domingo, 29 de março de 2015

O professor

Heliseu é um homem do século passado vivendo num Brasil contemporâneo. É um velho professor de Linguística, acorda de um sonho agitado no dia em que deve preparar um discurso de agradecimento na homenagem que receberá na universidade. No sonho, Heliseu era abraçado por um inimigo pegajoso que o agarrava de forma insistente buscando beijar seus lábios.

Esse sonho é o ponto de partida para o professor repassar sua história de vida. Nessa trajetória de revisitar sua memória, ficamos sabendo que Heliseu era especialista nos processos de construção e transformação da linguagem, mas não se comunicava com aqueles de quem era próximo. Passou a vida toda achando que levava uma vida normal com a mulher, até o dia em que ela se suicida, jogando-se da sacada do apartamento. Descobriu a  homossexualidade do filho, quando o surpreendeu com um amigo no quarto. Esse filho mais tarde muda-se para o Estados Unidos, casa-se com um americano e adotam um filho. Heliseu se dá conta de que nunca tivera uma conversa afetiva com o filho, abraçara-o uma única vez, no enterro da esposa. A velha empregada que o serve há muito tempo também lhe é estranha. Nesse dia em que se lembra da vida, pensa em convidá-la para tomarem café juntos, mas recua ante a possibilidade dela pensar algo de errado em relação ao gesto.

Heliseu foge da necessidade de reconhecer sua verdade, já que a verdade é o produto do medo da morte. Suas lembranças, mesmo as mais trágicas, passam-lhe pela mente como coisa corriqueira, negadas. É um covarde que aceita as derrotas como se as coisas fossem assim e pronto. 
               paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Cristóvão Tezza. O professor. 2ª ed, Rio, Record, 2014,  240 pp, 35,00

domingo, 22 de março de 2015

K. Relato de uma busca

Bernardo Kucinski (1937) esclarece o leitor em K. Relato de uma busca,  que "Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu". 

Um homem morou por tinta anos em uma casa e costumava receber de tempos em tempos  cartas de um banco com oferta de produtos financeiros  endereçadas a sua filha que nunca morou lá. De início, questionou como era possível enviar reiteradamente cartas a quem desaparecera há mais de três décadas. Sua filha tinha sido morta pelo regime militar e seu corpo nunca foi encontrado.  Por que teria ela dado esse endereço, se a casa havia sido comprada seis anos depois de seu desaparecimento? De fato, os fugitivos do exército que entravam para a clandestinidade não tinham lares fixos. Talvez ela tivesse dado aquele endereço ao banco como forma de se proteger.

Esse homem é K.,um imigrante judeu, professor emérito, escritor de livros em iídiche,língua que os judeus da Europa oriental falavam e  hoje é língua morta, substituída pelo hebraico após a criação do estado de Israel. Bernardo Kucinski descreve a agonia e a angústia desse um homem que vê a filha desaparecer subitamente, saber que casou no exílio como forma de se proteger ela e o marido em caso de fuga, sem que pudesse participar, bater em diversas delegacias e departamentos do exército e nunca ter uma resposta concreta de que a filha havia sido mesmo sequestrada, sem nunca saber se estaria viva ou morta.

Quem  acompanhou ou tem conhecimento do que foi o doloroso processo de perseguição aos presos políticos, vai reconhecer no livro personagens que remetem a figuras conhecidas do meio repressivo, a maior não nomeada, com exceção do delegado Fleury. Esses acontecimentos, entretanto, ganham fôlego maior pela força da ficção representada pelo personagem K.

O desaparecimento da irmã do escritor durante a ditadura militar serviu de mote para a construção dessa narrativa carregada se suspense, agonia e compaixão.
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Bernardo Kucinski. K. Relato de uma busca. SP, Cosac Naify, 2014, 192 pp, R$ 29,90

domingo, 15 de março de 2015

Confissões de uma máscara

  
Mishima narra em primeira pessoa a história de um jovem narcisista dividido entre a paixão platônica por rapazes e o amor frágil por uma jovem durante a idade adulta, até o final da segunda guerra mundial. Quando criança, o narrador morou com os pais na casa dos avós em condições precárias, pois o avô, comerciante promissor perdera quase tudo indo todos morar em uma casa alugada nos arredores de Tóquio, onde o menino nascera. O avô assume a educação do garoto, mesmo quando seus pais se mudam. Desde pequeno mostrou-se uma criança frágil de saúde. Um dia, quando vinha caminhando para casa de mão dada a alguém, viu um jovem carregando baldes de excrementos . Trazia um pano sujo enrolado em torno da testa. Seu rosto era bonito e corado. Era um limpador de fossas e vestia uma calça justa de algodão azul-marinho. Ainda que não pudesse perceber com clareza à época, pois tinha cinco anos, o menino havia recebido a revelação alegórica de uma força que se manifestava pela primeira vez na figura daquele limpador de fossas. O que lhe chamava, compreendeu mais tarde,  era o amor malevolente dos que se atraem por seus iguais: queria ser ele, queria ser  o outro. A imagem do jovem com sua calça justa azul-marinho movendo com perfeição seu corpo da cintura para baixo levou-o a adorar de forma inexplicável essa vestimenta, embora não entendesse bem por quê.  Mais tarde esses mesmos sentimentos passaram a se manifestar por jovens de outras profissões, onde o corpo do outro formava inconscientemente o desejo pelos iguais.

