domingo, 28 de setembro de 2014

Beleza e tristeza

Beleza e tristeza, de Yasunari Kawabata (1899-1972), é um comovente romance de complexidade e sutileza. Oki Toshio, um escritor de meia-idade, faz uma viagem nostálgica a Kyoto para ouvir os sinos dos templos soarem na noite do Ano Novo. É movido também pelo desejo de reencontrar Otoko, que fora sua amante 24 anos antes e que agora é uma pintora de renome. Otoko vive num monastério com sua pupila Keiko, jovem de temperamento amoral e apaixonado. À medida que a vida dos três se entrelaçam irremediavelmente, Keiko torna-se a principal agente de destruição deste vasto e inquietante drama de vingança.
De todos os livros de Oki, aquele que permanecera mais tempo em voga e que ainda hoje gozava de grande prestígio do público era o romance onde relatava seu amor por Otoko, quando ela tinha 16 anos. Ao ser publicado, esse livro certamente prejudicou Otoko, chamando a atenção sobre ela, o que, sem dúvida, constituiu um obstáculo para um eventual casamento. Ainda assim, por que, depois de mais de vinte anos, a personagem baseada em Otoko continuava a seduzir tantos leitores? Sem dúvida seria mais correto dizer que era Okoko, tal como ela aparecia no romance de Oki, que seduzia os leitores, e não a adolescente que lhe serviu de modelo. O romance não era a verdadeira história de Okoko, mas simplesmente alguma coisa que Oki havia escrito. Mas, qual era a verdadeira Otoko, aquela que Oki havia descrito ou aquela que a própria Otoko poderia ter criado ao narrar ela mesma sua história? Sem  esse caso de amor o livro não teria existido. E era, sem dúvida, por causa de Otoko que esse romance continuava a ser lido, vinte anos depois de escrito. Se não tivesse conhecido Otoko, Oki jamais teria vivido esse amor. Ele não saberia dizer se o fato de ter encontrado a jovem e tê-la amado, quando tinha 31 anos, fora um infortúnio ou uma felicidade, mas o certo é que esse encontro lhe proporcionara, como escritor, um início promissor. Entretanto, qual a relação, por exemplo, entre a Otoko de seu romance e a verdadeira Otoko? Era difícil dizer.

No romance, observações psicológicas e um questionamento profundo sobre o sentido da arte e da literatura, assim como evocações poéticas surpreendentes dos jardins e monastérios do Japão, fazem de Beleza e Tristeza uma meditação sutil sobre temas caros a Kawabata: solidão e morte, amor e erotismo.

Beleza e Tristeza é o último romance de Yasunari Kawabata, Prêmio Nobel de 1968. Um surto depressivo o levou a tirar a própria vida em 1972. Foi contemporâneo de Mishima.

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Yasunari Kawabata. Beleza e tristeza. 3ª ed., SP, Globo, 2008, 292 pp, R$ 36,00

domingo, 21 de setembro de 2014

Boca do Inferno

A cearense Ana Miranda (1951) surgiu no cenário cultural como atriz de cinema. Se você tem mais de 50 anos e bebeu da fonte dos movimentos culturais de 1968, deve tê-la visto nos filmes Como era gostoso meu francês, Mãos vazias, A faca e o rio etc. É irmã de Marlui Miranda, cantora e ativista da causa indígena, que também foi marcante nesse período e continua ativa como cantora. Ana surgiu no meio literário como poeta. Sua incursão pelo romance deu-se em 1989, com Boca do Inferno, de que falaremos a seguir. Sua originalidade como romancista consiste no fato de se apropriar de figuras conhecidas da historiografia brasileira e construir uma narrativa bem elaborada, sem o ranço de romance histórico.


