domingo, 30 de dezembro de 2012

Virgínia Woolf, a medida da vida

O professor vienense Herbert Marder (1934), é professor emérito de inglês em renomada universidade norte-americana. Sempre gostou de Virgínia Woolf (1882/1941). Já havia escrito um livro sobre a autora, antes de empreender-se na interessante biografia dessa escritora magnífica, um dos pilares do romance moderno universal.
O biógrafo abre o livro, perguntando: por que há quem escreva biografias e por que há quem as leia? Bem, pode ser por uma busca de identidade, por rememorar quem fez ou criou estórias que se mantiveram vivas para a humanidade. O biógrafo é quase um romancista. A diferença está no fato de a personagem ser filha da imaginação do romancista, ao passo que para o biógrafo, o biografado transcende a imaginação para ser humano. O bom biógrafo busca seguir os passos do biografado, combinando um estilo discreto à tentativa de transmitir verdades emocionais, bem como históricas, sobre a pessoa e os fatos. Herbert Marder passou-me a sensação de ter sido honesto na busca de traçar o perfil de Virgínia Woolf. Não se ateve a comentar relações bissexuais esparsas que a autora teve com algumas mulheres, nem expôs as crises psicológicas que a escritora teve, foram inúmeras, de forma sensacionalista. Sua decisão de escrever essa biografia, ele explica, surgiu de um fascínio seu pelo modo como as pessoas mudam sob grande tensão. Assim, descreveu as mudanças por que Virgínia passou na década de 1930, seus esforços para se opor à insanidade coletiva sem tornar as coisas piores. A escritora vivenciou os ataques de Hitler sobre a Inglaterra, no início da segunda guerra mundial. Virgínia, entretanto, recusava-se a imitar o inimigo, respondendo à violência com resistência passiva e uma veemente indiferença, que alguns críticos denunciaram como parte do caráter alienado da escritora à política, o que não foi verdade, conforme o leitor vai verificar se ler a biografia. O biógrafo mapeou a interseção da evolução pessoal da escritora com os eventos históricos. Nesse caminho, o autor descobriu mudanças numa personalidade que, de início, nutria antigos preconceitos que cedia, às vezes, mas se reformulou. Vivendo numa sociedade elitizada, soube simpatizar com a classe trabalhadora pobre e sem educação.
Marder procurou ouvir o que Virginia Woolf realmente disse, não o que se esperaria que ela dissesse. Confiar, também, no próprio testemunho da escritora e traçar os motivos de sua criação artística, o cerne de sua identidade definido por suas próprias palavras. O autor teve acesso ao diário de Virgínia Woolf e a algumas cartas trocadas com pessoas próximas a elas. Virginia escrevia cartas e anotações de diário numa velocidade espantosa. Esses escritos, sem padronização e sem censura lhe deram a vívida impressão da personalidade da autora.
Dona de uma escritura refinadíssima, onde predomina o fluxo de consciência, quando as ações externas parecem ter menos valor que o processo de pensamento integral de um personagem, com o raciocínio lógico entremeado com impressões pessoais momentâneas e exibindo os processos de associação de idéias, quase toda sua obra é constituída de obras-primas. As que mais se destacam, sob meu ponto de vista, são Orlando e Mrs. Dalloway. Virgínia Woolf esteve sempre perto dos limites psicológicos extremos. Tinha transtorno bipolar. Durante anos mantivera sua doença sob controle, mas sabendo que sempre poderia voltar. Quando estava bem, sua energia era notável, mas quando sucumbia às crises, tinha fortes dores de cabeça e surtos de melancolia. Em março de 1941, após um colapso nervoso, ela conseguiu sair de casa sem ser vista e entrou no rio próximo a sua propriedade, para morrer afogada.
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Herbert Marder. Virginia Woolf, a medida da vida. SP, Cosac Naify, 2011, 584 pp. R$ 77,00 

domingo, 23 de dezembro de 2012

O ano da morte de Ricardo Reis


Eu tentava gostar de José Saramago algumas vezes, mas implicava sempre com sua sintaxe meio endurecida. Sentia falta de poesia em sua prosa, dádiva da linguagem ficcional. Seu texto me ecoa sem emoção, com objetividade quase total. O evangelho segundo Jesus Cristo não me agradou, larguei após a leitura de uma dezena de páginas. Ensaio sobre a cegueira eu gostei, havia certo dinamismo na ação. Ensaio sobre a lucidez eu li todo. Mas não gostei. Vi na tevê uma entrevista com a patrona de uma das feiras do livro de Porto Alegre, Jane Tutikian, em que ela dizia não gostar dos livros de Saramago pós-Prêmio Nobel. Mas afirmava gostar de sua fase anterior, com livros como O ano da morte de Ricardo Reis, que decidi ler, para ver se me penitenciava do ranço ao autor.
Ricardo Reis é um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Segundo o poeta, teria nascido no Porto em 1887, estudado em colégio jesuíta e formado em medicina. Monárquico, auto-exilou-se no Brasil desde 1917.  Solteiro, evitava se apaixonar para não ter de sofrer. Aceitava, ainda as limitações e a fatalidade da condição humana. Latinista, de formação clássica, Ricardo Reis escrevia odes, buscando a serenidade da alma, sem medo de enfrentar a morte, vivendo cada instante como se fosse único, fugindo à dor, posto  que a razão sobrepunha-se sempre à emoção. Apresenta, em sua linguagem poética culta e precisa, muitas alusões à mitologia, em geral rica de ideias, com um caráter moralista.
Fernando Pessoa não nos informa a data da morte de Ricardo Reis. Isso serviu de pretexto para Saramago criar seu romance, com a volta de Ricardo Reis à Lisboa, em 1935, ano em que Fernando Pessoa faleceu. Sua morte ocorre em 1936, quando os sonhos monárquicos estão já enterrados e Salazar toma o poder, mergulhando Portugal numa ditadura fascista por 48 anos, até sua extinção em 1978, com a Revolução dos Cravos. Em toda sua vida, o Ricardo Reis de Saramago nunca assistira a um comício político. A causa dessa cultivada ignorância estaria nas particularidades do seu temperamento, na educação que recebeu, nos gostos clássicos com que se identificou, num certo pudor, também. Mas o alarido nacional, a guerra civil portuguesa, acordam-lhe no espírito uma pequenina chama de curiosidade.
A pedra no caminho da leitura do romance consistiu na separação do Ricardo Reis de Fernando Pessoa para o Ricardo Reis de Saramago. Durante toda a narrativa, eu cobrava uma prosa poética que não existiu, o Reis de Saramago pouco fala de sua poesia. O personagem de Saramago é um cidadão que vale pela profissão de médico, não de poeta. Ricardo Reis de Saramago tem relações afetivas não assumidas por diferenças de classe social e de cultura com a criada Lidia, de quem vai ter um filho. Também se interessa por Marcenda, uma jovem burguesa com deficiência física em um dos braços, mas a relação não se concretiza. Ricardo Reis dialoga com o espírito de seu criador, Fernando Pessoa, com quem tem digressões político-filosóficas.

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José Saramago. O ano da morte de Ricardo Reis. SP, Cia. Das Letras, 2011, 474 pp. R$ 59,00

domingo, 16 de dezembro de 2012

Retrato de uma senhora

Isabel é uma jovem norte-americana que vai para a Inglaterra com uma tia, também americana, mas que mora em Londres com o marido, já velho e doente. Essa tia tem um filho jovem e belo, que lhe faz a corte, assim como Lorde Warterburg, que se apaixona por ela e acaba lhe pedindo em casamento. A jovem recusa o pedido, de forma inesperada. Um dia, o primo pede ao pai a inclua no testamento, fazendo-a rica. O tio de Isabel morre e ela herda grande fortuna em dinheiro e acaba, aparentemente, casando-se sem amor com um homem sem posses que a cortejara por interesse.
Esse é o ponto de partida do romance de Henri James (1843/1916), escrito em 1881 que busca emparelhar valores do novo mundo com o do velho continente. A escrita do autor norte-americano que adotou cidadania britânica possui um estilo limpo, clássico, em que as ações externas pouco acontecem, para que a vida interior das personagens criem um clima que envolve o leitor de forma integral. Quando lemos Henri James, enxergamos a literatura de Virgínia Woolf e um pouco substancial de James Joyce na penumbra. Não é para menos, seus romances antecedem os desses autores, o quais tiveram influência confessa do fluxo de consciência, que surge a partir da obra do autor de Retrato de uma senhora.
A primeira idéia de Retrato de uma senhora parece ser confrontar o destino da jovem Isabel, seja ele qual for. A partir de então, o autor começa a formar um plano para trazer a personagem como figura central da trama. O que faz uma moça de espírito livre perder sua liberdade? Será que Isabel estará empenhada em viver com as consequências de sua escolha com integridade, ou como uma espécie de teimosia?

