de enxergar o que seja nossa realidade.
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Julio Cortázar. O jogo da amarelinha. 6ª Ed. Civlização Brasileira, 1999, 640p.
__________ Rayuela. 2ª Ed., Buenos Aires, Punto de Lectura, 2008, 734 p.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Duas vezes João Gilberto Noll

Harmada

Um homem com uma ferida na perna abandonado próximo a um matagal. Sabe-se que é ator de teatro. Está num momento conversando com um menino, depois aparece numa casa para tomar banho. Lá conhece um rapaz e já estão num bar. No bar conhece um sujeito manco que o leva a tomar banho no rio. De repente está sozinho no rio. Depois consegue um emprego, casa e não tem filhos: descobre que é estéril. De repente, perde a mulher e o emprego, indo parar num asilo de mendicância onde exerce a função de contador de estórias. Lá aparece uma adolescente, Cris, filha de Amanda, mulher com quem havia transado há 14 anos, quando Cris tinha meses de vida. Um suceder de acontecimentos e lugares surge ao longo da trama.
Críticos afirmam que Harmada apresenta uma escrita esquizofrênica. De fato, nele as palavras apresentam vários sentidos. Os relatos do personagem-narrador são delírios no contato com a realidade. É um ser não incluído no contexto social, um ser desqualificado à procura de algo indefinido, mas dotado da capacidade de transformação, em busca de uma provável identidade, que busca encontrar no país de Harmada.
Harmada é considerado um dos cem romances imprescindíveis da literatura brasileira. Se ainda não o leu, leia que é bem bom.

Afagos e acenos

O narrador-protagonista apresenta seu delírio existencial numa busca erótica compulsiva. Desde garoto já tinha se excitado com um garoto, mais adiante apaixona-se por um seminarista que larga a batina para se tornar engenheiro. É uma paixão louca e platônica. Depois está casado, com um filho adolescente. Em suas fantasias é sempre a presença masculina que movimenta seu desejo erótico. O personagem-narrador sacia seu desejo homoerótico fantasiando amores intensos, com juras de amor que se esmorecem assim que finda o encontro, que quase nunca se repete com a mesma pessoa. É um afago. E um aceno de adeus. O amor é anônimo, alguém surge e desaparece sem deixar lembranças. Após um programa com um massagista de boate guei, lembra-se do amante platônico, o tal engenheiro, que não consegue alcançar. Daí ele morre, e é ressuscitado pelo engenheiro, com um beijo na boca. Daí a história toma um rumo inusitado.
De leitura menos fácil que Harmada, Acenos e Agagos está envolto em humor refinado. Será uma bela experiência de leitura.
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João Gilberto noll. Harmada, SP, Francis, 2003, 104pp
__________ Acenos e afagos, 2ª ed, Rio, Record, 2008, 208pp

