sábado, 30 de julho de 2011

Os males do fumo




Dias desses, desci para esperar o táxi na portaria. Lá, estava uma vizinha conversando com o porteiro. Senhora educada, nos seus cinquenta e poucos anos, pelo modo de se expressar me fez pensar numa professora universitária. Moradora solitária, sempre que passo pela portaria a vejo conversar com o porteiro. Já houve queixa ao síndico, de suas conversas com o empregado. Mas, que fazer, ela não dá importância e se detém na portaria, a contar de sua vida. Dessa vez em que desci a esperar o táxi, ela contava ao porteiro que fumava por prazer. Disse a ele que nunca fumou no trabalho. Sempre depois, no "happy hour", acompanhada de um chopinho. O porteiro lhe perguntou se ela alguma vez pensara em parar e ela lhe disse não. Gostava de fumar. Durante o fumo, ela punha a vida em devaneio e o tempo passava com prazer. Como visse que eu observava a conversa, virou-se para mim e disse:
_ Sabe, vizinho, adoro um traguinho. Mas não abuso não. Agora que estou envelhecendo, é só um cálice de vinho tinto. Faz bem ao coração. Mas sabe como são as coisas, a bebida sempre puxa um cigarrinho. Impossível beber sem fumar. No que me diz respeito, comecei a fumar em torno dos dezesseis anos e nunca parei. É verdade que só ocasionalmente fumei mais de vinte cigarros por dia. O que fumei? De tudo. Do cigarro sem filtro ao mentolado. Cigarrilha e charuto também. Gostava muito do Mistura Fina. Com ele me iniciei no fumo. Hoje fumo dos mais fracos, por causa de uma tossezinha seca.
O senhor sabe, ela me disse, aproximando-se, o fumo, que se casa admiravelmente com o álcool (se o álcool é a rainha, o fumo é o rei), é um companheiro caloroso de todos os acontecimentos de minha vida. É o grande companheiro dos dias bons e maus. Acende-se um cigarro para festejar uma alegria ou para disfarçar um amargor. Quando se está só, ou acompanhado.
Continou: o fumo é um prazer de todos os sentidos – da visão (que belo espetáculo, sob o papel prateado, esses crigarros brancos arrumados como para uma parada), do olfato, do tato. Se me vendassem os olhos e me colocassem um cigarro aceso na boca, me recusaria a fumá-lo. Gosto de tocar o maço em meu bolso, de abri-lo, de apreciar entre dois dedos a consistência de um cigarro, de sentir o papel em meus lábios, o gosto do tabaco em minha língua, de ver brilhar a chama, de aproximá-la, finalmente de encher-me de calor.
O senhor sabe, um homem que eu conhecia desde a universidade, da alta burguesia porto-alegrense, de centrodireita, engenheiro, morreu de um câncer no pulmão. Ia vê-lo no hospital, no bairro Menino Deus. Já faz um tempinho. Tinha tubos por todos os lados e uma máscara de oxigênio que retirava de quando em quando, para aspirar, muito rápido, às escondidas, uma baforada de cigarro. Fumou até as últimas horas de sua vida, fiel ao prazer que o matava.
Meio incomodado, fui me aproximando da porta, para esperar no jardim. Ela continou comigo. Assim sendo, se o senhor me permite, para encerrar essas considerações sobre o álcool e o fumo, pais das profundas amizades bem como dos devaneios fecundos, dar um duplo conselho: não beba e não fume. É perigoso para a saúde.
Quando me dirigia em direção ao táxi que chegara, ela veio atrás de mim e arrematou:
_ Acrescento que o álcool e o fumo acompanham agradavelmente o ato de amor, também. Geralmente o álcool se situa antes e o fumo depois. Mas o senhor me desculpe a intimdade inadequada. Não vá esperar de mim confidências extraordinárias. Essas particularidades, a gente não conta a ninguém. Até a próxima.
Abri o portão e saí desconcertado. Vou morrer e não vou conseguir ouvir tudo não, pensei. Entrei no táxi e me fui.Saudade de um filme surrealista de Luis Buñuel.
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Por falar em Buñuel, recomendo-lhes seu livro de memórias:

