domingo, 31 de março de 2013

O último voo do flamingo

Na vila de Tizangara, em Moçambique, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Só os fatos eram sobrenaturais. Por isso, o narrador de O último voo do flamingo nos diz que tudo que nos vai contar, ocorreu. O mundo não é o que existe, mas o que acontece, ele diz. Eram os tempos de pós-guerra e tudo parecia correr bem. Soldados das Nações Unidas vinham vigiar o processo de paz. Coisas sobrenaturais começaram quando alguns desses soldados começaram a explodir, num total de cinco. Um dia, apareceu um pênis decepado na estrada principal que dava acesso à Vila. Um boné das Nações Unidas estava suspenso num galho de árvore. Havia a tentativa de identificar o corpo. Uma delegação oficial estava prestes a chegar, para investigar o caso do sexo decepado. Gente interna do governo, gente de fora. Até das Nações Unidas. Vinham investigar o caso do sexo decepado, mais os outros casos de soldados estrangeiros que explodiram. O administrador da vila nomeou um habitante da vila que sabia ler e escrever, para ser o tradutor oficial da comitiva, mais especificamente do italiano Massimo Risi, a quem o moçambicano traduz não a sua língua, que o italiano sabia falar, mas a cultura oral de seus ancestrais que está desaparecendo em decorrência da guerra que expulsara os portugueses e firmara no país os rebeldes que passaram a governar com mão de ferro, mantendo a corrupção e a miséria sobre seus semelhantes.
Como costuma acontecer nas histórias do moçambicano Mia Couto (1955), através de uma narrativa carregada de lirismo, conhecemos o administrador Estevão Jonas, de guerrilheiro a empossado comandante da cidade, usando de seu poder para desviar verbas para benefício próprio. Há personagens fascinantes como Temporina, mulher de corpo exuberante com feições de anciã, a prostituta Ana Deusqueira, chamada inicialmente para tentar identificar a quem pertenceria o pênis decepado, o pescador Sulpício, pai do tradutor que nos conta a história e que lhe passa verdadeiras lições de vida relativas à ancestralidade do povo moçambicano, destruído pelo abranquecimento do colonialismo português e pelas bombas que mataram milhares de gente inocente.

                                                                  paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Mia Couto. O último voo do flamingo. SP, Cia. das Letras, 2005, 232 pp.  R$ 46,00

domingo, 24 de março de 2013

Ravelstein


O canadense Saul Bellow (1915/2005) fez parte de um grupo de escritores que exercem o gênero romance-ensaio (parecem ser, ao mesmo tempo, romance, ensaio, tratado científico, história e reportagem), para melhor constituir o espelho do homem e da sociedade.Só assim o leitor contemporâneo chegaria a acreditar na “verdade da ficção”. É tendência do romance moderno, a partir do século XX. Doutor Fausto, de Thomas Mann, O jogo das contas de vidro, de Herman Hesse, Ulysses, de Joyce, os romances e o teatro de Sartre e Simone de Beauvoir, a obra de Jorge Luís Borges; no Brasil: O filho eterno, de Cristóvão Tezza e 9 noites, de Bernardo Carvalho, como um punhado de inúmeros exemplos. Há casos em que a imersão na realidade política e social é tão intensa, que a história torna-se árida, parecendo fugir ao mundo da ficção. As obras de Saramago, a meu ver, são assim, a história se perde nas reflexões políticas do autor em meio à trama.
Ravelstein, de Saul Bellow, é um bom romance. Lança o foco nos momentos finais de um intelectual judeu, vítima da condição humana, numa vida sem sentido. Com formação clássica sólida, elitista, refinado, o protagonista aproxima-se do fim de sua vida pródiga, tendo conquistado fama e fortuna. Como fora professor, tem seu grupo de seguidores, ex-alunos seus a quem havia ensinado filosofia política e passaram a amigos de longa data. Um de seus discípulos sugere que ele lance um livro acerca do que sustenta a humanidade ou tem capacidade para destruí-la. O livro é um sucesso e Ravelstein torna-se um milionário. Entretanto, sabedor de que está prestes a morrer em decorrência da Aids, Ravelstein pede a esse amigo que faça sua biografia. No diálogo que os dois mantêm em função desse propósito, Saul Bellow confronta o nihilismo americano ao dizer às pessoas o que elas talvez não queiram ouvir. Trata-se de uma reflexão sobre a mortalidade. Supõe-se que a personagem Ravelstein foi inspirada em Allan Bloom, filósofo político que influenciou não só Bellow, mas gente como Margareth Tatcher, Sartre e Beauvoir.
Ravelstein está esgotado, mas você encontra exemplares novos no sebo Balaio Digital, a R$ 7,90.

