domingo, 25 de maio de 2014

A doce canção de Caetana

Depois de 20 anos de ausência, Caetana, atriz de teatro mambembe, retorna a Trindade para cobrar uma dívida de Polidoro, fazendeiro e grande apaixonado pela atriz. Polidoro procura recriar na suíte do hotel da cidade o clima propício para que o passado seja recordado e, sabe-se lá, reparado. Ordena que coloquem no quarto a penteadeira onde ele a admirava escovando os cabelos longos e negros nas noites passadas de idílio amoroso.
Polidoro sonhava encontrar Caetana escondida atrás do biombo, fingindo constrangimento, talvez por medo de a idade houvesse dissolvido as ilusões alimentadas pelas intempéries da vida. Imaginava Caetana voltando, conservando os mesmos gestos grandiloquentes do palco e do picadeiro, em contraste com as falas banais de seu texto. Caetana, durante todo esse tempo, não admitia a tragédia e o fracasso em sua vida.
Polidoro exigiu que o trem desviasse a rota, passando por Trindade para deixar Caetana. Repassou as façanhas do dia: a ida à estação, o trem chegando, a confusão de todos querendo abraçar a passageira que descera do trem e que todos confundiram com Caetana, que não estava no trem, pois havia chegado pela estrada com sua troupe.
Caetana veio cobrar de Polidoro a produção de uma ópera que ela admirava na voz de Maria Callas. O cinema da cidade é reformado às pressas para a montagem. Ela quer provar a todos que ainda tem talento para representar tão ou melhor que Callas, num esforço para provar a todos que fora a grande atriz injustiçada. Esse esforço, porém, secara-lhe a garganta. O resultado disso você vai acompanhar na prosa deliciosa e sensível de Nélida Piñon em A doce canção de Caetana. A cidade de Trindade apresenta outros personagens interessantes que atuam em torno da estrela da história.
                                                           paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Nélida Piñon. A doce canção de Caetana. 2ª ed, Rio, Record, 2012, 398 pp, R$ 55,00

domingo, 18 de maio de 2014

Manoel de Barros, o poeta que queria ser lido pelas pedras

Manoel de Barros, poeta mato-grossense que revela a natureza e o homem pantaneiros através do verso, acredita que é necessário desver o mundo. Para isso, é preciso gostar das palavras quando elas perturbam o sentido  normal das ideias. Porque só os absurdos enriquecem a poesia. Para o menino criado no meio da mata, o conhecimento não era de estudar em livros. Era de pegar, de apalpar, de ouvir e de outros sentidos. As palavras se juntavam a ele para comunicar não através da sintaxe, mas por amor.  Ele queria o arpejo, o canto, o gorjeio das palavras. Hoje, adulto, confessa que também das percepções primárias nascem os arpejos e canções e gorjeios. A infância da palavra já vem com o primitivismo das origens, do absurdo divino das imagens: o menino que regava o rio para que os peixes pudessem sobreviver; passar a mão na bunda do vento; Bernardo armou sua barraca na beira de um sapo. A palavra não precisa significar, é só entoar.   O poeta não pode explicar as imagens, porque explicar afasta as falas da imaginação. O que Manoel de Barros quer fazer é brinquedo com as palavras. Fazer coisas inúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora. Poesia é coisa-nada. Se o nada desaparecer, a poesia acaba.

A Editora Leya acaba de lançar Manoel de Barros - poesia completa, com todos os livros publicados pelo autor, incluindo os livros de poesia infantil, mais um poema inédito de 2013.

O poeta que enaltece a 'vagabundagem profissional' e o estar à toa tem para si um sentido especial de ócio. Estar consigo, com sua imaginação, suas leituras e prazeres solitariamente, é o seu ócio. Para ele, a poesia esteve presente desde muito cedo no olhar do menino para as pessoas e coisas do seu entorno.
Ele já era um senhor de mais de 70 anos quando Millôr Fernandes descobriu seus poemas e escreveu uma crítica fazendo estardalhaço sobre certo poeta 'de verdade' que o Brasil precisava conhecer. 
  