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Henry James. Retrato de uma senhora. SP, Companhia de Bolso, 2007, 680 pp. R$ 35,00

domingo, 9 de dezembro de 2012

O velho e o mar

O velho e o mar, de Ernst Hemmingway (1899/1961), relata um velho pescador em alto mar, que vai torturando um peixe grande aos poucos, para provar sua utilidade como pescador e sua força como ser humano. Depois de morto o peixe, vêm os tubarões, sentindo a carne do peixe morto, para devorá-lo. O velho mata todos eles, e não eram dois nem três bichos. Consegue chegar em terra firme com a carcaça do peixe já completamente devorado pelos tubarões. A prova de que havia pego um peixe grande havia sido conseguida. O velho, cansado da árdua luta, vai para casa e acaba adoecendo. Olivro de Hemmingway foi escrito em 1952 e, segundo a crítica, é a obra-prima do escritor norte-americano. Teria sido, essa novela, o motivo do Prêmio Nobel a ele. Os adeptos do conceito de preservar a natureza e nela incluindo os animais podem desgostar da luta desse velho solitário, que mata tubarões a torto e a direito para tentar preservar um único peixe morto. Na época de Hemingway, não havia essa consciência ecológica, ainda. Levemos em conta, que matar animais fazia (ainda faz) parte da cultura dita civilizada, tais como safáris na África etc.
Fazendo a releitura da obra, percebi que o tema da narrativa é a derrota. O velho no mar busca uma atitude de valor ético para enfrentá-la. No final, a morte e o nada. O velho pescador é um ser deprimido pelas contingências de sua velhice. Ninguém acredita em suas histórias de homem que pesca peixes graúdos. Seus colegas pescadores lhe zombam o que chamam ser sua fantasia de contador de histórias sem pé nem cabeça. Há um menino, entretanto, que lhe admira e que aprendeu muito com o velho. É esse menino que o incentiva a vencer o desafio de sua vida, que é provar seu valor como ser humano. Se fosse otimista, o velho pescador não teria voltado, sabe-se lá, derrotado. Acontece que o escritor Hemmingway não dava muitas chances a seus personagens de serem felizes.
Hemmingway bebeu do nihilismo e da descrença no ser humano decorrentes das guerras que assolaram o mundo na primeira metade do século XX. O escritor lutou na Espanha contra Franco. Era bom vivant, viveu em Paris nos primórdios do século XX ao lado de escritores estrangeiros consagrados que escolheram a capital francesa para viver, como Gertrude Stein e Samuel Beckett. Também morou cerca de 20 anos em Cuba. O cenário de O velho e o mar se passa no mar do caribe e seu velho pescador é um cubano. Autodestrutivo, era chegado ao fumo e ao álcool. Com hipertensão, diabético e depressivo, matou-se com uma arma de caça em 02/07/1961.

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Ernst Hemingway. O velho e o mar. 73ª Ed., RJ, Bertrand Brasil, 2011, 128pp. R$ 31,00

domingo, 2 de dezembro de 2012

O apanhador no campo de centeio


Holden, 16 anos, é um jovem com crise depressiva intensa motivada pelo fato de que ele se recusa a crescer. Ele nos conta sua história de uma clínica de reabilitação, onde está internado para se recuperar da crise. Desse presente ele mergulha numa série de acontecimentos envolvendo relacionamento com colegas do colégio interno, de onde foi expulso, tentativas frustradas com garotas e o uso abusivo do cigarro e do álcool. Os fatos narrados não se afastam muito do presente. Holden tenta, obstinadamente, evitar o confronto com os pais, gasta todo o dinheiro que tem e resolve, já perdido e sem grana, partir para a zona rural dos Estados Unidos para trabalhar em uma fazenda que ele não sabe dinheiro qual seja e nem se dará certo. Seu amor por  Phoebe, a irmã pequena, acaba fazendo ele se redimir e o que vemos, no final, é a volta ao começo, quando ele se interna para se recuperar.
Escrito no início da década de 50, período em que a juventude americana já começava a se desestruturar, colocando o pé na estrada com álcool, drogas e rodk’ll n roll, o romance de Salinger apresenta-nos um jovem que ainda não consegue se desprender da família ( embora queira fugir dela), porque precisa dela, ainda, para sobreviver.
O norte-americo Jerome David Salinger (1915/2010) fez parte de uma corrente de romancistas que enveredaram pelo romance que desenvolve personagens patológicos, separando-se, assim, do naturalismo social do romance que se vinha fazendo então. O apanhador no campo de centeio reflete, assim, preocupações psicológicas e sexuais de um jovem separado do mundo político, industrial e comercial norte-americano, entregue às suas angústias e procurando de forma caótica  uma forma de salvação individualista.
Salinger teve um sucesso estrondoso com seu romance. Além dele publicou alguns contos que foram reunidos em livro. E nada mais. Decidiu isolar-se do mundo, assim como Raduan Nassar fizera no Brasil, após publicar duas novelas memoráveis. Ninguém entendeu o silêncio de Salinger, porque ele não falou com ninguém sobre essa misteriosa saída da cena literária.

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D. J. Salinger. O apanhador no campo de centeio. 17ª ed., Petrópolis, Editora do Autor, 1999, 208 pp.  R$ 59,90

domingo, 25 de novembro de 2012

1968, o ano que não terminou

Devido à Verdade Tropical, só agora li 1968, o ano que não terminou. Estava guardado na estante, assim como outros, na fila de espera. Gostei muito do livro. Especialmente, porque em 1968 eu era um adolescente meio à deriva, que acompanhava os fatos conturbados do período sem a maturidade e a fundamentação necessária para compreendê-lo claramente.
O jornalista Zuenir Ventura abre o livro relembrando a festa de réveillon de 68 na casa da historiadora Heloísa Buarque de Hollanda e seu marido, onde pessoas elegantes e já descoladas pela revolução dos costumes, notadamente os costumes femininos, dão o clima “libertário” da alta sociedade carioca. Mas o livro envereda, mesmo, é para o caminho da luta  contra a ditadura durante o governo Costa e Silva, com a politização dos estudantes secundaristas e universitários, fazendo passeatas e protestos. A trajetória do livro acaba com o AI5, em dezembro daquele ano, suprimindo as liberdades individuais, impondo a censura, e a perseguição seguida de tortura e banimento do país. Isso seria a justificativa para a frase do título: “o ano que não terminou”.
A geração de 68 talvez tenha sido a última geração literária do Brasil, pelo menos no sentido de que seu aprendizado intelectual e sua percepção estética foram forjados pela leitura. Foi criada lendo, mais do que vendo televisão. As moças e rapazes de então já começavam a preferir o cinema e o rock, mas as suas cabeças tinham sido feitas basicamente pelos livros, que lhes deu o gosto da palavra argumentativa. E do palavrão, que passou a fazer parte da fala cotidiana, tomando conta, inclusive, do teatro da época. Na verdade, a geração de 68 teve com a linguagem escrita uma cumplicidade que a televisão não permitiria depois. O boom editorial do ano indica um tipo de demanda que se detinha de maneira especial em livros de densas ideias e em refinadas obras de ficção: Marx, Mao, Guevara, Luckács, Gramsci, James Joyce, Hermann Hesse, Norman Mailer e Marcuse. A editora Civilização Brasileira era a queridinha da época.
O livro encontra-se esgotado, mas é encontrado com facilidade em sebos.