A ação de Boca do Inferno se passa na Bahia dos 1600. A Companhia de Jesus fortificava-se em igrejas, missões de catequese dos indígenas e colégios para evangelizar as novas gerações, de norte a sul do Brasil. Na Bahia, eram senhores de quase tudo,. Naquele tempo Gregório de Matos acreditava-se dono de uma grande vocação religiosa. Por isso quis ser um deles. Porém, cansou-se dela e passou a procurar algo diferente. Partiu para Portugal. Lá, passou muitas horas à margem do Tejo olhando as frotas, as pessoas na rua, aprendendo a lidar com as mulheres. Leu muitos livros até entrar na Universidade de Coimbra. A poesia trovadoresca portuguesa aguçou-lhe o estilo do escárnio e maldizer. Formou-se em Direito e voltou ao Brasil, atuando como desembargador, função que passou a odiar em seguida. Como conhecesse bem os pecados e a hipocrisia do clero, sentia-se desconfortável entre os louvores da fé a mesquinhez das atitudes humanas. Passou a frequentar embriagado lugares sórdidos da Bahia. O dom da poesia se manifesta nessa fase e passa a compor seus versos de escárnio e maldizer ao lado de outros versos religiosos e amorosos, frutos de diversas relações afetivas mal resolvidas.


Mas Boca do Inferno não é a biografia romanceada de Gregório de Matos. No romance de Ana Miranda, o poeta envolve-se em uma trama da qual participam o padre Antônio Vieira, cujo irmão está metido num complô para eliminar o governador da Bahia, acusado de corrupção. O assassinato do alcaide-mor, por parte desse grupo desencadeia uma perseguição do poder estabelecido contra os conspiradores, para prender e julgar os culpados. Essa perseguição conduz o leitor pelos meandros da política, dos conchavos pelas vielas tortuosas de uma cidade, cuja topografia de altos e baixos atolados de imundície, espelha de modo exemplar a vida colonial brasileira. Vieira é preso, Gregório de Matos é investigado, até o reino português interfere politicamente, para conduzir a história a seu final.

Boca do Inferno deu o Prêmio Jabuti de revelação. Ana Miranda escreveu ainda Dias e Dias, envolvendo a figura do poeta Gonçalves Dias; A última quimera, com o poeta Augusto dos Anjos como tema central; Desmundo, trata da história de órfãs que vinham de Portugal para o Brasil para casarem-se com os colonos; Amrik revive a saga de imigrantes árabes recém chegados em São Paulo no final do século XIX, e muitos romances mais. Em 2014 publica  Semíramis, que tematiza o escritor José de Alencar.
Ana Miranda escreve muito bem. Vale a pena conferir.
                        
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Ana Miranda. Boca do Inferno. 5ª ed, SP, Cia. das Letras, 1990, 336 pp, R$ 31,00

domingo, 14 de setembro de 2014

Dois rios

Há um grão de loucura em Marie-Ange que me atraiu de forma arrebatadora. No princípio, não conseguia identificá-lo com exatidão, apenas sabia que ele existia e me tirava de onde eu permanecera nos últimos anos. Seu corpo pequeno, sua pele alva, seu cabelo não seriam propriamente belos não fosse esse grão de loucura. Foram seus detalhes pouco usuais, seus pequenos defeitos que me encheram de vontade de me aproximar e descobrir de onde vêm. Eu tinha apenas os indícios: a boca que entorna com o cigarro, o despudor ao falar, o jeito desengonçado de andar, o corpo solto.
Da areia, vi-a entregar-se ao mar como se a existência começasse no momento mesmo em que ela entrava na água, como se a vida pulsasse ali e o instigante valesse mais do que toda uma história. A sua liberdade escancarada me comoveu.

Dois rios, dois irmãos gêmeos, duas ilhas - Ilha Grande na vila de Dois Rios, onde se situa o presídio que abrigava presos políticos; Nonza, na Córsega, onde vivem os pais de Marie-Ange.
Na década de 70, em plena ditadura no Brasil, o pai de Joana ia toda semana visitar seu irmão, preso por questões políticas, e numa dessas visitas conheceu sua mãe, filha de um policial. Ela, de classe média baixa, católica, educada para casar e ter filhos. Ele, rico, ateu, criado para se dar bem na vida. Nenhum dos dois conseguiu cumprir nem descumprir seus destinos, eles apenas se esqueceram de ser felizes.