domingo, 15 de janeiro de 2012

Federico García Lorca

Em 1936, no início da guerra civil, a Espanha perdia um de seus maiores poetas, já convertido numa das primeiras vítimas da violência franquista brutal que iria se abater sobre o país. Morto aos 38 anos, quando estava pleno de vida e de projetos literários, García Lorca transformou-se em lenda. Em Federico García Lorca, uma biografia, de Ian Gibson, um dos mais completos biógrafos de Lorca, alguns mitos são quebrados e sua rica personalidade se ilumina e se ressalta.
Segundo o biógrafo, Lorca nasceu de uma família importante da aristocracia rural do interior de Granada, cercado de amor e carinho pelos pais, que sempre o incentivaram a seguir seu desejo de ser poeta, sustentando-o financeiramente até a idade adulta. A sensibilidade de Lorca se desenvolveu na poesia, dramaturgia e na música, pois era um pianista competente e um cantor razoável, que buscava sempre enaltecer a musicalidade do meio rural, trazendo à luz a musicalidade advinda da cultura oral de sua região.
García Lorca tinha uma personalidade sedutora, cativante e encantadora. De gênio extrovertido, sempre alegrava a seus pares, tocando sua música e declamando seus versos. Quem se aproximava dele ficava-lhe amigo para sempre. Foi contemporâneo de Dámaso Alonso, Salvador Dalí, Luís Buñuel, Miguel de Unamuno, Jorge Guillén e Rafael Albertí, entre outros. Todos esses tiveram contato direto com Lorca. A relação que mais lhe marcou, certamente, foi a com Salvador Dalí, pois foram amigos íntimos, com fortes rumores de terem sido amantes, pois García Lorca era homossexual não assumido.
Quando a veia de dramaturgo se manifestou de maneira irreversível em sua criação artística, sentiu necessidade de desenvolver um projeto, envolvendo a criação de um teatro universitário itinerante, para representar obras clássicas de Cervantes, Lope de Veja e Calderón de La Barca nas aldeias e vilas da zona rural da Espanha, tão privadas de vida cultural. Esse grupo, ficou conhecido a partir de então de A Barraca, sob o comando de Lorca. Durante o período republicano que antecedeu ao franquista, o grupo recebia incentivo financeiro do governo. Os direitistas logo passaram a questionar aquele empreendimento subsidiado pelo Estado, que consideravam pouco mais que um pretexto para a disseminação da propaganda marxista. Católico fervoroso, García Lorca sempre defendeu os pobres e injustiçados, mas nunca se considerou um marxista nem participou do partido comunista espanhol, onde alguns intelectuais amigos seus participavam. Mesmo assim, quando de sua prisão, esses acontecimentos foram propagandeados pelos fascistas para prender e assassinar García Lorca.
O fato de Lorca ter-se pronunciado publicamente contra o regime opressor protofascista e denunciar as injustiças sociais, além do ataque ao grupo teatral, talvez tivessem sido motivo para sua prisão e assassinato 1936. Lorca fora avisado por amigos para que não saísse de Madri, o que ele não fez, preferindo voltar a Granada para junto dos pais, em Granada. Margarita Xirgú, famosa atriz espanhola que representou algumas peças de Lorca com sucesso o incentivou a partir com ela para o México em turnê. Lorca relutou. Quando já estaria com a passagem de navio no bolso para partir, foi quando rebentou a guerra civil e ele feito prisioneiro. Muitos amigos e intelectuais importantes de Espanha (inclusive quem tinha alinhamento à direita política) intervieram a seu favor, em vão. Lorca foi fuzilado com outros presos num local deserto e enterrado em vala comum ali mesmo.
Quanto à dramaturgia de Lorca, tinham suas raízes na paisagem e no lugar de sua infância. A musicalidade de suas peças tinha a forte presença do cante jondo, centrado na cultura andaluza de cunho popular. Suas obras principais: Dona Rosita, a solteira, Bodas de Sangue (o maior sucesso de Lorca dentro e fora da Espanha), Yerma e A Casa de Bernarda Alba, entre outras. Em sua poesia destacam-se o Romancero Gitano e Ode a Walt Whitman.
Federico García Lorca, uma biografia, é de leitura fácil e agradável. Há certa obsessividade do biógrafo em buscar provas (não comprovadas) da sexualidade de Lorca e sua vida amorosa. Não há nenhuma carta, nenhum depoimento de amigos, que se refira ao desejo sexual escondido do poeta, embora sua homossexualidade fosse percebida e comentada no meio social de Lorca. Salvador Dalí, que tivera um relacionamento íntimo de amizade com Lorca, nunca se referiu ao provável romance dele com o poeta.
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Ian Gibson. Federico García Lorca, uma biografia. SP, Globo, 1989, 604 pp

A obra em questão está esgotada, mas pode ser adquirida em sebos da estante virtual: http://www.estantevirtual.com.br/

domingo, 8 de janeiro de 2012

A paixão segundo GH

A escrita é um ato de solidão. Ninguém pode fazer nada a ninguém, a não ser o escritor a si mesmo. A escrita literária é pura abstração poética. Uma das funções da linguagem poética é mostrar as coisas que não acontecem no convívio social. GH não tem memória empírica, é pura abstração. Está no quarto de empregada e logo mais num minarete no deserto. Sonha em se objetivar, mas é medrosa: “Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.” (p.8) Mesmo assim insiste, quer escrever sobre o que não tem controle, quer compartilhar sua individualidade. A paixão segundo GH não é um mergulho na loucura nem no inconsciente por si só. É a luta que deve ser a busca com o mundo. Está tentando dar uma forma à sua desorientação. GH quer a objetividade: “Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?” (p.16) Ela precisa dizer, mas não sabe como. Ao entrar no quarto da empregada que se fora, para arrumá-lo, depara-se com uma barata no guarda-roupa. Num impulso prensa o inseto na porta do móvel. Pronto! Deu-se o fluxo do inconsciente. Esse é o ponto de partida para a narrativa introspectiva. A personagem, perdida no exercício da memória, esforça-se para reorganizar o seu discurso, solicitando a atenção do leitor como a mão que a apoiará nessa tentativa de reorganização caótica da memória. No romance quase não há ação externa. Ficamos sabendo que mora sozinha, é independente financeiramente, é escultora, fez um aborto e amou um homem, mas esses acontecimentos externos não são desenvolvidos, não adquirirem importância na obra. O que vale é seu labirinto interior.
A paixão segundo GH pode ser considerado um romance metafísico. Trata-se de um monólogo centrado na experiência da linguagem. O eu e a coisa. GH e a barata (que inicialmente é nojenta). O romance é uma narrativa poética, como já se disse. GH efetua uma busca existencial, própria da poesia. O tempo interior é o que predomina, com suas angústias e seus gestos.
“Viver não é coragem, saber que se vive é a coragem.” (p.20)
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A paixão segundo GH. 6ª ed., Nova Fronteira, 1979, 176 pp