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Zuenir Ventura. 1968, o ano que não terminou. 3ª ed, SP, Planeta, 2008, 288 pp.

domingo, 18 de novembro de 2012

Verdade tropical

Em 1991, Caetano Veloso estava preparando o lançamento do seu disco Circuladô e um de seus produtores pediu-lhe que escrevesse um artigo sobre Carmem Miranda, para circular na imprensa norte-americana. Caetano acabou fazendo o ensaio. Por causa do que esse texto sugeria sobre o tropicalismo, um editor de Nova Iorque sugeriu que ali se insinuava um livro. Apesar de relutar, inicialmente, o cantor pensou que talvez fosse uma oportunidade de valorizar e situar a experiência da música popular brasileira em termos mundiais. Assim nasceu Verdade tropical, um texto memória onde são descritos sua formação musical e o desenvolvimento de seu trabalho como cantor e compositor. Caetano fala também sobre períodos decisivos de sua vida pessoal, como a infância e a adolescência em Santo Amaro da Purificação, seu primeiro casamento com Dedé, sua amizade com Chico Buarque e Gilberto Gil, sua prisão em 68 e o exílio em Londres. Mas o foco acaba iluminando mesmo a música brasileira, sobretudo o tropicalismo, e sua relação com outras manifestações musicais, como a bossa nova, a jovem guarda e os festivais da canção. O autor reflete também sobre questões que eclodiram nas décadas de 60 e 70, como as drogas, a sexualidade e a ditadura.
Existe um livro com escritos de Caetano Veloso, Alegria, alegria, coletânea de textos, entrevistas e depoimentos, organizada pelo poeta Waly Salomão, lá pelo ano de 1979. Há mais dois lançamentos pela Cia. das Letras: O mundo não é chato, reunindo escritos para jornais, revistas, contracapas de discos ou que surgiram como prefácios e conferências, além de alguns textos inéditos, e Letra só/sobre as letras, trazendo 180 letras de canções de Caetano Veloso, organizadas pelo poeta Eucanaã Ferraz. O livro apresenta, também , comentários inéditos do compositor a respeito de seus versos, além de fotos e ilustrações. Antropofagia, lançado pela Penguin Compahia, é um dos capítulos de Verdade Tropical, lançado separadamente, em que o cantor e compositor comenta o encontro do movimento tropicalista com a poesia modernista, especialmente de Oswald de Andrade.

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Caetano Veloso. Verdade tropical. SP, Companhia de Bolso, 2008, 520 pp. R$ 29,50

sábado, 10 de novembro de 2012

Alice no País das Maravilhas

Nicolau Sevcenko, o tradutor da belíssima edição de Alice no País das maravilhas pela Editora Cosac Nayfi , conta-nos que Lewis Carroll(1832/1898) não gostava da forma organizada como a sociedade britânica estava submetida durante a era vitoriana, período em que viveu o autor. Para ele, nada de rotinas mecânicas, da disciplina que fazia as crianças repetir hábitos que as transformavam, mais tarde, em seres mecanizados preocupados com o trabalho e atividades condicionantes. Carroll queria ver crianças barulhentas, arteiras. Por causa disso, criou em Alice no País das Maravilhas, uma menina que via a realidade de forma diferente. Ao perseguir um coelho num jardim, cai, através de um buraco, num mundo repleto de fantasias, onde os animais falam, há rainhas más e duquesas boas. Alice diminui e cresce de tamanho algumas vezes, para participar de forma integral nesse mundo subterrâneo mágico, que é o mundo de sua imaginação. Alice não deixa de ser uma menina rebelde, que enfrenta com indignação as criaturas presunçosas, mal-humoradas e autoritárias do País das Maravilhas. Carroll, assim, subverte o moralismo cultural e a moral puritana de sua época, que não tolerava desvios de comportamento. Para mudar esse cenário, o autor de Alice focou suas histórias no território encantado, imaginativo e lúcido das crianças, satirizando o mundo dos adultos, suas maneiras afetadas, sua seriedade aborrecida, seus preconceitos e sua arrogância autoritária e indolente.
Alice no País das Maravilhas é um livro maravilhoso e divertido. Acompanham a história as belíssimas ilustrações de Luiz Zerbini, que fazem suas criaturas criar aderência, a partir de cartas de baralho, tomando vida. É um livro para crianças especiais, aquelas cujos pais lhes propiciam o aconchego silencioso necessário para emocionar-se com a leitura de Alice. Alice é livro que os adultos devem ler e reler, pois trata-se de obra-prima.
O filme de Tim Burton misturou as personagens de Alice no País das Maravilhas com as de Alice através do espelho, colocando Alice como uma jovem de 19 anos que se recusa a casar-se sem amor. O filme não tem a magia que o livro proporciona.
Há outras traduções de Alice em outras editoras, com preços menores. Esse da Cosac Naify, entretanto, vale o preço. É obra de arte.
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Lewis Carroll. Alice no País das Maravilhas. SP, Cosac Naify, 2009, 168pp. R$ 49,00

sábado, 3 de novembro de 2012

Bili com limão verde na mão


Bili com limão verde na mão, de Décio Pignatari (1927), oferece a possibilidade de várias leituras. Tem ilustrações maravilhosas do premiado ilustrador Daniel Bueno e apresenta o primor estético que caracteriza o estilo concretista do poeta Décio Pignatari. O poema sugere através de palavras, muitas delas aparentemente soltas, imagens carregadas de sons e sensações. Belisa é Bili, Bélica, Bárbara, Bipolar, Biruta, Biônica, Biotônica, à Beça. No degrau mais alto da escada do alpendre, pernas abertas, mão no queixo, Bili, leve e levada abre a boca e diz: “por tudo aquilo que eu sei e que eu não sei, com quase treze anos, a minha vida não está legal”. E ela põe as pernas pra-que-te-quero, saindo de casa, passando pela cidade, cruzando por figuras pitorescas que as crianças de hoje talvez venham a conhecer só no mundo da imaginação (ainda que nós, adultos, a tenhamos vivenciado em nossa infância), dirige-se ao sítio do avô. Chegando, um limão verde cai do nada a seus pés. Este é o ponto de partida para a belíssima história do poeta Décio Pignatari, que mescla prosa poética e poesia, valorizando a palavra no espaço da folha do livro de forma variada e criativa.
Tenho acompanhado meio de perto a presença do livro na vida das crianças e percebo que essas têm liberdade para ler o que querem, do jeito que querem. O estilo individualista da sociedade contemporânea me parece que afastou os pais de participar com o diálogo formador na escolha dos livros de leitura infantil. Essa maravilha que é Bili com limão verde na mão dificilmente cairá nas mãos das crianças, se os pais não lhe facilitarem a oportunidade para que isso aconteça. Hoje o foco da criança na escolha da leitura está nas histórias de terror, muito em voga devido à influência dos videogames e do audiovisual que a mídia trata de fomentar na tevê e nos cinemas para atender ao público infantil . É bacana  a criança ter o poder de escolha do que quer ler, mas é importante a mediação dos pais para trabalhar naquela zona de inteligência entre o que a criança já sabe e o que ela ainda não conhece, mas tem condições de saber, através da aproximação de bom conteúdo de leitura que os pais, como educadores, podem e devem prover a seus filhos. É importante, aos que presenteiam livros infantis, buscar conhecer seus autores, a qualidade editorial da obra, o texto apresentado, para poder dialogar com a criança. Os pais devem, no meu ponto de vista, assumir a responsabilidade pela qualidade da leitura de seus filhos. Isso não traumatiza.
Décio Pignatari, Augusto de campos e Haroldo de campos iniciaram, a partir de 1952, a articulação da chamada poesia concretista, como reação à poesia rigorosamente formal e intelectualizada da geração de 45. Com isso, filiaram-se às experiências mais ousadas das vanguardas europeias do século XX. A poesia concretista desses autores tem como característica a valorização da palavra solta (som, forma visual, carga semântica) que se fragmenta e recompõe na página; o espaço gráfico como agente estrutural do poema; a utilização de recursos tipográficos.
Veja esse poema de Décio Pignatari, onde a linguagem sintética está associada ao dinamismo da sociedade industrial, de que o poema faz uma crítica ácida:

beba coca cola
babe          cola
beba coca
babe cola caco
caco
cola
          C l o a c a

Bili com limão verde na mão tem edição luxuosa da Cosac Naify, especializada em livros de arte. Seu filho merece ganhá-lo. Mas acho que você vai gostar demais do livro, também. O meu, comprei para dá-lo de presente, mas fiquei com ele pra mim.