                                          paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Saul Bellow. Ravelstein. Rio, Rocco, 2001, 216 pp.

domingo, 17 de março de 2013

Sargento Getúlio



Sargento Getúlio é sujeito tosco, sem formação acadêmica, trabalhou desde a infância. Cresceu, casou-se, foi traído e assassinou a mulher grávida. Para fugir, quem sabe, à condenação pelo crime, torna-se cabo eleitoral de um poderoso chefe político de Aracaju, ligado ao PSD. Como já havia feito vários“trabalhos” a esse político, Getulio aceita mais um, prender o líder da UDN, de quem não se conhece o nome.   Getulio cumpre a missão e o retorno da viagem rumo a Aracaju é a espinha dorsal da narrativa. O pano político do romance, como se vê, é o do coronelismo, se se enraizou no país da proclamação da República até a ascensão de Getúlio Vargas ao poder na presidência do país.
A missão confiada se converte na razão de ser do Sargento Getúlio. Quando recebe a informação de que deve soltar o prisioneiro, devido às reviravoltas políticas na capital, decide continuar firme com seu propósito, executando a lei por conta própria. Como fundo da história está o conflito ideológico e o comportamento degradante de personagens, cujo objetivo é sobreviver num espaço hostil, dominado pela corrupção política. O romance de João Ubaldo Ribeiro (1941) foi publicada em 1971, em plena vigência do regime militar.
O autor de Sargento Getúlio constrói a história, rompendo a estrutura narrativa tradicional, numa construção aparentemente caótica (mas nem por isso difícil de ser compreendida). No primeiro capítulo, Getulio fala em monólogo ou em diálogo com Amaro, o chofer que o acompanha, e com o preso, que não fala em nenhum momento da narrativa. Todos estão voltando da cidade de Paulo Afonso, onde foram buscar o prisioneiro. Reviravoltas políticas fizeram com que o mandante da busca denunciasse o sargento Getúlio, para salvar a própria pele. Getúlio nega-se a entregar o preso. Na luta, acaba degolando um tenente e a situação se complica. A partir daí, resolve cumprir a missão por conta própria. Na consciência conflituada e em crise total do protagonista, as noções de espaço e tempo vão desaparecendo aos poucos. Sargento Getúlio, em sua trajetória existencial, descobre que o tempo correu e que o mundo mudou. Como se nega a aceitar essa mudança, sua epopeia tem um final trágico.

                                                                     paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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João Ubaldo Ribeiro. Sargento Getúlio. RJ, Ponto de Leitura, 2010, 176 pp.  R$ 14,90

domingo, 10 de março de 2013

Middlemarch, um estudo da vida provinciana


George Eliot (1819/1880) era mulher. Seu nome feminino era Mary Ann Evans. Feia, sem dote e sem posses, iniciou seus esforços no sentido de adquirir cultura de forma autodidata, pois a  mulheres do seu tempo só lhes restavam o ensino de boas maneiras, belas-artes, piano, religião e bordados. Tinha personalidade marcante. Fugiu com um homem casado, numa época em que tal atitude chocava a moral protestante. Chamava-se George Eliot e era escritor. Foi ele que a incentivou a escrever romances. Foi dele que Mary Evans adquiriu o pseudônimo com que se tornou conhecida, rica e famosa como escritora. Essa atitude não adviria de um ato de submissão ao marido, pelo contrário, teria sido uma forma de homenagear o grande amor de sua vida, que a incentivou a escrever.
Dorothea, a jovem heroína de Middlemarch, é cheia de bondade. O desejo de aprender e partilhar a cultura então exclusiva dos homens, faz com que se case com um senhor trinta anos mais velho que ela, rabugento, doentio, egoísta, mas supostamente culto. A autora nos mostra, nessa fase da vida de Dorothea, os equívocos do casamento como ilusão ou negócio, não como uma troca, retratando, assim, a sujeição degradante em que as mulheres viviam. Quando o marido morre, deixa-a muito rica. Deixa também um testamento que ordena a perda de seus bens, caso ela se case com um primo do marido, que lhe nutria um amor que não conseguia esconder.
Viúva, decide acordar da gaiola de luxo a que fora submetida, enfrenta a oposição da família, as opiniões da cidade e as convenções do mundo para realizar seu amor, mesmo tendo de perder a riqueza que não a fazia feliz. Há toques feministas no romance, embora as mulheres não sejam poupadas, quando a vida provinciana é exposta pelo que tem de mais fútil. Dividido em oito partes em suas quase novecentas páginas, Middlemarch tece outros eixos de vida na figura do médico Lydgate, que trouxe à cidade um método diferente de tratar os pacientes. Esse médico casa-se por amor, mas  sua vida é arruinada quando fica endividado para tentar ostentar uma vida burguesa fora de suas possibilidades. Vítima de um complô, perde tudo, mas mantém sua moral com a ajuda de Dorothea. Há também a vida de Garth e sua família, que vive uma vida de dificuldades, mas não abre mão de seus princípios morais.
Para dar credibilidade ao realismo de seu romance, George Eliot se muniu de dados meticulosos sobre o que acontecia no país por volta de 1830, ano da ação do romance. Enfoca o estado de certas áreas de atividade como a medicina, à qual faz críticas ferozes. Todo o mundo das profissões masculinas: uma sequência de figuras caricatas como um leiloeiro pedante, um espertalhão que vende cavalos, um juiz ardiloso, médicos retrógrados, um banqueiro que esconde as falcatruas do passado e a origem de sua grande fortuna sob o pretexto por obras de caridade e hipocrisia religiosa. É um mundo que parece brotar da falsidade e onde a gana por dinheiro silencia os princípios, cheio de teatralidade e astúcia, de palavras belas e vazias, 
Middlemarch, um estudo da vida provinciana é uma história que se lê sem pressa, de forma muito agradável. A tradução do poeta Leonardo Fróes é primorosa. É considerado pela crítica especializada um dos melhores romances do século XIX. A edição brasileira da Record encontra-se esgotada. Existe a edição portuguesa da Relógio d'Água por R$ 103,10 com praso de seis semanas para entrega. Você pode encontrar o romance editado pela Record em sebos virtuais em ótimo estado de conservação, por 40 reais. 