*** Esta crônica é dedicada a Rosa Ibaños, pelo incentivo

domingo, 1 de janeiro de 2012

Quatro histórias de Graciliano Ramos

A obra de Graciliano Ramos apresenta uma visão amarga e pessimista do mundo, através de seus personagens. Seu estilo primordial é o da precisão, da capacidade de transmitir sensações e impressões com um mínimo de metáforas, só com o jogo vocabular.
Com João Valério, em Caetés (1933), penetramos nesse terreno quase alucinatório que é o homem dentro de si mesmo. Através das reminiscências de sua vida, nos envolvemos no acontecimento central do romance: o adultério. Fazendeiro arruinado que vendera tudo e mudara para a cidade, uma noite dá dois beijos no pescoço de Luísa, mulher de Adrião, seu chefe no trabalho. Rejeitado por ela, sai de lá envergonhado e arrependido com a declaração de amor que fizera. Depois de tempos de insistência, tornam-se amantes. Uma carta anônima revela o idílio. Adrião acaba dando-se um tiro. Com a morte do marido, Luísa rechaça as intenções de João Valério. Paralelamente aos conflitos interiores de João Valério, conhecemos personagens arrogantes, outros de moral duvidosa, numa cidade pequena do interior alagoano. É o primeiro romance de Graciliano Ramos. Apresenta uma falha: quando da morte do marido de Luísa, o destino dela com João Valério sofre um corte, de forma indecisa. Mas isso não prejudica a leitura.
Em São Bernardo (1934), Paulo Honório, aos 50 anos, em completa solidão, decide escrever suas memórias, como se através delas pudesse recuperar algo que perdeu: Madalena, sua mulher já morta. Fazendeiro cruel, impiedoso e destituído de afeto, resolveu um dia casar-se e avistou em Madalena, pobre, solteira já quase chegando aos 30 anos, uma possibilidade que tratou de consolidar. A diferença entre eles era imensa: Madalena era culta, tinha idéias socialistas de amor ao próximo e à justiça social. Expunha atitudes humanas que ele reprimia. Paulo Honório era rude, exercia a posse às pessoas que dependiam financeiramente dele, como se fossem mercadorias. A vida dos dois era um inferno. Madalena lhe mostrava os defeitos e injustiças que cometia, ele as respondia com ofensas e humilhações. Após três anos de brigas e ofensas, Madalena se mata, deixando-lhe um filho que ele não ama. Paulo Honório criara um mundo que se curvava à sua vontade, menos Madalena. Abandonado por empregados próximos a ele, caiu em completa solidão, passou a se afastar das pessoas da cidade. Com a Revolução de 1930, cafeeiros e grandes latifundiários perderam poder. Sua fazenda perdeu prestígio e Paulo Honório perdeu dinheiro. Após três anos da morte de Madalena, numa noite de insônia, decidiu escrever um livro sobre sua vida, que é a história de São Bernardo. Paulo Honório fechou o livro escrevendo uma linha: “estraguei minha vida estupidamente”.
Angústia (1936), terceiro romance de Graciliano Ramos é a história de um crime. Foi publicado graças à ajuda de amigos, pois o escritor encontrava-se preso sob o comando do Estado Novo. O livro apresenta Luís da Silva, funcionário público de origem pobre, remoendo suas lembranças. É necessário chegar ao final do romance para compreender melhor as primeiras páginas do livro. Luís da Silva sai da doença e prostração após 30 dias de convalescença, por causa de um crime que acabara de cometer, motivado por ciúmes. Quando começa a história, portanto, esse fato já aconteceu. Assim como Paulo Honório de São Bernardo, Luís da Silva apresenta o sentimento de posse. Apaixona-se por Marina, moça simples, pobre e fútil. Numa passagem do romance, Luís afirma que construíra dentro dele uma Marina diferente da real, mas que se confundia com ela. Como não a possui, visto que o casamento entre os dois não se realiza, passa a cultivar-lhe um ciúme doentio.

Se Paulo Honório é vítima da arrogância e prepotência, Fabiano, de Vidas Secas, é vítima da seca e da miséria. Homem rude, introspectivo, interiormente mostra-se alguém revoltado com as injustiças que sofre dos mais fortes, ainda que exteriormente baixe a cabeça, sem reação. Ele e sua família vêem-se forçados a migrarem em busca de condições melhores de sobrevivência, já que estão passando fome. No primeiro capítulo, Fabiano, Vitória, sua mulher, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra Baleia são retirantes em busca de um novo pedaço de terra. Alojam-se numa fazenda como servidores. A chuva volta ao sertão, a vida melhora um pouquinho. Por fim, o lugar volta a sofrer a seca e Fabiano decide partir em busca de uma terra da promissão nunca atingida. Cada personagem ganha um capítulo, que é como um retrato de apresentação à história. Os capítulos, quase todos, apresentam uma estrutura independente dentro do universo da novela, atuando como módulos. Rico em monólogos interiores, através da técnica do discurso indireto livre, Vidas Secas mostra toda a maestria do escritor Graciliano Ramos. O capítulo O soldado amarelo é uma obra-prima.
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Graciliano Ramos. Caetés. 31ª ed., Record, 2006, 302 pp
____________ São Bernardo. 71ª ed., Record, 2001, 224 pp
____________ Angústia. 65ª ed., Record, 2011 336 pp
____________ Vidas secas. 85ª Ed. Record, 2002 160 pp