                                                                            paulinhopoa2003@hotmail.com.br

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Décio Pignatari. Bili com limão verde na mão. SP, Cosac Naify, 2008, 80 pp. R$ 49,90

domingo, 28 de outubro de 2012

Os embaixadores

Henry James (1843/1916) nasceu em Nova Iorque e morreu em Londres, tendo, inclusive, adquirido naturalidade inglesa. Foi um virtuose do estilo literário, usando-se de imagens poéticas e sintaxe primorosa. Escreveu inúmeros romances, além de peças de teatro. Entre os romances, destacam-se, em português, A taça de ouro, Retrato de uma Senhora e A volta do Parafuso. Seus prefácios aos principais romances, que foram reeditados em edição de luxo antes de sua morte, tornaram-se famosos, influenciando profundamente parte da crítica literária internacional.
Lewis Lambert Strether, o protagonista de Os Embaixadores, tem 55 anos. Perdeu a mulher e o filho há anos e sente, até o momento, a culpa pela morte deles. Está envolvido com a Sra. Newsome, viúva rica que financia a revista que ele edita. Essa senhora resolve enviá-lo a Paris, para encontrar o filho dela, Chad, que estaria se desencaminhando na cidade-luz, e trazê-lo de volta para Massachusetts. Se isso fosse feito, a sra. Newsome casar-se-ia com Strether. Ela escolhera Strether como embaixador, não só porque era velho amigo de confiança da família, mas também para testar a sua lealdade. Por outro lado, Strether, casando-se com a viúva, herdaria uma grande fortuna, garantindo seu status na classe alta de sua comunidade. Ao estabelecer-se temporariamente em Paris, entretanto, começa a perceber a vida pacata e entrincheirada em que vivia e começa a expandir seus horizontes. Constata, ainda, que Chad não está perdido como sua mãe supunha, ainda que esteja se relacionando com uma senhora mais velha e casada. Strether resolve, então, incentivar o jovem Chad a viver a vida em toda sua plenitude, gozando todas suas oportunidades. A delicada inteligência crítica de Strether é acompanhada por uma generosidade moral em favor dos outros, juntando-se a isso um senso obsessivo sobre seus conflitos pessoais. Em Paris, torna-se amigo da jovem Maria Gostrey, com quem tem diálogos profundos sobre as incertezas e a beleza da vida. No final do romance ele retorna à cidade de origem, mas sente que já não é o mesmo de antes. Há esperança.
Romance muito bem escrito e incessantemente retrabalhado por Henry James, foi considerado pelo próprio escritor como sua melhor obra. Nele se desenvolve uma técnica narrativa chamada de fluxo de consciência, em que o escritor apresenta o ponto de vista de Strether, através do exame profundo de seus processos mentais, diluindo as distinções entre consciente e inconsciente, realidade e desejo, as lembranças da personagem e a situação presentemente narrada, etc. Clarice Lispector, Dostoievski, Tolstoi, Beckett, Faulkner, Virgínia Woolf, além de Joyce, usavam e abusavam desse estilo tão característico do romance moderno.

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Henry James. Os embaixadores. SP, Cosac Naify, 2010, 608 pp. R$ 110,00

domingo, 21 de outubro de 2012

Fantasma sai de cena

Nathan Zuckermann, fantasma do escritor Philip Roth (1933) reaparece mais uma vez em Fantasma sai de cena. O narrador judeu, que já protagonizara O escritor fantasma e Pastoral Americana (já comentado neste blog recentemente), além de outros romances, sai de seu isolamento, nas montanhas, para Nova Iorque, que não visitava há quase quinze anos, para tentar resolver seu problema de incontinência urinária, decorrente de um câncer que o fizera retirar a próstata. A época da ida de Zuckermann gira em torno do atentado de 11 de setembro de 2011. Uma noite, ao retornar ao hotel, lendo o jornal ele avista o anúncio de um casal de escritores que lhe interessa: o casal procura um sítio nas montanhas em local isolado, em troca do apartamento deles em Nova Iorque, por um ano. Zuckermann andava um tanto abalado pela previsão de uma intervenção cirúrgica para tentar conter a incontinência urinária, outro tanto enfastiado da solidão a que se submetera, já que morava sozinho havia onze anos numa casinha que ficava numa estrada de terra numa região bem rural, tendo tomado a decisão de levar uma vida isolada cerca de dois anos antes de lhe ter surgido o câncer. Tinha pouco contato com pessoas, não ia a jantares nem a cinema, não via televisão, escrevia durante a maior parte do dia e com frequência à noite. Lia, principalmente, os primeiros livros que descobrira quando era estudante. Aquele anúncio subitamente despertara nele um desejo inexplicável de mudar de ares por um tempo, para quebrar, quem sabe, a sua vida pacata de ouvir música, fazer caminhadas no mato no verão ou nadar na lagoa próxima à casa. Sem saber bem o que estava fazendo, pega o telefona e digita o número que consta no anúncio.
Enquanto se desenrolam as tratativas para a assinatura de permuta temporária, Zuckermann vê-se assediado por um jovem jornalista inescrupuloso, candidato a escritor, que busca incessantemente obter informações sobre um escritor famoso, já morto, que havia ajudado Zuckermann a dar os primeiros passos em sua carreira de escritor. Esse escritor falecido teria um segredo que não interessava à família que fosse revelado. A partir de então, a vida de Zuckerman acaba se tornando um inferno.
Não se pode dizer que Philip Roth vá retirar de cena definitivamente seu alter ego. O que se sabe é que, mais uma vez, em Fantasma sai de cena, Roth consegue amarrar muito bem sua história, criando interesse do início ao fim da narrativa.

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Philip Roth. Fantasma sai de cena. SP, Cia das Letras, 2008, 288 pp. R$ 46,50

domingo, 14 de outubro de 2012

Pastoral americana

Pastoral Americana (1997) é o vigésimo segundo livro de Philip Roth (1933), um dos escritores norte-americanos mais famosos e importantes da atualidade. Seus livros vendem como água, com o mérito de serem grandes romances, desses que balançam a estrutura do leitor. Este romance longo explora o curso da história americana a partir dos anos 1940, que o narrador de Roth e alter ego, Nathan Zuckerman, considera como um período de ouro para as convulsões sociais que marcaram a década de 1960 e início de 1970. O ponto central da história é um personagem judeu chamado sueco Levov, homem excepcional em todos os aspectos. Foi atleta brilhante, tendo sido ídolo da juventude na cidade onde morava. É empresário de sucesso, marido e pai dedicado, cujo único objetivo é viver uma vida tranquila em Rimrock, lugarejo rural de New Jersey . Sua vida torna-se um inferno, quando sua filha de dezesseis anos rebela-se, entrando em um grupo de protesto anti-Vietnã, plantando uma bomba na estação de correios local e matando uma pessoa. A vida de Levov é abalada para o resto de sua vida. A estrutura narrativa funciona em ziguezague no tempo. Esse “tumor” na vida de Levov vem à tona, quando ele procura Zuckermann, já escritor famoso, para que este conte a vida de seu pai, que fora fabricante de luvas para senhoras e passara a direção da empresa, já com ramificações no exterior, para Levov. Na verdade, o que Levov acaba fazendo, é contar sua própria vida, para tentar entender, sem sucesso, o que teria dado errado na educação da filha. Roth explora de forma contundente a transformação da vida americana do pós-segunda guerra. Aborda de forma crítica questões como a natureza da educação judaica, a relação impositiva entre pai e filho (o sueco largou a profissão de jogador famoso para administrar os negócios do pai, na marra), o contraste entre sua personalidade e a da filha. Aborda, ainda relações de lealdade e traição familiar, além do fanatismo político que tomou conta dos Estados Unidos no período da guerra do Vietnã, do movimento híppie, dos grupos guerrilheiros como os Panteras Negras, etc.
O escritor Zuckerman apareceu em outros romances de Philip Roth, como O Escritor Fantasma e O fantasma sai de cena. Se você foi, como eu, adolescente na década de 70/80, deve ter lido ou visto o filme baseado no livro Complexo de Portnoy, talvez o livro mais famoso de Roth, considerado um dos dez melhores romances americanos, pela crítica.
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Philip Roth. Pastoral Americana. SP, Cia das Letras, 1998, 478 pp. R$ 69,00