Manoel, que nasceu em Cuiabá e foi menino para o Pantanal, viveu quase 40 anos no Rio de Janeiro. De lá, migrou uma vez mais para o Pantanal, para suceder ao pai na administração da fazenda de gado da família. Dez anos à frente da fazenda e o poeta quis mudar de novo. Foi com a mulher e os três filhos para Campo Grande, sua atual morada e onde escreveu quase todos os seus livros.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Melho do que falar do processo criativo de Manoel de Barros, é ler seus poemas, dos quais selecionei alguns:

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

 Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.


 INSTANTE ANUNCIADO

 Um chapéu velho!
Eu não via seu rosto, que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei que não chorava
E nem tinha desejo de falar.
Porque sabia que alguma coisa vinha chegando
De manso, alguma coisa vinha chegando...
Eu não via seu rosto,
Seu rosto sombreado que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei como ele amou aquele instante
Mas sei com que prazer ele esperou
Aquela que viria com os lábios úmidos para ele
A que havia de vir passar as mãos
Pelos seus joelhos feridos.


A ESPERA

Vejo sempre um homem ao lado das casas,
Olhando-as de frente como se elas fossem pessoas íntimas.
Vejo-o passando pelas casas comovido, afagando as mais pobres,
Satisfeito com a paz que lhe transmitem.
Vejo um homem caminhando pequeno na rua sem nome.
Vejo-o com o seu ocaso e o seu casaco de iodo às costas.
Vejo a erva depois crescer na pedra, e vejo, no coração,
O amor germinar como um rápido clarão na tempestade.
Esse homem não sabe como agradecer a penumbra que o esconde.
Vejo-o tocando com os seus dedos uns objetos esquecidos na tarde...
Vejo-o depois andar sobre a cidade errante como os cães vagabundos
E adormecer nas pedras junto ao mar.


MUNDO PEQUENO

I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
      maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
      com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
      besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
                                                           Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os
      ocasos.   

DESEJAR SER

2.

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava deter
uma perna mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho
farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc
ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar
para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc
toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do eu.



RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA

I

Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam as árvores por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol.

ASCENSÃO

 Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, como t, em latim.)
Como não ascender até a ausência da voz -
Lá onde a gente pode ver o próprio feito do verbo -
ainda sem movimento.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A Escutar
os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!


POEMAS RUPESTRES

5.

Com aquela sua maneira de sol entrar em casa
E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais -
como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio.
Depois o menino achou na beira do rio uma pedra
canora.
Ele gostava de atrelar palavras de rebanhos
diferentes
Só para causar distúrbios no idioma.
Pedra canora causa!
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.

                                               paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Manoel de Barros. Poesia completa. SP, Leya, 2013, 480 pp., R$ 54,90

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      

domingo, 11 de maio de 2014

Viva o povo brasileiro

O narrador de Viva o povo  brasileiro nos explica que O comportamento das almas inopinadamente desencarnadas, sobretudo quando muito jovens, é objeto de grande controvérsia e mesmo de versões diametralmente contraditórias, resultando que, em todo o assunto, não há um só ponto pacífico. Em Amoreiras (praia da Ilha de Itaparica), por exemplo, afirma-se que a conjunção especial dos pontos cardeais, dos equinócios, das linhas magnéticas, dos meridianos mentais, das alfridárias mais potentes,  dos polos esotéricos, das correntes alquímico-filosofais, das trações da lua e dos astros fixos e errantes e de mais centenas de forças arcanas - tudo isso faz com que, por lá, as almas dos mortos se recusem a sair, continuando a trafegar livremente entre os vivos, interferindo na vida de todo dia e às vezes fazendo um sem-número de exigências. Dizia-se que era por causa dos tupinambás que lá moravam, que com mil artes e manhas de índios, amarravam as almas dos mortos até que eles pegassem os obséquios que morrem devendo, ou resolvessem qualquer pendência de que foram partes. Mas depois dos tupinambás vieram os portugueses, espanhóis, holandeses, até franceses, e os defuntos , mesmo não havendo mais índios para os amarrar, continuaram por lá, desafiando as ordens dos padres e feiticeiros mais respeitados para que se retirassem. Em seguida, chegaram os pretos de várias nações da África e, não importa de onde viessem e que, deuses trouxessem consigo, nenhum deles jamais pôde livrar-se de seus mortos, tanto assim que foram os que melhor aprenderam a conviver, com essa circunstância, não havendo, por exemplo, órfãos e viúvos entre eles. Os muitos deles que não conseguiram suportar viver na companhia de uma memória infinita e na presença de tudo o que já existiu mudaram-se para lugares bem longe de Amoreiras e jamais comem qualquer coisa vinda de lá.

