domingo, 28 de dezembro de 2014

Flores azuis

Um homem separado vive em um apartamento alugado, onde recebe nos finais se semana a filha pequena.  Esse homem é daqueles sujeitos chatos, que acha tudo errado com ele, é indeciso, inseguro e, por consequência disso, deprimido. A ex-mulher continua a intrometer-se em sua vida. A filha parece não gostar dele, quase não conversam e ele não busca uma aproximação afetiva maior com a menina. De repente, esse homem começa a receber cartas escritas a caneta tinteiro, dentro de um envelope azul, cuja única informação da remetente (trata-se de uma mulher) é a letra k.  Nos dias de  hoje, em que o email e as redes sociais e os sms dominam as relações sociais, alguém ainda escreve cartas de amor a caneta tinteiro. Cada dia uma carta. Esse homem decide violar as cartas e passa a acompanhar a escrita dessa mulher, relatando uma separação por motivos que se confundem, às vezes, com os do homem em relação a seu relacionamento desfeito. As cartas são enviadas diariamente, por um período definido pela autora. No final, ela propõe a esse amante, que não sabemos aparentemente quem seja, embora possa ser o antigo morador, perdoá-lo e aceitá-lo de volta caso ele assim o quisesse.

A partir daí, ele busca obsessivamente encontrar esse homem para entregar-lhe as cartas, com a intenção, quem sabe, de ajudar a recompor a relação partida. Depois de uma série de tentativas, onde se vê obrigado a contatar a dona do apartamento, consegue localizar o antigo locatário, que desconhece quem possa ser essa mulher.

Carola Saavedra intercala as cartas com a crônica de vida desse homem solitário e mal amado e incompreendido de si mesmo. Algumas situações soam pouco verossímeis, como alguém escrever cartas a caneta tinteiro em pleno século XXI, assim como a mulher forjar o funcionário do correio a postar as cartas sem mencionar o remetente. Mas isso não pesa dentro da narrativa e nem  na intenção da romancista, de relacionar o drama de uma mulher abandonada que escreve cartas buscando a reconciliação e de um homem abandonado que lê essas cartas como se fossem suas e quer encontrar um amor para acabar com sua solidão.

O livro encontra-se esgotado, mas há livrarias que vendem o exemplar novo a preço médio de 32 reais.
    
                              paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Carola Saavedra. Flores azuis. SP, Cia. das Letras, 2008, 166 pp

domingo, 21 de dezembro de 2014

A máquina de fazer espanhóis

valter hugo mãe disse em um programa de televisão que escolheu o nome mãe como uma coisa literária de completude. Sempre esteve convencido de que as mulheres, através da maternidade, experimentam o extremo da humanidade: não há nada que um ser humano possa fazer de mais milagroso do que a multiplicação, de desdobrar seu corpo em dois. os homens são a parte fraca da humanidade, pois há uma lacuna, um espaço vazio no homem, pois temos uma dimensão afetiva que não fica aproveitada, a menos que tenhamos filhos. a vida é uma coisa terrível, por isso se precisa de epifanias de felicidade que é uma coisa que se perde à medida que se conquista. a felicidade é podermos ser o que somos.

a máquina de fazer espanhóis é a renúncia da felicidade de sonhar, pela consciência da perda. o título refere-se a uma frustração portuguesa contínua, que durou 800 anos de soberania e fez com que os portugueses pensem de vez em quando: se fôssemos espanhóis teríamos uma dignidade de melhor qualidade. a máquina de fazer espanhóis é Portugal. vejamos um trecho emblemático:

antônio jorge da silva está diante do corpo da mulher morta que não lhe diria mais nada, por mais insistente que fosse o seu desespero, sua necessidade de respirar através dos seus olhos, sua necessidade vital de respirar através de seu sorriso. ele e sua mulher morta que se demitia de continuar a justificar-lhe a vida e que, abraçando-lhe como podia, entregava-lhe tudo de uma só vez. e ele, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do medo e recomeçava a gritar.
com a morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante. caí sobre a cama e julguei que fui caindo por horas, rostos e mais rostos colocando-se diante de mim, e eu por ali abaixo, ainda, sem saber de nada. quando, por fim, me levantei, estava a anos-luz do homem que reconheceria, e aprender a sobreviver sos dias foi como aceitar morrer devagar, violentamente devagar, à reveia de tudo quanto me pareceria menos cruel. e a natureza, se do meu coração não se esvaziou o amor pela laura, estaria numa aniquilação imediata para mim também, poupando-me à miséria de ver o sol que arde sem respeito por qualquer tragédia.

um problema com o ser-velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento,a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas a alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança que se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige. e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distração cada vez maior, na perda de reflexo e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos estupidez. fazemos por descoordenação entre o que está certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certou ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós.

enquanto alguns velhos queriam acreditar que a saúde não lhes faltaria e que poderiam concretizar muitos projetos, antônio jorge da silva não concebia o que era chegar àquela idade e ter projetos. o seu projeto era esquecer tudo, era protestar contra a morte de laura convencendo-se de que, depois da morte de alguém que nos é essencial, ao menos a memória do amor deveria ser erradicada também.

a máquina de fazer espanhóis, assim como outros livros do autor é escrito todo ele em minúscula, como forma de colocar tudo no mesmo pé de igualdade. Ele abandonou esse recurso nos livros mais recentes.

               paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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valter hugo mãe. a máquina de fazer espanhóis. sp, cosac naify, 2013, 256 pp., R$ 39,00

domingo, 14 de dezembro de 2014

Hanói

David é filho de pai brasileiro da região de Governador Valadares (emigrado ilegalmente nos EUA) com uma mexicana. Aos 38 anos é diagnosticado de câncer no cérebro, tendo poucos meses de vida. Ao sair do consultório,  pensa no sentido da vida diante dos sintomas do câncer que o levará à morte daqui a pouco. Chega em casa em põe um disco de sua refinada coleção de jazz. Enquanto ouve a música põe-se a observar a coisas a seu redor.  Não tinha pensado em deixar o apartamento, mas em algum momento começou a parecer que seria a ordem natural das coisas. Livrar-se de tudo que havia ali dentro, esvaziá-lo como se esvaziam os bolsos de uma calça, e depois se livrar dele também, da vizinhança, das esquinas conhecidas. Começou, assim, a doar as coisas que tinha à vizinhança.

Quando David vai a uma mercearia asiática no bairro, puxa conversa com Alex,  jovem descendente de vietnamitas, caixa desse estabelecimento. Depois vai uma segunda vez, agora com a necessidade de aproximar-se dela. Pensa David: será que todas as pessoas que conhecemos têm alguma função na nossa  vida, algum papel a desempenhar? Não precisa ser algo grandioso. Podemos topar com alguém na esquina apenas para que esse alguém nos pergunte a direção da rua tal, qual a melhor opção para se fazer uma receita, será que não precisa de um eletrodoméstico que tenho em casa e quero me desfazer?

Alex é mãe solteira. Vive com dificuldade, como quase todo imigrante nos Estados Unidos. Os dois tornam-se íntimos. Quando Alex lhe diz que nunca conhecera o Vietnã, David começa a alimentar a ideia entre eles, de conhecerem Hanói. Também seria uma forma de autoanálise,  de confrontar sua própria identidade através da metáfora do deslocamento.

Até então, só conhecia Adriana Lisboa, através das traduções competentes de duas novelas de Stefan Zweig, Três novelas femininas, e de A estrada, de Cormac McCarthy. Hanói apresenta uma prosa elegante contada com delicadeza.
             
  paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Adriana Lisboa. Hanói. Rio, Objetiva, 2013, 236 pp, R$ 39,90

domingo, 7 de dezembro de 2014

O caminho de Ida

Ida era uma intelectual norte-americana engajada numa guerra sem cartel contra os defensores do desconstrucionismo de Derrida, atacando-os pela esquerda, na grande tradição dos historiadores marxistas. Não tinha um público amplo. Trabalhava para a elite e contra ela, odiava as pessoas que formavam seu círculo profissional. Também gostava de segredo, dos encontros clandestinos num hotel de beira de estrada. Um dia, é encontrada morta em um carro batido, com a mão direita queimada

Emilio Renzi (personagem de outros livros de Ricardo Piglia) estava nessa época - década de 1990 - nos Estados Unidos, a convite de Ida para dar uma palestra sobre o escritor naturalista W. H. Hudson,  escritor de língua inglesa nascido na Argentina e que se interessou pela vida e pelos aspectos físicos daquele país. Com a morte de Ida, Renzi interessa-se pelo caso. Investigando seu passado, descobre que tentara sem sucesso viajar a Cuba. Havia, também, participado de manifestações pela paz, pela descriminalização do aborto, pela igualdade racial, pelo acesso dos latinos à documentação legal, pelo fim do embargo a Cuba. Havia, ainda, participado dos grupos que se manifestaram contra a guerra no Iraque.

Renzi consegue chegar a Thomas Munk, suposto assassino de Ida. Percebeu que ele era considerado o exemplo mais bem acabado de um gênio pelos que o conheciam. Quando desorientado, parecia um tolo, falando confusamente, gaguejando como se estivesse perdido nas suas próprias divagações. Mas, quando estava em forma, era deslumbrante, luminoso, inflexível. Alguns analistas apontam que foi na Califórnia que Tom descobriu a filosofia antitecnológica e começou a sonhar em fugir para o mundo selvagem.
Munk acreditava que vivemos numa época de refluxo e derrota. Já não é mais possível construir grupos clandestinos, pequenas organizações terroristas fechadas, disciplinadas e eficazes. Essa época acabara. Estamos na época dos homens sozinhos, das conspirações pessoais, da ação solitária. Só podemos resistir escondendo nossos pensamentos invisíveis, nos confundindo com a multidão. Somos indivíduos dispersos, internados nas florestas, perdidos nas grandes cidades, sujeitos em fuga extraviados nas pradarias. Faz referência a Henry Hudson e a observação dos animais pampianos. A natureza seria o último refúgio da rebelião.

A conspiração é o motor dessa narrativa com um suspense ágil e revelador do mundo contemporâneo. Ricardo Piglia, como tem sido sempre, soube contar uma história interessante. Eu gostei.

Tradução de Sergio Molina
                              
                      paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Ricardo Piglia. O caminho de Ida. SP, Companhia, 2014, 248 pp.

Preço: 17 a 37 reais o exemplar novo.