domingo, 7 de outubro de 2012

Livro do desassossego

Livro do desassossego é o livro de prosa de Fernando Pessoa (1988/1935) que mais se aproxima do romance. Nele, Pessoa nos apresenta o diário de Bernardo Soares, mais um heterônimo seu. Fernando Pessoa nos conta no prefácio do livro, que conhecera seu heterônimo Bernardo Soares num pequeno restaurante de sobreloja, frequentado por tipos curiosos, mas sem interesse. Todas as vezes que calhava dele jantar no local, encontrava sempre um indivíduo lá pelos seus trinta anos, magro, curvado exageradamente quando estava sentado, vestido com certo desleixo. No rosto pálido, havia um ar de quem sofrera muito na vida. Com o tempo, observando-o melhor, notou sob o abatimento aparente e a impressão de angústia que sempre carregava, um certo ar de inteligência que o animava. Soube, através de um criado do estabelecimento, que era empregado no comércio, numa casa ali perto.
Um dia houve uma cena de pugilato na rua em frente ao restaurante que acabou aproximando os dois. Ao se aproximar das janelas para olhar o ocorrido, Pessoa trocou com o homem obscuro uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. Desde esse dia passaram a se cumprimentar, até que, uma vez, caminharam juntos. O homem, a certa altura perguntou a Pessoa se ele escrevia. Pessoa respondeu-lhe que sim, falou-lhe da Revista Orpheu, onde escrevia. O homem surpreendeu-se positivamente, pois conhecia a revista. Então, revelou ao poeta que escrevia também, durante a noite, para espantar a solidão. Bem, o homem acaba convidando Pessoa a visitar seu quarto humilde e lhe mostra seus escritos, que constituem o Livro do desassossego, com que o leitor vai se deliciar.
Bernardo Soares nos diz em seu diário, que nunca fizera nada a não ser sonhar. Era apenas esse o sentido de sua vida. Nunca tivera outra preocupação verdadeira a não ser sua vida interior. Ele nos afirma que nunca pretendeu ser outra coisa, que não um sonhador. Pertencera sempre “ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser”. Tudo que tivera de seu, por mais baixo que fosse, constituía-se de poesia para ele. Nunca amou senão coisa nenhuma. À vida, nunca pediu senão que passasse por ele sem que ele a sentisse. Do amor, exigiu apenas que nunca deixasse de ser um sonho distante. Para ele, não há saudade mais dolorosa do que as das coisas que nunca foram.
Livro do desassossego é um livro fragmentário, sempre em estudo pelos estudiosos do poeta. A cada edição, a obra sofre algum acréscimo ou decréscimo, já que Pessoa não era lá muito organizado com suas notas. Quase tudo que Fernando Pessoa produziu, foi publicado após sua morte. Na edição da obra que recomendo, a organizadora explica o processo de edição do texto.

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Fernando Pessoa. Livro do desassossego. SP, Cia. De Bolso, 2006, 560 pp. R$ 33,00

domingo, 30 de setembro de 2012

A mulher que escreveu a bíblia

O gaúcho Moacyr Scliar (1937/2011), ao contrário de Michel Laub, cujo Diário da Queda comentamos já, foi um escritores de origem judaica que respeitou a tradição cultural de seu povo e fez disso o caldo principal de sua criação em mais de 70 livros em vários gêneros. De seus livros, gosto particularmente dos primeiros: Guerra no Bom Fim e O exército de um homem só, cuja temática, até então, era original. Com o passar do tempo, passou a se tornar repetitivo, ainda que sua prosa seja sempre agradável de se ler. A mulher que escreveu a bíblia, escrito em 1999, apresenta uma línguagem simples, com gírias ultrapassadas e uma trama ingênua que beira o simplório. Mas tem o mérito do humor, que o autor muito cultivou em sua obra.
A história começa no presente, quando um professor de História começa a ganhar notoriedade ao descobrir as extraordinárias possibilidades financeiras como terapeuta de vidas passadas. Seu método baseava-se no conhecimento que acumulara como professor de História. Seus pacientes voltavam ao passado. Enquanto tinham suas visões, o terapeuta ia explicando-lhes os lugares onde estavam, as personagens históricas presentes nas visões, quem eram os cortesãos de determinado rei. Em suma, fazia o papel de guia, conduzindo as pessoas pelos labirintos do tempo. Com a fama, teve de arrumar um lugar maior e mais confortável no centro da cidade. Um dia apareceu uma mulher que regredia no tempo até chegar ao palácio do rei Salomão. Lá, ela era uma de suas esposas e era apaixonada por ele. Só que essa paixão não era correspondida. O terapeuta descobriu, durante as sessões, que na verdade a paciente estava apaixonada por ele, o terapeuta. No começo tentou disfarçar, depois tornaram-se amantes, até que ela o abandonou por outro homem, deixando-lhe, de lembrança um relato: A mulher que escreveu a bíblia. A partir daí, começa a fábula propriamente dita, que se desenrola até o final do livro, tomando cerca de 150 páginas. Detalhe: a paciente do professor de História quanto à Mulher que escreveu a bíblia tinham duas característica comuns: ambas eram feias, mas sabiam ler e escrever.

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Moacyr Scliar. A mulher que escreveu a bíblia. SP, Cia. De Bolso, 2007, 168 pp. R$ 21,00
A Folha de São Paulo circulou nas bancas pelo preço de R$ 18,70

domingo, 23 de setembro de 2012

A literatura dramática de Samuel Beckett

Uma peça de teatro, quando lida ou mesmo recitada, é literatura. Na literatura, é a palavra que constitui a personagem. Quando representada, passa a ser teatro. Se na literatura a palavra é fonte da personagem, no teatro é fonte da palavra, graças à interpretação do ator em personagem fictícia, de acordo com a presença viva do homem no palco, visando comunicar-se ao vivo com seu público. A literatura dramática é muito menos lida que as obras narrativas. Publicam-se muito poucos textos dramáticos. É pena. Ler uma peça de teatro é uma delícia! O tempo de leitura não excede muito o tempo que a peça teria, se montada. Recentemente li três textos fundamentais de Samuel Beckett: num, dois vagabundos maltrapilhos à sombra de uma árvore esquálida, sozinhos no meio do nada; noutro, um cego paralítico e seu criado coxo confinados num interior austero e cinzento; e noutro, uma mulher vaidosa na meia-idade, enterrada até a cintura numa colina seca, sob um sol escaldante.

Escrita em francês em 1949, no pós-guerra de Paris, Esperando Godot foi feita para ser encenada por quatro atores e um menino num palco quase vazio, não fosse por uma árvore quase seca e uma lua ocasional. Dois vagabundos, Vladimir e Estragon, perdidos em meio à paisagem deserta, querendo partir, mas presos a um compromisso tão impreciso quanto inarredável, a espera por Godot. Para matar o tempo, os dois decidem praticar uma conversação, ou representando a peça dentro da peça, com as presenças de Lucky e Pozzo. Realiza-se uma pantomima. Em determinado momento, Lucky entra em cena puxando Pozzo por uma corda. Pozzo carrega uma maleta de que não se desfaz nunca. Se o elemento essencial do texto teatral é a ação, o que se passa aqui é a ineficácia da ação, optando pela apatia melancólica como estratégia de sobrevivência, da espera infinita, da esperança vã sem objetivo definido. A peça de Beckett por isso é inovadora, obrigando a redefinir o que se entende por drama.