A trama de Viva o povo brasileiro, grosso modo, é mais ou menos assim: um grande barão do Império vivia na Bahia, onde era senhor de todos os peixes que lá se pescava e possuía muita riqueza e muitos domínios vastos e grande número de escravos.  Isto se deu, porque esse barão foi considerado herói, na guerra da Independência, por isso mesmo nomeado barão, e  recompensado com  terras e presentes do rei  Imperador Dom Pedro.

Mas, esse barão era muito perverso. O heroísmo dele na guerra foi uma mentira. Sem ninguém ver, matou um cativo e com o sangue desse cativo se lambuzou e fez muitos curativos para dizer que tinha sido ferido na batalha. Apresentou-se como ferido, se escondeu uns tempos e depois apareceu de novo, ficando conhecido como o grande herói de guerra. Numa noite,  véspera de Santo Antônio, mandou buscar uma cativa de grande beleza e a deflorou, deu-lhe depois  uma surra e a expulsou dali. O barão teve a maldade castigada. Logo depois do abuso com a escrava, apareceu uma grande Irmandade numa casa de farinha que havia no sítio do barão, chefiada por um negro feiticeiro chamado Dandão e por um negro muito alto chamado Bodeão. Esses dois negros tinham uma canastra contendo muitos segredos do destino do povo, muitas defesas e muitas receitas de orações e feitiços. E, por meio dessas orações e feitiços, bem como a ajuda de outros como eles, conseguiram dar uma certa bebida ao barão, o qual foi estuporando aos poucos, até morrer uma das piores mortes que já se viu na Bahia.
Enquanto isso, a cativa, que ficara prenha do barão,  se tornou grande pescadora.  A menina nasceu, foi protegida e educada em boas escolas. Ficou moça bonita e inteligente. Certa vez ela e a mãe foram atacadas por um bando de homens que queriam estuprá-la. A mãe a defendeu e foi morta a pauladas. Esse acontecimento modificou a vida da moça para sempre.  Querendo justiça, entrou para a Irmandade, tornando-se a chefe do grupo, perdendo-se no mundo combatendo a injustiça na companhia de uma milícia, a Milícia do Povo, para mostrar a todos a tirania que sofria o povo pobre e negro por parte dos poderosos. Sabe-se que teve somente um grande amor por um alto oficial do Exército, herói da Guerra do Paraguai,  que nunca quis combater contra o povo. Ele propôs que se juntassem como marido e mulher, mas ela tinha um ideal maior, lutar pela igualdade e a injustiça.
Veio a República e o governo continuava a não se preocupar com o povo, os coronéis mandando e desmandando em tudo. Então, Maria da Fé, essa mulher guerreira, partiu para o sertão com seus milicianos, porque sabia que lá havia muita gente revoltada disposta a combater contra a tirania.  

Hoje não se sabe por onde anda Maria da Fé agora, mas se sabe que ela continua acreditando que um dia vai vencer, nem que não seja ela em pessoa, mas quem herde as ideias e a valentia dela, que serão muitos. Como nasceu na época da Independência, já deve estar velha e talvez nem velha seja, pois faz aniversário de quatro em quatro anos, tendo nascido no dia 29 de fevereiro.