Na escola, teve alguns namorados platônicos, jovens que fugiam aos padrões normais de jovens estudiosos, mais velhos que ele. Mais tarde, quando jovem, vai  à casa de um desses "namorados" e conhece uma jovem adolescente frágil e delicada, que lhe impulsiona um outro tipo de atração, diferentemente da atração física: Monoko. A história dos dois vai até o final do romance, onde os dois não ficam juntos, pois o jovem não consegue definir claramente o que sente por ela. Paralelamente a isso, a presença da morte sempre lhe fez companhia também desde a infância. Durante a segunda guerra consegue insistentemente ingressar no serviço militar. Quando a guerra acaba o Japão imerge na miséria e a depressão passa a se manifestar nesse jovem sofredor e narcisista.

Conhecendo um pouco da vida de Mishima, percebe-se claramente traços autobiográficos no perfil do personagem atormentado de Confissões de uma máscara. Inconformado com o processo de ocidentalização do Japão após a segunda guerra, onde muitos de seus valores culturais foram subjugados à cultura ocidental, Mishima cria um movimento de contestação buscando preservar valores da cultura ancestral japonesa. Acabou cometendo suicídio durante um ritual previamente traçado como forma de protesto.

Tradução do japonês de Jaqueline Nabeta

               paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Yukio Mishima. Confissões de uma máscara. SP, Cia. das Letras, 2004, 200 pp. De 29 a 37 reais.

domingo, 8 de março de 2015

Divórcio em Buda


O escritor húngaro Sándor Márai (1900/1989) narra o Divórcio em Buda durante o período em que a Hungria já não pertencia mais ao Império Austro-Húngaro.  A capital Budapeste passara por transformações, perdera muito do poder econômico, a classe média passava por uma crise econômica, apesar de ainda existir uma burguesia mesclada com o que restara da antiga aristocracia austríaca. Kristóf Kömives, o personagem central, é um juiz austero que começava a emergir na sociedade húngara. Seu pai também havia sido um juiz famoso. Criado numa instituição católica depois da separação dos pais - a mãe abandonara o lar deixando os filhos com o marido, adquiriu uma personalidade conservadora calcada na moral e nos valores familiares.

Numa tarde (aí começa o romance), analisando os processos de divórcio, deteve-se em um deles, cujo casal em processo de separação ele já conhecia, apesar de, aparentemente, terem mantido durante anos um relacionamento superficial. Kristóf se atém a relembrar  quando os conhecera, primeiramente o marido, com quem havia estudado alguns anos no mesmo colégio e depois encontrava esporadicamente no meio social. Depois lembrou-se da esposa e da impressão que lhe causara durante esse tempo.

Saindo do escritório ele passa em casa para acompanhar a esposa em um dessas festas chatas de caráter burguês que não tinha apreço, mas comparecia por obrigação. Na volta ao lar, já tarde da noite, sabe pela empregada que há um homem no escritório que insistiu em esperar para falar com ele. Esse homem era o marido do referido divórcio. O diálogo entre os dois, revela uma situação inusitada: a mulher havia se matado há pouco e o juiz se vê envolvido nos fatos que lhe são narrados pelo homem desesperado.

Novela muito bem tramada, que prende o leitor até o fim da narrativa, Divórcio em Buda é um motivo excelente para o leitor que ainda não conhece a literatura de Sándor Márai, considerado um dos grandes do romance moderno ocidental.

Tradução de Ladislao  Szabo

                                        paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Sándor Márai. Divórcio em Buda. SP, Companhia das Letras, 2003, 176 pp R$ 32,00

domingo, 1 de março de 2015

O simples coronel Madureira


Domingo... O seu jornal predileto continuava, aberta ou indiretamente, metendo o malho na situação - o preço dos transportes ameaçavam vertical subida, o preço dos gêneros de primeira necessidade não se estabilizavam ao menos, a carne desaparecia dos açougues, o pão das padarias e os remédios das farmácias, organizações estudantis eram fechadas e universidades interditadas, presos políticos eram seviciados, numerosos asilados permaneciam em embaixadas com dificuldades nos passaportes e nos inquéritos instalados cometiam-se os mais criminosos abusos.

O fato é que Madureira, que adorava tomar seu chimarrão todas as manhãs antes de cuidar de seu jardim e de passear com a mulher, recebera o convite do Alto Comando Revolucionário do Exército, para ocupar um cargo importante no Serviço Geral de Abastecimento de Lubrificantes. Com isso, Marques Rebelo nos revela uma deliciosa novela curta de 126 páginas que lemos com prazer. O que mais queria o coronel Madureira, que se aposentara do exército com uma vida boa, mas simples, era gozar a vida. Mas seu trabalho burocrático no tal órgão do exército expõe a ele um trabalho monótono, uma burocracia recheada de cargos nomeados por interesse, até que um dia ele recebe um ofício do Alto Comando, instruindo-o a denunciar todos os funcionários que manifestassem opiniões contrárias ao regime de governo imposto pelos militares.

Não deixa de causar surpresa o fato de O simples coronel Madureira ter sido publicado sem sofrer censura. A obra foi lançada em 1967, quando Costa e Silva assumira o governo, sucedendo Castelo Branco, a poucos dias do Ato Institucional, que restringiu os direitos civis e promoveu o golpe dentro do golpe.
               
                                       paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Marques Rebelo. O simples coronel Madureira. Rio, José Olympio, 2013, 126 pp R$ 24,00