As personagens de Fim de partida estão às voltas com a tarefa de acabar de existir, em um cenário que é um abrigo feio e quase sem luz, em que seus quatro habitantes, Hamm, Clov, Nagg e Nell, vivem como se fossem os últimos sobreviventes de uma humanidade destruída. A proximidade enganosa do fim está não apenas na escassez de meios (tudo no abrigo está acabando: remédios, provisões, bicicletas), mas também na decrepitude física dos personagens: um cego paralítico, um coxo, dois mutilados presos a latas de lixo, e na rotina vazia que custa a preencher o tempo de espera, completamente desprovido de esperança. O girar falso do relógio sintetiza o tédio a que são submetidos os personagens, apegando-se a rituais e hábitos cuja única finalidade é matar o tempo. A relação entre o par central, Hamm e Clov, é a de opressor e oprimido. Para evidenciar o jogo que se estabelece entre eles, Beckett opta por padrões quase geométricos: aos cinco risos de Hamm na abertura da peça, correspondem cinco bocejos de Clov; se Hamm tem a cadeira de rodas, Clov tem a escada; enquanto Hamm se esconde atrás dos óculos, Clov espia sua vista através da luneta; ao apito que Hamm emprega para chamá-lo, Clov responde com o despertador. Hamm submete Nagg e Nell, seus pais, a viver dentro de latões de lixo, impingindo-lhes rotinas sádicas, com o fim de provocar-lhes dor e humilhação.

Composta em 1961, Dias Felizes retrata Winnie no primeiro ato enterrada até a cintura e no segundo ato até o pescoço, exercitando um monólogo, já que seu marido, presente em cena de forma discreta, é apenas seu ouvinte. A solidão é o tema da peça. Winnie está enterrada sob um céu escaldante, tendo consigo uma sombrinha para protegê-la sem sucesso do sol e uma bolsa onde traz seus objetos de higiene pessoal. A parte visível de Winnie mostra uma mulher bem vestida, maquilada e enfeitada, que faz sua toalete diária como se fosse algo comum diante dessa situação inusitada. A fala de Winnie mostra o contraste irônico entre o que se passa na realidade e o que ela diz. Implorando respostas do marido que não vêm, está só e abandonada, procurando preencher sua solidão com gestos de tirar e usar objetos de sua bolsa, e com palavras para distrair o silêncio. O texto nos faz pensar: seria Winnie otimista, já que ela começa sua fala dizendo, “mais um dia celestial! Jesus Cristo amém.”? Ao finalizar seu monólogo, ela diz: “Ah, que dia feliz, este terá sido mais um dia feliz!” Acho que Beckett não escolheria o caminho mais fácil para Winnie. Os personagens de Beckett estão presos numa armadilha, de um tipo ou de outro. Em Dias Felizes, o que cabe a Winnie é uma colina de terra crestada. Ela encarna os despojos de uma vida enterrada numa cova prematura. Enterrada na terra, comida por formigas, castigada pelo sol, pela falta de memória e pela indiferença do marido, se manteria ainda otimista?
Em Beckett, a dignidade do ser humano é desmascarada, revelando-lhe suas condições precárias. O guarda-chuva de Winnie, cuidadosamente elaborado para protegê-la do calor, incendeia-se pelo sol. Os vagabundos de Esperando Godot são andarilhos forçados, incapazes de comunicar-se com o restante da humanidade, são contemporâneos da ficção e drama desses anos de pós-segunda guerra mundial. O velhos de Fim de partida poderiam partir, mas preferem se manter presos. Portadores dos despojos da civilização, convertidos em trastes, passam e repassam sua existência vazia de significados. O efeito disso tudo é avassalador, cômico e inquietante a um só tempo.

Muito do que que digo aqui, referente ao “viés filosófico” da dramaturgia de Beckett, vem dos textos introdutórios de Fábio de Souza Andrade (Tradutor das três peças que li).
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Samuel Beckett. Esperando Godot. SP, Cosac Naify, 2005. 244 pp. R$ 69,00
Fim de partida. SP, Cosac Naify, 2010, 160 pp. R$ 59,00
Dias felizes. SP, Cosac Naify, 2010, 136 pp. R$ 59,00

domingo, 16 de setembro de 2012

Diário da queda

O escritor e jornalista gaúcho Michel Laub(1973)ganhou notoriedade como crítico literário da Revista Bravo há tempos atrás. Diário da queda, seu quinto romance, mescla a técnica narrativa entre ficção e memória. Esse procedimento é a tônica da maioria das narrativas lançadas atualmente. Michel Laub é judeu. Decidiu contar, com alguma crítica aos costumes judaicos, a vida de um personagem desde sua adolescência, quando estudava em um colégio judeu tradicional em Porto Alegre (o leitor deve saber o nome), até a reviravolta que o leva a se afastar da educação e dos costumes judaicos na vida adulta, quando se torna escritor.
Aos treze anos, morou numa casa com piscina. Nas férias de julho foi para a Disneylândia. Tinha um videocassete, uma estante cheia de livros e discos, uma guitarra, um skate, um soco-inglês e um canivete. Até então nunca tinha tido uma namorada. Aos treze anos fez o Bar Mitzvah. A tal escola judaica tinha, entre seus pares, um gói (não-judeu. O termo é também usado pejorativamente)que estudava com bolsa. Apesar do narrador nos dizer que nunca se lembrara de casos de discriminação de judeus em Porto Alegre, um fato marcante protagonizado por ele revela que os estudantes judeus discriminavam pessoas que não são da religião judaica. Durante a festividade de bar mitzvah, o grupo joga o pobre bolsista para cima, para ampará-lo numa cama de gato. Numa dessas, o personagem-narrador retira a mão e o jovem estatela-se no chão, sofrendo consequência graves que o faz usar colete ortopédico por muito tempo.
O narrador, então, passa a ter afeto pelo colega e tornam-se amigos. Não sabe dizer por que se tornara amigo da vítima. Isso não teria acontecido por pena de alguém, ou porque passara meses torturado com a hipótese de quase ter destruído aquela pessoa, embora isso possa ter sido o impulso no primeiro esforço de aproximação. Não fosse isso, não teria se oferecido para ajudá-lo com os estudos. Dessa reflexão fazem parte também as trajetórias de seu pai, com quem o protagonista tem uma relação difícil, e de seu avô, sobrevivente de Auschwitz que passou anos escrevendo um diário secreto e bizarro. São três gerações, cuja história parece ser uma só; são lembranças que se juntam de maneira fragmentada, como numa lista em que os fatos carregam em si tanto inocência quanto brutalidade. O narrador chega a questionar qual a diferença do massacre de judeus em Auschwitz com o massacre do colega em sua festa de aniversário. Michel Laub faz parte dos escritores de origem judaica que lutam contra ela. O autor interpreta a tradição no que tem de petrificado, pondo sua experiência de vida em questão, explorando a dimensão ética e política da memória.
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Michel Laub. Diário da queda. SP, Cia. das Letras, 2011, 152 pp. R$ 38,50

domingo, 9 de setembro de 2012

Bel-ami

Guy de Maupassant (1850/1893) foi um escritor e poeta francês. Teve vida boêmia, contraiu sífilis e acabou internado como louco num manicômio, onde veio a falecer. Foi amigo de Gustave Flaubert (Madame Bovary), que o incentivou a escrever. Sua produção de peso foi a narrativa curta, mas enveredou também pelo caminho do romance. Bel-ami é um desses.
Em Bel-ami, George Duroy é um jovem belo, charmoso e fogoso. Bigodes e olhos azuis. De origem humilde, vive na Paris da belle époque do final do século XIX. Nesse período, a França lançava sua rede na África para conquistar colônias. Duroy é pobre, ganha um salário miserável para suas pretensões, mas graças a um amigo que havia lutado com ele na Argélia, consegue um emprego em um jornal. Como era medíocre na escrita, obtém ajuda da mulher desse amigo, para se firmar como jornalista. A partir de então, pensa em conquistar um lugar na aristocracia parisiense. Incentivado por essa mulher, é introduzido na sociedade aristocrática e passa a seduzir mulheres casadas. Desde então, planeja ludibriá-las astuciosamente para conseguir fama e reconhecimento, desrespeitando qualquer forma de sentimento. Maupassant conduz, assim, seu personagem, por uma trilha de blefes, chantagens, encontros amorosos às escondidas. Enquanto Duroy vai desvendando, com a ajuda de suas amantes, as trapaças do jornalismo e as ligações que seu novo ofício estabelecia com as altas esferas de poder, o leitor assiste à pintura impiedosa de uma outra Paris, oculta sob o glamour dos salões, onde o tráfico de influências impera e envolve imprensa, política e poder financeiro.
O filme Bel-ami, passado recentemente nos cinema, foi baseado no romance homônimo de Maupassant, mas com uma leitura equivocada do personagem Duroy. No filme, nosso anti-herói é um personagem romântico inseguro e com complexo de inferioridade, por ser pobre (e não tem bigote e tem o nariz torto). Sendo assim, busca vingar-se dos poderosos, seduzindo-lhes as esposas para galgar fama e dinheiro. O ambiente faustoso da belle époque do livro desaparece no filme, bastante pobre, aliás, em cenários, figurinos e tomadas externas. Acontece que Bel-ami é um romance realista e na trama escrita Duroy é um personagem de uma ignóbil ingenuidade, tão cretino quanto os demais. Um dândi inconsequente. Maupassant teve influência de Schopenhauer, filósofo alemão que viveu a mesma época de Maupassant. A visão de Schopenhauer sobre o amor é de que este pode ser meta de vida, mas não de felicidade. Daí o pessimismo nas relações humanas. O foco da vontade de Duroy é o impulso sexual. A encarnação do erotismo que enleia sobretudo mulheres e não conhece escrúpulos. Bel-ami não se trata de uma obra prima, mas sua história, ainda que superficial, é bem tramada e prazerosa de ler.

