domingo, 23 de fevereiro de 2014

Reprodução

Existem traços de um discurso neofascista rondando as redes sociais e a mídia de um modo geral. O político defensor dos agricultores rurais afirma em vídeo que quilombolas, índios, gueis e lésbicas "são tudo que não presta". Depois ele se retrata negando ser homofóbico, tem pessoas de suas relações que "são do meio" e a retratação está feita. A professora universitária do Pará chama um segurança negro de macaco. Depois se desculpa, afirmando que se referiu a macaco como brincadeira, macaquice. A jornalista do SBT que se diz cristã, do bem, compreende as pessoas que hostilizaram"o marginalzinho preso a um poste". Isso que estou dizendo é café pequeno diante do discurso neofascista. Muito discurso contraditório que você encontra nas postagens do Facebook, por exemplo, faz parte de uma classe média, a maioria com curso superior, que não se presta a fazer uma análise de conjuntura (viva o Betinho!), reproduzindo discursos alheios oriundos de uma preguiça para pensar politicamente sua opinião própria.

Na esfera internacional, tivemos recentemente  o caso de Marine Le Pen, candidata de extrema direita à presidência da França, pela Frente Nacional. Ela dizia defender um estado laico e, contraditoriamente, propagava a xenofobia e a homofobia, através de um discurso ambíguo carregado de clichês. Esse fato chamou a atenção do escritor Bernardo Carvalho. Ele percebeu que estamos hoje diante de um novo tipo de fascismo que não está exatamente onde o fascismo estaria,  o de Mussolini e Hitler. Há um novo fascismo no discurso competente carregado de narcisismo que perambula por espaços supostamente democráticos. Isso serviu de  mote para seu novo livro, Reprodução, um romance tragicômico, tendendo a um humor negro.  O primeiro romance político de Bernardo Carvalho.

Um cara que trabalha no mercado financeiro e perdeu o emprego e a mulher resolve estudar chinês por considerar que os chineses vão dominar o mundo. Ele está na fila do check-in para pegar o voo para Xangai, quando encontra a antiga professora de chinês com uma criança querendo embarcar no mesmo voo. Ele tenta manter contato com a mulher, mas ela é presa e desaparece. Ele também é confinado numa sala sem janelas do aeroporto, onde transcorre todo o romance.

O estudante de chinês, ao ser interrogado, diz ao delegado que lê as revistas semanais , jornais, blogs, artigos de cronistas, colunistas e articulistas. Acha que são gente preparada que fala com propriedade, porque sabe o que estão dizendo. Pensa que brasileiro é burro e ignorante. Não se consegue conversar com um brasileiro. O brasileiro nasce inocente, sem memória, sem educação, sem peso, sem luta, sem sangue.  Por isso estuda chinês, para quando a China invadir o Brasil e será um deles. O chinês é a língua do futuro, com ela as pessoas vão poder dizer o que quiser, sem consequência, sem responsabilidade e sem contradição. Na língua do futuro, o assassino vai clamar justiça, o racista vai exigir seus direitos, o fascista será o porta-voz da democracia, na língua do futuro. A língua do futuro dará ao homem o que ele quiser ouivir.

O livro é dividido em três monólogos (na verdade são diálogos em que só a fala do protagonista é reproduzida). Leitura interessante.

                                                                                paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Bernardo Carvalho. Reprodução. SP, Companhia das Letras, 2013, 168 pp, R$ 37,

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Primavera num Espelho Partido