                                                                                              Paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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George Eliot. Middlemarch, um estudo da vida provinciana. Rio, Record, 1998, 884 pp. 

domingo, 3 de março de 2013

Don Segundo Sombra



Don Segundo Sombra, obra do escritor argentino Ricardo Güiraldes, trata da vida de um guri de nome Fabio, que sai da casa dos tios depois de ser abandonado pelo pai e conhece Don Segundo Sombra, pampeiro experiente que o ajuda e o ensina a trabalhar no campo, domando cavalos e trabalhando em todo o pampa argentino. Assim, Fabio vai criando uma identidade de “gaucho”, a figura solitária e campeira do pampa.
Don Segundo Sombra é um homem solitário, com muita experiência e sabedoria popular, além de exímio domador de cavalos. Com ele, o guri leva uma existência nômade, aprendendo a viver e a trabalhar no campo, guiado por esse gaúcho que se transforma em seu padrinho e mestre. Em cada povoado que passam, entre bailes, brigas de galo, organizando a boiada, mais as histórias que Don Segundo lhe conta, fazem dessa etapa a fase mais feliz da vida do piá.
Um certo dia, o jovem recebe uma carta que lhe revela, agora, ser um homem rico, pois fora reconhecido pelo pai, que lhe deixara toda sua fortuna. Esse acontecimento marca profundamente a vida de Fabio, que não gostaria de aceitar a mudança de vida. Incentivado por Don Segundo, assume suas terras, tornando-se estancieiro. Na estância, trava amizade com o filho do administrador, que lhe aponta os caminhos da cultura intelectual, infundindo-lhe o amor pelos livros e pela cultura.
Esta novela de Güiralde é a primeira obra de caráter universal da literatura gauchesca argentina. A obra transpõe as fronteiras do pampa para mostrar os valores do “gaucho”, que nós, gaúchos, herdamos a tradição. A literatura sul-rio-grandense possui bons romances que evidenciam a figura de nosso gaúcho pêlo duro, que identifica nossa identidade com o pampa. Contos gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto, o mais fiel e o mais popular dos regionalistas gaúchos, são obras-primas da literatura brasileira. Grande escritor, Lopes Neto revive a vida dos campos, o linguajar e os costumes gauchescos, as lendas regionais, sem se restringir ao mero pitoresco, mas vertendo em suas criaturas toda a força das paixões e caos humanos, dando a sua obra interesse permanente. O autor pelotense transpõe suas histórias na voz inconfundível do pampeiro Blau Nunes, índio velho e contador de causos na hora de folga dos galpões. Outros escritores de temática gauchesca imergiram a figura do gaúcho no panorama social e político do século XX, a partir de Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. Memórias do Coronel Falcão, de Aureliano de Figueiredo Pinto, é um romance de fronteira gaúcha escrito por um médico estancieiro, onde o mundo do campo, sua gente e suas transformações aparecem vistos de dentro para fora, numa época conturbada pelo borgismo. Cyro Martins nos coloca a figura do gaúcho a pé, o que perdeu sua pequena propriedade, o gado e o cavalo para os grandes pecuaristas com suas máquinas agrícolas, vindo a formar os bolsões de miséria das cidades grandes. Os livros Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova, compõem a chamada Trilogia do Gaúcho a pé.
Voltemos a Ricardo Güiraldes, para acrescentar que o escritor nasceu em Buenos Aires, em 1886, e morreu em Paris, em 1927. De origem aristocrática, cuja família tinha inúmeras propriedades rurais, com um ano de idade foi morar na Europa, retornando quatro anos depois à Argentina, vivendo sua infância e juventude nas estâncias de seu pai.

                                            paulinhopoa2003@yahoo.com.br
                                                                                       
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Ricardo Güiraldes. Dom Segundo Sombra. Porto Alegre, Ardotempo, 2011, 334 pp., R$ 40,00