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Guy de Maupassant. Bel-Ami. SP, Estação Liberdade, 2010, 368 pp. R$ 51,00

domingo, 2 de setembro de 2012

Lavoura arcaica

Você deve conhecer o conceito de novela. Há quem diga tratar-se de um gênero intermediário entre o conto e o romance, tomando como base a extensão da narrativa. A novela seria uma narrativa curta: 60, 80, 100 páginas. O assunto gira em torno de um único protagonista que carrega o argumento da trama do começo ao fim. Noite, de Érico Veríssimo, é novela; Os Ratos, de Dyonélio Machado, também. Na verdade, o termo novela é mais ou menos recente no estudo da literatura brasileira. Os norte-americanos usam o termo novela para qualquer narrativa, independentemente da densidade do argumento. Os espanhóis também. Novela, ou romance, tanto faz, não comete pecado quem classificar uma novela de romance.
Há duas novelas que são duas obras-primas da literatura brasileira, graças à extraordinária qualidade de sua linguagem e força poética da sua prosa, ambas escritas na década de 70 por Raduan Nassar. São elas, Lavoura arcaica e Um copo de cólera. São duas narrativas curtas. A trama das duas histórias é centrada num narrador-personagem, com suas crises existenciais. Em Lavoura arcaica temos André, o narrador-personagem, adolescente, não se enquadra nos padrões da vida rural do interior, cuja autoridade paterna rigorosa, através de sermões, o atormentava. Ana, sua irmã adolescente, desperta nele os primeiros impulsos sexuais, e isso o atormenta também. Ele resolve abandonar a família e viver sozinho, até que seu irmão mais velho, imbuído dos mesmos princípios paternos, vem buscá-lo para que se reintegre à família, satisfazendo, assim, a vontade do pai. Uma série de lembranças importantes, algumas marcantes, outras tristes, vêm à tona durante a conversa que André tem com seu irmão. O recado que o irmão traz de seu pai, é que o homem, quanto mais se protege, criando uma casca, mais se tortura com o peso da carapaça, pensa que está em segurança, mas o que sente é medo, escondendo-se dos outros sem saber que atrofiam os próprios olhos. Torna-se prisioneiro de si mesmo. Traz na mão a chave, mas esquece de abrir o peito, afligindo-se com problemas pessoais sem chegar à cura. O recado do pai também diz que o homem não deve se tornar individualista, mas fazer parte de uma unidade maior, que é a família. André, até então incapaz de partilhar da vida em família, sentindo-se distante e alheio ao pequeno mundo moralista de seu pai, não suportando-lhe os sermões, o abecedário judaíco-cristão repetido à exaustão junto à mesa, a pacata e macilenta convivência com os familiares, além de demonstrar uma clara incapacidade de crer e obedecer guiado apenas pela fé cega de que parecem partilhar o pai e o irmão mais velho, decide voltar para ter um diálogo definitivo com seu pai, diálogo que ocupa a segunda parte da história. Diferentes visões de fé, moral e costumes são confrontadas. O pai consegue ouvi-lo no que tem a dizer. Fazem, os dois, uma purgação do que é estranho à essência ou à natureza de cada um.
Um copo de cólera também apresenta um confronto existencial entre dois amantes. Ele, um homem bem sucedido na vida, dirige-se a seu sítio para ter um encontro amoroso com a mulher. O que acontece nesse encontro, depois um sexo brutalizado, é que ele ouve dela duras críticas sobre sua arrogância, prepotência, frieza de caráter, ausência de sentimentos. Esses ataques provocam cólera num e noutro, até chegar ao limite dele bater na mulher. Tanto Lavoura arcaica como Um copo de cólera foram vertidos para o cinema. Lavoura arcaica resultou num filme com quase quatro horas de duração, mantendo uma densidade dramática que prende o interesse até o final. Um copo de cólera resultou num filme pobre, parte devido ao parco orçamento que Júlia Lemmertz e Alexandre Borges tiveram para produzi-lo. Alguns atores (Marieta Severo foi uma) trabalharam afetivamente (de graça). Como o diálogo dos dois é muito denso, pesado, o filme não conseguiu captar a linguagem cinematográfica adequada às cenas, tornando-o parado e chato.
Raduan Nassar, filho de libaneses, nasceu em Pindorama, São Paulo, em 1935. Sempre foi apaixonado por bichos domésticos. Quando adulto, iniciou-se no curso de Direito e de Letras. Desistiu do segundo. Dois anos depois, começa Filosofia, que acaba largando. Não chega a concluir o curso de Direito. Viaja ao exterior. Na volta, reinicia o curso de Filosofia. Vai para a Alemanha, estudar o idioma. Nesse período, instala-se a ditadura militar no Brasil. Nassar decide voltar ao Brasil, para dedicar-se à literatura. Sua primeira obra, Lavoura arcaica, foi publicada por iniciativa de um irmão seu, que tirou cópia da novela, que acabou sendo publicada pela editora José Olympio em 1975, fazendo grande sucesso.
Por razões não suficientemente esclarecidas, Raduan Nassar, depois de conhecer o sucesso, inclusive internacional, dessas duas histórias, não produziu mais literatura. Um livro de contos que circula no mercado é uma compilação de contos que ele escreveu durante esse período da década de 70. O sucesso parece ter excedido em muito aquilo que o escritor esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. Voltou-se ao cuidado dos animais, embora tenha se mantido ativo, participando de palestras e entrevistas sobre sua criação literária.
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Raduan Nassar. Lavoura arcaica. SP, Cia. das Letras, 3ª ed., 1989, 200 pp. R$ 39,50
Um copo de cólera. SP, Cia. das Letras, 5ª ed., 2001, 88 pp. R$ 29,00

A Folha de São Paulo lançou nas bancas sua edição de Um copo de cólera, a R$ 18,70




domingo, 26 de agosto de 2012

As cartas de amor de Edith Piaf

As cartas de amor de Edith Piaf é um título enganoso, pois aborda apenas uma série de cartas da famosa cantora francesa a um de seus vários amantes, que até então, estivera obscurecido na biografia da artista, Louis Gérardin, o Totó, o belo e elegante herói do ciclismo francês. O motivo dessa correspondência ter sido mantida em sigilo, deveu-se, quem sabe, ao fato de Gérardin ter sido um homem casado que não conseguiu abandonar a esposa. Essas cartas surgiram em 2009, quando foram leiloadas em Paris. Parece que Gérardin havia superado o posto de grande amor de Piaf de Marcel Cerdan. Trata-se de uma correspondência composta de mais de cinquenta cartas manuscritas, escritas no período de novembro de 1951 a setembro de 1952, tempo de duração do romance dos dois. Quando se conheceram, Edith recém-recuperara-se da perda de seu grande amor, o pugilista Marcel Cerdan, morto em desastre de avião em 1949. Edith Piaf amava cada homem com quem se apaixonava, como se fosse o único e o último. De coração impetuoso, teve vários relacionamentos amorosos que duravam, em média, um ano, um ano e meio. Oficialmente foram 16 maridos.
As cartas de amor de Edith Piaf< estão organizadas em três partes: cartas e telegramas datados, cartas e telegramas não-datados e um texto pequeno de apresentação da cantora à imprensa norte-americana, quando de uma de suas apresentações naquele país. Sem valor literário, com vários erros ortográficos amenizados pela tradução para o português, a correspondência nos mostra uma mulher que valorizava os dotes físicos de seu amante, ao mesmo tempo que reclamava dele uma atenção mais próxima. A impressão que fica é de uma Piaf sufocante, chegava a escrever mais de uma carta por dia. Sonhava montar uma casa com Gérardin, mesmo ele não se desfazendo do casamento com a mulher legítima. Cantora dramática, era também dramática em sua vida pessoal. Ela diz em uma de suas cartas, "que gostaria de ser esmagada pelo teu corpo", noutras cobra-lhe: "Querido, diga-me se tem vontade de me ver (...) às vezes você me telefonava (assim que me deixava), que me amava (...) é que em certos momentos não sinto você em meu coração". De início, uma mulher enlouquecida de amor, que suportaria tudo pelo amante. Já mais para o final, uma certa resignação de que o está perdendo, até que chega, em uma das cartas, a lhe cobrar um dinheiro emprestado.
As cartas de amor de Edith Piaf só vale a leitura, se você for muito fâ da cantora.
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As cartas de amor de Edith Piaf. Barueri, SP, Amarilys, 2012, 156 pp. R$ 39,00