O pano de fundo do romance é o período da ditadura uruguaia imposta ao país de 1973 a 1985. A história gira em torno de Santiago, preso político, e Graciela, sua mulher. Graciela é forçada a pedir asilo na Argentina com a filha pequena, mais o pai de Santiago, para tentar refazer sua vida. Em cinco anos de prisão, comunicam-se apenas por cartas esporádicas. Santiago vive um tempo estático, onde nada de novo acontece. Passa e repassa as lembranças familiares como forma de se manter livre. A escolha dele, de lutar contra a opressão, e a dela, de sair do país, levam suas vidas a um rumo imprevisível. Graciela, ao contrário,  precisa seguir em frente, procurando recompor sua vida com a filha. Cai em uma rotina  de mudanças constantes, em que até o amor pelo marido será afetada, já que Graciela começa a nutrir sentimentos pelo melhor amigo de Santiago. O romance é contado em várias vozes, inclusive a de Mario Benedetti, que relata seu drama de exilado político em várias partes do mundo. Don Rafael, o pai de Santiago, é uma dessas vozes. Sua fala revela a preocupação de o filho enlouquecer na prisão. É nos torturadores que reside a loucura. São loucos por vocação e livre escolha, que é a forma mais ignóbil de loucura. Ganharam aulas de tortura dos norte-americanos para se diplomarem dementes. Mas isso não acontece. Ao receber uma carta do filho, sente que sua descida ao inferno não o incinerou. Está são. Pensa o pai que, mais do que se entregar a uma esperança, o que conta para o filho é se agarrar à sanidade. E seu filho continua sensato. Está dosando seus ódios com prudência e sagacidade, o que é decisivo. O pai sabe que é difícil ter bom senso quando se passou pela humilhação e pelo mutismo obstinado e pelo asco à morte e pelo alerta sem trégua e pelo pavor solitário e pelo martírio em cotas incômodas. Depois de tudo isso, agarrar-se à sensatez pode ser uma forma de delírio. Só isso pode explicar essa ferrenha lealdade ao equilíbrio. Isso explica o respeito a si mesmo, fidelidade aos demais e sobretudo muita tenacidade, muita obstinação e uma desmistificação progressiva da morte.
Primavera num espelho partido é uma história sobre as contradições humanas, a busca de sentido na vida. Benedetti compõe um mosaico de impressões e sentimentos, numa história marcante sobre a permanência do amor em tempos sombrios.

A tradução é de Eliana Aguiar
                                                                               paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Mario Benedetti. Primavera num espelho partido. Rio, Objetiva, 2009, 218 pp, R$ 42,90

domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Taça de Ouro

Londres, início do século XX.  A senhora Assingham, casada com um militar aposentado, recebe em sua casa a visita do príncipe italiano Amerigo, vindo a Londres para casar-se com Maggie, jovem aristocrata e rica. Durante o encontro, a senhora Assingham recebe também a visita inesperada da srta. Charlotte, que voltava de Nova Iorque. O que a jovem estaria fazendo ali, a poucos dias do casamento do príncipe com Maggie, amiga de Charlotte? Naquele momento, o príncipe, que se preparava para partir, decide ficar. Para a senhora  Assingham,  ele não estaria ficando para fazer uma pergunta grosseira (quanto tempo ela pretendia ficar hospedada na casa da senhora Assingham?). Havia um ar de suspense no semblante do príncipe, reflexo do medo que tinha da jovem. Será que ela se jogaria em seus braços ou, pelo contrário, seria maravilhosa? Ela veria o que ele iria fazer - foi o que  o estranho minuto de silêncio disse a ela. Mas o que ele poderia fazer, além de deixar claro que faria qualquer coisa, tudo, por ela, do mais honradamente possível? Mesmo que ela se jogasse em seus braços, ele tornaria isso fácil, isto é, desconsiderar, ignorar, não lembrar, e também lamentar. Na verdade não foi isso o que aconteceu, apesar de não ter sido com um simples toque, mas através das gradações mais delicadas, que a tensão dele diminuiu. Charlotte era um produto raro, especial. Sua especificidade, sua solidão, sua carência de posses, isso é, sua carência de ramificações e outras vantagens, contribuíam para enriquecê-la de algum modo com uma neutralidade estranha, preciosa, para constituir para ela, tão distanciada e ao mesmo tempo tão consciente, uma espécie de pequeno capital social.
O príncipe acaba indo embora e a senhora Assingham providencia as acomodações para Charlotte em sua casa. Mas uma dúvida lhe persiste, por que a jovem viera antes e não depois do casamento de Maggie? Tarde da noite, expondo ao marido o incômodo que a perturbava, ficamos sabendo que Charlotte e Amerigo haviam sido amantes na Itália, mas o relacionamento não fora adiante, talvez porque a Charlotte interessasse um homem de posses e o príncipe estava praticamente falido. Temendo que alguma coisa pudesse comprometer o casamento de Maggie, a senhora Assingham arma uma estratégia para casar Charlotte com um nobre inglês, bastante amigo do príncipe Amerigo.