Luis Buñuel. Meu último suspiro. Rio, Nova Fronteira, 1982

domingo, 24 de julho de 2011

O ídolo pelo avesso


Os jornais noticiaram neste sábado a morte de Amy Winehouse. Os reporteres e fãs diziam que já sabiam que o destino dela seria esse, mas não pensavam que ia ser tão cedo. Suas atitudes e os escândalos noticiados pela mídia criaram a esteira para que afirmassem isso. A cantora necessitava do álcool e das drogas para sobreviver. Sabemos de personalidades que carregavam o enigma que não conseguimos depreender com isenção de partido: para eles, viver dói e dói muito. É possível não ter amor à vida e seu futuro de felicidade a ser conquistada. Os alcoolistas são assim. Os drogaditos também. Não é preciso ser famoso para sentir a mesma dor dos famosos que amamos, morrendo em desastre, na mais completa solidão. Quem consegue permanecer vivo, vive sempre o dia de hoje, pois a vida é uma batalha. Deprimida constantemente, Amy era mais famosa por seus pileques e atitudes agressivas do que por sua música. Esqueceu letras e caiu em shows no Brasil.
Quando tropeçou e caiu,a platéia aplaudiu, confortando-a do constrangimento. Muitos não gostaram de sua performance frígida. Foi gravada e fotografada no bar do hotel em que estava hospedada, no Rio, bebendo do conteúdo mortal que a alimentava viva.
A imprensa toda está explorando o 27 como um número cabalisto. Amy Winehouse, Janis Joplin, Jimy Hendrix, Kurt Cobain e Jimi Morrison morreram jovens, todos aos 27 anos, sozinhos e de uma forma trágica. Lutaram para se expressar e morreram reféns do vício. Todos deixaram sua marca na estrada da música. Janis Joplin seduzia pelo vozeirão e movimentos felinos. Cantava o blues como ninguém. Disse que trocaria todos os dias de amanhã por um dia do passado. Símbolo da contracultura, eternizou sua imagem cultuada até hoje. Jimi foi outro símbolo de uma mesma geração. Deus da guitarra, criava e experimentava sons antes deles serem misturados pela tecnologia dos dias atuais. Num show em Monterey, 1967, entrou em transe, queimou e destruiu uma guitarra sob o delírio da platéia. Morrison, do The Doors, culto e sexy, andou sempre em busca de novas sensações. Várias vezes saiu algemado do palco por bebedeira e atentado ao pudor. Cantou bêbado em vários shows, caindo e rolando no palco. Kurt Cobain, do Nirvana, cometeu suicídio em 1994. Viveu um turbilhão psicológico com a atriz Courtney Cox. Deprimido, mergulhou na heroína.
O escritor Rodrigo de Souza Leão escreveu que na vida às vezes a gente tem de escolher entre esmurrar a ponta de uma faca ou se deixar queimar no fogo. Gente famosa como Amy Winehouse e gente anônima que sofre da pulsão de morte carregam consigo o enigma do desgosto pela vida. Viver pode ser uma dor muito profunda que nós, que não a sentimos ou não a sentimos com essa intensidade, talvez não a consigamos compreender. Nem aceitar.