Foi Marie-Ange quem tirou Joana (a protagonista da primeira parte de Dois Rios) de uma casa repleta de histórias tristes, de dor e culpa, onde viu sua mãe perambular dia e noite, tomando cuidado para não pisar no rejunte que une os tacos de madeira do piso, conferindo se o garfo e a faca estavam na distância exata do prato, trocando de sabonete a cada vez que lavava as mãos. Onde também  viu sua mãe escutar por horas a fio "Ne me quitte pas", a música que seu pai costumava cantar para ela e que depois de sua morte a fazia chorar. Sua mãe cultivava essas lágrimas fugindo para um universo  onde acabou vivendo seus dias. A morte do pai tornou a vida de Joana e seu irmão frágil e vaporosa. O elo entre os dois se rompera de forma tão abrupta, que agora Joana passa a duvidar da sua memória.

Antônio, irmão de Joana, é o protagonista da segunda parte do romance de Tatiana Levy.  Aos 22 anos, Antônio  terminou a universidade e foi fotografar pelo mundo. A vida lhe parecia estreita no apartamento em que morava em Copacabana  e deixou a irmã com a mãe e a culpa.A reconciliação parecia cada vez mais improvável. Antônio, que conhecera Marie-Ange no Brasil, quando estava com a irmã, acaba se apaixonando pela francesa, indo morar com ela numa aldeia da Córsega, tendo essa relação marcado profundamente a vida dele também.


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Tatiana Salem Levy. Dois rios. 2ª ed.,  Rio, Record, 2013, 224, pp, R$ 37,00

domingo, 7 de setembro de 2014

O mesmo mar

O mesmo mar. Podemos concluir tudo assim: um homem no quarto. O filho não está aqui. Sua nora está com ele por enquanto. Vai. Vem. Enquanto isso tem um caso com um rapaz irrequieto, deita com ela quando os negócios permitem, rapaz esperto, vai e vem. À noite, um homem à mesa. Tudo é silêncio. O filho não está. Sobre o aparador guardanapos, toalhinhas rendadas, entre elas duas fotos. Pela janela o mar. Móveis escuros. Esta noite ele deve checar um balanço, o que fecha, o que não fecha. Uma viúva com penteado à la garconne esteve aqui esta noite, por puro acaso, Às vezes ela dá uma passada, tomar um chá. O inverno passa, o mar permanece. E a luz, ela vai e vem. Uma vez de um jeito e outra vez de outro. Esta noite ele deve calcular no monitor quais foram seus lucros e quais suas perdas, o que conseguiu juntar. Coluna a coluna. Não é assim com a angústia: ela é incalculável.

Esta passagem de O mesmo mar, de Amós Óz, ilustra uma visão parcial desse romance, cujo enredo se revela numa sequência de seções curtas, num tom casual e ameno das conversas do dia-a-dia, às vezes como parábola bíblica, fábula, sonho ou poema.
O viúvo sexagenário Albert Danon vive só. Seu filho, Rico, após a morte da mãe, partiu para o Tibet em busca de paz interior, deixando a relação comTida, a namorada, em aberto. O tempo passa, Dita aparece na casa de Albert pedindo abrigo, seu projeto de cinema não deu certo, o produtor fugira com o dinheiro para o projeto. Está sem apartamento e sem dinheiro. Albert lhe oferece o quarto do filho como abrigo. A presença da jovem no quarto ao lado passa a atormentá-lo. Fantasia e realidade se confundem nesse romance de solidão e reencontro consigo mesmo.

Amós Óz nasceu em 1939 em Jerusalém. Autor de inúmeros romances e ensaios, tem se dedicado, ultimamente, à militância em favor da paz entre árabes e israelenses.
Tradução do hebraico por Milton Lando
     
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Amós Óz. O mesmo mar. SP, Companhia de Bolso, 2014, 272pp, R$ 24,50