A taça de ouro, obra-prima de Henry James,  um dos principais introdutores do fluxo de consciência na narrativa, é marcado pela dúvida, pelas impressões, pelas ações decorrentes disso por parte de quem imagina a partir daquilo que vê. Num primeiro momento é o olhar da senhora Assingham sobre Maggie, o príncipe e Charlotte. No segundo momento é o olhar de Maggie sobre o marido e Charlotte. História longa e envolvente, é indicado para quem gosta de literatura acima dos joelhos. Vale a pena!

Tradução de Alves Calado
                                                        paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Henry James. A taça de ouro. Rio, Record/Best Bolso, 2009, 574 pp, R$ 25,00
 

 

 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

O Voo da Madrugada

O voo da madrugada, de Sérgio Sant'Anna (1941), é um livro híbrido. Divide-se em três partes, a primeira e a terceira são contos e estão intercaladas pela novela O Gorila, também dividida em três partes. Os temas de quase todas as histórias são a solidão e a morte, tratadas algumas vezes com humor irônico, para abrandar a atmosfera sombria das narrativas.
O personagem do conto Invocações afirma que sempre pairou no mundo a pergunta se existe o Diabo. Talvez ele exista, se existir Deus. Mas, ainda que houvesse uma possibilidade apenas, entre milhões, de que o Diabo existisse e pudesse apossar-se da alma de alguém em troca de uma grande fortuna artística ou de outra ordem, não se atreveria a evocá-lo. Mesmo que a obra não passasse de um simples conto, e o contista um pequeníssimo Fausto.  O que não quer dizer que ele, o contista, quando em desespero, não possa apelar para outras invocações, como a morte, por exemplo. Pois a existência de um ser para além da morte é algo em que se pode acreditar ou não, mas que os textos que lhe vieram à cabeça, independentemente do esforço que lhe custou a escrita e do seu modesto valor, sofreram em tudo a interferência da própria invocação e estão com ela intimamente relacionados. Disso não há a menor dúvida, como se verá nos contos de O voo da madrugada, Prêmio Jabuti de 2004, na categoria contos.
Na viagem que inicia esses contos de Sérgio Sant'Anna, um homem embarca num voo noturno em companhia de alguns cadáveres e de pessoas enlutadas. O absurdo da situação , porém, deve-se mais às especulações íntimas do personagem que narra, misto de atração e repulsa pela morte. Seus fantasmas interiores desdobram-se em fantasia, memória, alucinação e desejo sexual, sempre de forma ambígua.

 A solidão que persegue os personagens do livro de forma desesperada leva-os, muitas vezes,a  pensar em dar cabo da existência. À obsessão pela morte, associa-se forte carga erótica e também a busca pela forma perfeita.  Sedução, volúpia, imaginação, fantasia, morte, nos textos que fecham o livro, retomam essas figuras femininas, defendendo uma arte ligada de forma íntima à vida. A composição da escrita de Sérgio Sant'Anna alimenta-se de forças artísticas criadoras e destrutivas, indissociáveis, que permitem alcançara a fusão perfeita - morte, mas também viagem e delírio, como um voo na madrugada.
O autor nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Ganhou três prêmios Jabuti.

                                                paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Sérgio Sant'Anna. O voo da madrugada. SP, Cia das Letras, 2003, 248 pp. R$ 39,50