domingo, 17 de julho de 2011

Universo particular



A vida é bela se você colocar o mundo ao redor de seu umbigo. Você vai criar seu universo particular. Vai selecionar as coisas que lhe são necessárias para dizer que se considera feliz e o mundo é maravilhoso. Seu universo é uma bolha. Nela você coleciona os amigos que lhe interessam, faz seu fisiculturismo, trata de sua saúde com uma alimentação competente, bebe seus 10 copos de água por dia, trata bem de seu sono, seleciona criteriosamente as coisas a seu redor. E assim vai. E você é feliz, pois a vida é bela. Em seu universo particular não há lugar para a pobreza, pois ela é feia e você não se considera responsável por ela. Atitudes maldosas e interesseiras, será que você as tem? Fazem parte de seu universo particular? Não, você se considera justo e a moral é uma meta. É importante ser correto, tratar as pessoas com justiça e igualdade, mas isso não quer dizer que determinados iguais possam fazer parte de sua bio-bolha E assim vai e você é feliz e a vida é bela. Se você se olhar por dentro, também, e verificar que uma vontade muito grande de viver é mais importante que o viver alheio, porque você se considera um vencedor de si mesmo, a vida também é bela.
Agora, você tira o olho de seu umbigo e concorda que o cinismo combina com a castidade. Ou a alma humana não é a mesma em toda parte, talvez a vida não lhe seja bela. Se o bem tem importância menor que a do mal, o desconforto do outro desloca sua comodidade... A vida não é bela. Não pode ser bela a vida que é cumprida por obrigação e sem prazer. Quando você transa sem camisinha com o namorado que conheceu na semana passada e nem se lembrou disso, alguma coisa está fora da ordem. As coisas boas e ruins da vida ao mesmo tempo não constituem beleza. O amor do filho pelos pais não é o mesmo amor dos pais pelo filho. O amor filial da infância e juventude esmaece, fica pálido. Torna-se afeto por obrigação, quando não se precisa mais deles. Quando você comete pequenos deslizes e os justifica porque fazem parte da cultura, como atravessar a faixa de segurança no sinal vermelho, segurando uma criança pela mão: não vinha carro e você foi cuidadosa. Dar uma estacionada relâmpago em vaga de deficiente físico de um banco eletrônico não faz mal nenhum, era coisa rápida, se aparecesse o deficiente físico você daria o lugar a ele, sem problema. No trânsito congestionado, dar passagem a um carro que está saindo da garagem, nem pensar, você está com pressa, ainda mais se você for mulher. Galanteria é coisa de homem.
A vida é bela. A vida não é bela. O egoísmo, muitas vezes, faz-nos acreditar que estamos bem, contentes em nossa zona de conforto, libertos da ansiedade e do medo de morrer (há pessoas que têm medo de viver). Então acreditamos ser felizes. E somos, porque não. Estamos no tempo. E o tempo não para. E ninguém é cem por cento feliz para sempre. A vida não teria graça sem o sofrimento para nos recompor a felicidade. Viver é complicado. É triste. É belo. É paradoxo.

domingo, 10 de julho de 2011

O amor cortês

Você conhece, por acaso, alguém que seja espirituoso, educado, sensível e galanteador? Desses ou dessas que conquistam pela inteligência aliada à inspiração poética? Não precisa ser um poeta, mas demonstrar ações e gestos em de forma poética. Alguém que conquiste sem a premência da cama? Alguém que te surpreenda em coisas antigas, mas bacanas? Provavelmente esse alguém seja adepto do amor cortês.
O amor cortês não é objetivo. Tampouco é platônico, como referem alguns. Requer menos interpretação e mais sentimento. Amor cortês é namorar. É encantar. É seduzir sem outra contra-indicação que não seja a sedução. Quem não seduz não pratica o amor cortês. Atenção, porém, sedução não é sinônimo de amor cortês. O amor Cortês seduz com requinte. Idealiza. Ou melhor, busca por em prática a idealização de um tipo de pessoa amada, que partilhará de seu perfil ideal de amante. Jamais o praticante de um amor cortês será mal-educado. Muito pelo contrário. Uma pessoa que busca conquistar a outra, enviando-lhe flores, será adepta do amor cortês se essas flores chegarem ao ser amado de uma forma diferente, ainda que simples. Lidar com a simplicidade de forma esplendorosa, essa é uma característica do amor cortês. Não precisa ser uma dúzia de rosas, pode ser uma única dália. Mas a forma e a situação em que essa flor aparecer, será de um requinte e refinamento muito peculiar.
Librianos, por exemplo, costumam curtir o amor cortês. Toda pessoa de libra pensa muito no amor, mas não um amor tórrido e cheio de paixão como pensa um taurino ou escorpiano. Amor para libra é antes de tudo algo carregado de ideias e ideais românticos, aquilo que faz um relacionamento perfeito. Refinamento, requinte e classe são qualidades importantíssimas para Libra. Mas não se iluda, há librianos e librianos. De turrões o mundo está cheio. Geminianos costumam aparecer nesse grupo, ainda que a discrição não lhes seja um ponto forte. Escorpianos também, apesar das desconfianças. Arianos, taurinos e leoninos não curtem o amor cortês. Para os desses signos, o negócio é pão-pão queijo-queijo.
O amor cortês teve sua origem na poesia trovadoresca da Idade Média e na poesia provençal. Nesse tipo de expressão poética, o amor cortês tinha traços de submissão à mulher amada. Ou a amada era sempre distante. O estado amoroso, por transposição ao amor dos sentimentos e imaginário religioso, era uma espécie de estado de graça que enobrecia a quem o praticava. Tratava-se também, pasmem, muitas vezes de um amor adúltero! O galanteador cantava seu amor a uma mulher casada.
Hoje, o amor cortês pode ser considerado uma forma inadequada de expressar o interesse ao objeto de desejo. A característica de vida solitária de nossa sociedade denuncia carências que se resumem a um afeto acompanhado de uma bela transa sexual. Amor cortês com sexo quase concomitante, até pode ser! Mas esse amor caracterizado por uma conquista poética e falsamente platônica está em desuso. Mas é bonito!
Se você quiser curtir o amor cortês concebido na sua origem medieval, loque o filme Tristão e Isolda. Talvez goste.