A história abrange o período histórico de 1637 até 1972, mas o miolo da trama está centrado entre a Independência do Brasil e a proclamação da República. O romance de João Ubaldo Ribeiro é sobre os muitos espíritos encarnados e desencarnados por esse Brasil  onde muitos trabalhavam e poucos ganhavam. O povo que produzia,  construía,  vivia e criava, mas não tinha voz nem respeito,onde os poderosos encaravam sua terra apenas como algo a ser pilhado e aproveitado sem nada darem em troca, piratas de seu próprio país. Eram (e são) carpinteiros, marceneiros ferreiros, tanoeiros, sapateiros, alfaiates, pedreiros, lavradores, jardineiros, alambiqueiros, padeiros, barbeiros,pintores, armeiros, açougueiros, carroceiros, cuteleiros, vassoureiros, quitandeiros, vaqueiros, fateiros, muleiros, carregadores, caixeiros, sineiros, ourives, tecelões, paneleiros, mineiros, caçadores, boticários, quituteiros, maquinistas, tiradentes, curandeiros, cocheiros, mariscadores, peixeiros, lenhadores, magarefes, faxineiros, aguadeiros, taverneiros, amoladores, foguistas, mascates, alfarrabistas, oleiros, impressores, escreventes, acendedores, gravadores, coveiros, almocreves, aseiros, arreiros, tosadores,capadores, leiteiros, estalajadeiros,moleiros, músicos,saltimbancos, palhaços, cantadores, violeiros, repentistas, músicos,bailarinos, escultores, atores, escritores, entalhadores, douradores, mágicos, contadores de histórias, motoristas, cobradores, zeladores, hidráulicos, eletricistas,prostitutos, seguranças, moradores de rua, babalorixás, macumbeiros... Viva o povo brasileiro!
                                                    paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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João Ubaldo Ribeiro. Viva o povo brasileiro. Rio, Objetiva, 2008, 640 pp, R$ 69,90

domingo, 4 de maio de 2014

Todos os homens são mentirosos

O que é a verdade? Essa é a questão proposta pelo escritor argentino Alberto Manguel (1948) em seu romance Todos os homens são mentirosos. Quando Jean Luc Terradillos, um periodista francês, se interessa em investigar a queda e morte de  um genial escritor argentino, debate-se com a seguinte máxima: "o que é a verdade"? Há sempre coisas ocultas sob a verdade de um fato. Por isso, todos os homens são mentirosos, na medida em que transformam a visão particular de um fato como verdadeira.
Jean-Luc Terradillos foi encarregado de pesquisar e entrevistar a vida de Alejandro Bevilacqua, asilado político argentino refugiado em Madri. Uma novela supostamente de autoria de Bevilacqua, "Elogio da Mentira", ganha notoriedade nos países de língua espanhola e o autor acaba forçado a falar do processo de sua obra publicamente. Entretanto, numa dessas reuniões sociais, Bevilacqua cai da sacada e acaba morrendo. Paralelamente, uma investigação policial busca desvendar a origem de sua morte. Terradillos, ao relembrar a vida de Bevilacqua,  lembra de um homem esquálido , grisalho, fumando cigarro atrás de cigarro, cruzando e descruzando as pernas para logo por-se de pé e dar largas passadas pelo apartamento. Ao relembrar sua convivência com Alejandro, Terradillo tem a missão de contar, e por que não?, recriar a história alheia.

Terradillo confia mais na memória do que na imaginação e usa as confidências de Bevilacqua em sua personagem de ficção, que é o próprio Bevilacqua. As recordações de Belivacqua careciam de paixão, de colorido. Por isso, começou a agregar a sua história um pouco de fantasia, de humor. À precisão do escritor argentino, acrescentava uma glosa irônica, um comentário. Bevilacqua parecia estar inventando um passado a si mesmo, como para convencer Teradillo de sua existência. Terradillo nos diz que quando Bevilacqua dizia não ser escritor, tinha razão. Carecia desse impulso de invenção que a escrita de ficção exige,  essa falta de respeito perante o que é e a ansiedade ante o que poderia ser. Não imaginava, via e documentava,  que não é a mesma coisa.
Assim, a figura de Bevilacqua, quase inexistente, transita de hipóteses, conforme sua figura concorde com determinados dados e prejuízos. Vai mudando de aspecto como uma dessas estátuas de jardim que se transformam imperceptivelmente ao longo do dia, conforme muda a luz. Isso, como verdade, entretanto, é inaceitável.  Nem todos  os diversos Bevilacquas são os que o periodista persegue. Nem todas as facetas de uma realidade lhe interessam. Só uma, se é sincero, ou quem sabe nenhuma. Por isso, quem sabe, escreve. Para dá-la a conhecer desde um ponto de vista particular, privado. Agora pensa que foi o desejo o que fez que ele fosse periodista. Ver seu nome no rodapé de uma coluna impressa. Declarar-se responsável. Dizer o que sente, o que opina. Dar sua visão do mundo lhe regozija secretamente.

Alberto Manguel (1948) é argentino de Buenos Aires e mora no Canadá.

                                            paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Alberto Manguel. Todos os homens são mentirosos. SP, Cia. das Letras, 2010, 184 pp. R$ 39,00