domingo, 3 de julho de 2011

Os palhaços

A palavra palhaço tem duas conotações básicas. Uma, mais usada frequentemente, tem aparecido com frequência nas notícias da televisão, é a depreciativa. A figura do palhaço é associada a um tipo de trabalhador que é feito de trouxa, desqualificado, bobalhão, ignorante. Com esse palhaço a classe trabalhadora não quer se identificar. Recentemente, assisti a uma matéria jornalística onde professores e demais servidores públicos protestavam contra medidas do governo gaúcho, visando ao aumento na percentagem descontada nos salários para prover o fundo de previdência do estado. Muitos desses manifestantes protestavam com a cara pintada e o tradicional nariz de palhaço. O protesto ameaçava com greves que prejudicariam alunos e a população que usa o serviço da rede pública.
Outra manifestação – menos recente – em que esse palhaço rejeitado apareceu, foi na dos médicos residentes do Hospital de Clínicas, protestando por aumento no valor da bolsa que recebiam para que se especializassem em um dos ramos da medicina. Lá estavam os médicos iniciantes com o narizinho de palhaço fazendo barulho do lado de fora do hospital, enquanto dentro estavam pessoas doentes sem atendimento médico.
Bem, o que essas duas entidades exemplificadas querem dizer a seus “patrões” é que os estão fazendo de bobos e suas atividades não são bobas, não são ridículas como a do palhaço, um profissional que ganha muito pouco, vive quase na miséria. São de outra natureza mais nobre e devem ser melhor qualificadas com salários mais justos. Eu discordo do uso da figura do palhaço,um trabalhador do riso, como depreciativa. O palhaço é uma profissão nobre, tem técnica, tem esforço, dedicação. Mas não é essa vereda que quero percorrer aqui. Quero enaltecer a figura de outro palhaço, positivo, criativo, emocionante. Que tem relação com o ridículo, mas a cobertura desse ridículo é o sublime. O palhaço é um personagem atrapalhado que nos mostra as fraquezas com as quais nos identificamos, mas temos vergonha de assumir. E agradecemos ao palhaço por fazer isso por nós. Quando o palhaço nos faz rir de suas imperfeições nos faz pensar que também somos assim, esse palhaço atrapalhado e lírico, que mostra suas fraquezas com uma perspectiva positiva. O palhaço, o clown, é visto no cinema com Woody Allen, que nos faz rir das neuroses que são compatíveis com a realidade de muitas pessoas. Damos risadas delas quando as reconhecemos e isso nos dá algo de liberador, de grandeza. Nos dá prazer sem negar a realidade. Kassia Kiss está apresentando na novela das sete um clown interessantíssimo: por trás da figura patética da personagem, meio sonsa, meio lenta em demasia, encontra-se o protótipo de um ser humano com conteúdo ético interessante.
Assim sendo, leitor, o palhaço é um bobo com quem muitos não querem se identificar, recusam o estigma de ridicularizados, de bobos levados ao ridículos. Também é um ser poético, atrapalhado e trapalhão, que busca através da arte nos fazer rir das coisas menos nobres da vida com nobreza. Faz-nos o favor de deixar que riamos de seus desajustes, livrando a nossa cara. Como sugestão de leitura, mais uma vez Cecília Meireles, que em muitas de suas crônicas enalteceu a importância do circo e do palhaço em sua infância. Recomendo "Escolha seu sonho", especialmente a crônica "Programa de circo".
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Cecília Meireles. Escolha seu sonho. RJ, Record, 2005, 26ª ed.