domingo, 19 de agosto de 2012

A pista de gelo

Um povoado anônimo de uma cidade espanhola; um chileno com pretensões de escritor que havia exercido todo tipo de trabalhos eventuais; um mexicano também poeta e andarilho que sobrevive como vigilante noturno em um camping; um empreendedor catalão metido a político, capaz de tudo para chamar a atenção de uma bela patinadora. Deles se obtém três versões para um crime, que se vão entrelaçando por toda a novela em torno de uma pista de gelo construída ilegalmente em uma casa abandonada.
O chileno da história também se havia apaixonado pela patinadora. Um dia resolveu segui-la, até que ela entrou num bar. O catalão, que havia ido ao encontro dela, encontra-se com o chileno e saúda-o com uma mescla de ódio e desconfiança. Sente-se mal, quando pressente que entre a patinadora e o chileno pode existir mais que amizade. O chileno havia sido casado com a empregada desse catalão e destroçara sua vida pela desilusão e infelicidade. O catalão pensa que o sul-americano poderia fazer o mesmo com a patinadora, a quem amava muito. O outro elemento, o vigilante, gostava de entrar na casa abandonada para observar furtivamente a bela patinadora a fazer seus exercícios ao som da música clássica.
Às dez horas da manhã de um certo dia, cada um deles se dirige à pista de gelo. Lá, cada um vê de seu ângulo e individualmente, que no centro da pista há um vulto encolhido que não se pode ver direito de quem se trata. O sangue, originado de diversas partes do corpo, havia se espalhado em diversas direções, formando desenhos e figuras geométricas. O corpo pode ser da bela patinadora. Para investigar isso, caro leitor, você precisa ler o livro, para saber. Trata-se de uma história interessante, com muito suspense.
Roberto Bolaño constrói uma história com requinte policialesco, com amores destruídos e ilusões perdidas. Com seu estilo mordaz e seu humor feroz, prende o leitor desde a primeira página. Nascido no Chile em 1953, morto aos 50 anos, surgiu na década de 1990 e logo se tornou um dos mais importantes escritores sul-americano dos últimos tempos. O escritor estava fora do Chile, quando Pinochet tomara o poder. Tentou voltar para lutar contra o ditador, mas foi preso e teve de se exilar na Espanha. Seu romance Os detetives selvagens é considerado sua obra-prima.
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Roberto Bolaño. A pista de gelo. SP, Cia. Das Letras, 2007, 200 pp. R$ 44,00

domingo, 12 de agosto de 2012

O último leitor

O argentino Ricardo Piglia (1940) nos mostra em seu excelente O último leitor, que a obra literária começa e termina nele, no leitor. É aquele que, mesmo lendo mal, mal interpretando, faz o sentido da literatura, é sua tábua de salvação. Um único leitor, o último leitor, chega a sustentar por um momento todo o peso da literatura sobre os ombros.
O primeiro ensaio, “O que é um leitor?”, nos fala de Jorge Luís Borges, um leitor voraz, obstinado por bibliotecas, que perdeu a vista lendo. Borges seria a primeira imagem do último leitor. Ele mesmo disse que “eu sou agora um leitor de páginas que meus olhos já não veem”. Borges foi o leitor perdido em uma biblioteca, que vai de um livro a outro, que lê uma série de livros e não um livro isoladamente. Um leitor disperso na fluidez e investigação de todos os volumes que tem a sua disposição. Depois de cego, Borges passou a escrever, ditando seus livros para a secretária. Aliás, as secretárias tiveram suma importância na vida de muitos escritores. O leitor não é somente o que lê um livro. É o que se perde numa rede de signos. Que lê e relê o mundo de acordo com seu interesse e sua necessidade. A ficção não depende de quem escreve somente, mas de quem lê. A ficção depende do intérprete.
O segundo ensaio, “Um relato sobre Kafka”, discorre sobre a correspondência que Kafka manteve com Felice Bauer, sua noiva, com quem quase se casou por duas vezes, como um grande acontecimento da literatura contemporânea. Nas cartas, escritas entre 1912 a 1917, Kafka narrava à noiva seu processo de escritura e toda sua angústia envolvendo esse processo. Contava, também, de sua vida durante a Primeira Grande Guerra. O interessante é que Kafka manteve sua relação amorosa com Felice através das cartas. Quase nunca se viam. Assim, Felice passava a ser a leitora de Kafka. O leitor mantinha, através da leitora obediente, um mecanismo de controle e sedução.
O terceiro ensaio, “Leitores imaginários”, apresenta-nos o maior representante de leitor da era moderna, o detetive privado das histórias policiais, Auguste Dupin, criado por Edgar Allan Poe, aparecendo em três livros do autor: O assassinato da Rua Morgue, O mistério de Marie Rogêt e A carta roubada. A primeira cena de O assassinato da Rua Morgue se passa justamente numa livraria, onde o narrador conhece ocasionalmente o detetive Dupin, quando os dois estão ali em busca de um mesmo livro, raro e magnífico. Não sabemos qual é o livro, mas o que ele representa: aproximar os dois personagens. Desse encontro, surge a história policial.
O homem da era moderna relaciona-se com o mundo, através de um tipo específico de saber. A leitura funciona como um modelo geral de construção de um sentido para o leitor. Por exemplo, quando você era estudante universitário, qual era sua tendência política dentro da faculdade, que tipos de leitura você tinha acesso e que relação elas poderiam ter com sua atuação política? A indecisão de um intelectual pode ser sempre a incerteza da interpretação, das múltiplas possibilidades de leitura. Pode haver uma tensão entre o ato de ler e a ação política. O quarto ensaio, “Ernesto Guevara, rastros de leitura”, expõe ideias sobre a importância da leitura na formação intelectual do militante Che Guevara. Ricardo Piglia nos fala, por exemplo, de uma cena envolvendo Che Guevara ferido na luta em Cuba, pensando que iria morrer ali. Che recordou-se de um conto que havia lido, de Jack London, em que o protagonista, apoiado sobre uma árvore se dispõe a por fim a sua vida de maneira digna, ao saber-se condenado à morte. A literatura teve naquele momento, para Guevara, um sentido de reflexão existencial.
No quinto ensaio, “A lanterna mágica de Ana Karenina”, o ensaísta nos fala da relação da leitura com a formação do sentido, com a afetividade, com a tradição e com o desenvolvimento do romance de Tolstoi, Ana Karenina. É a época em que as mulheres são as grandes consumidoras da literatura. A partir da geração romântica, as mulheres passam a personificar a figura do leitor moderno. Os romances que se originaram dos folhetins, eram escritos em capítulos de jornal justamente para as mulheres. Ana Karenina lê seu romance num trem de Moscou a São Petersburgo. Nesse trem está o homem que ela vem a conhecer ali e que se tornará seu amante, levando-a à desgraça e ao suicídio. Ao ler seu romance, Ana Karenina identificava-se com a vida das personagens, tendo a ilusão de realidade que faltava a sua vida monótona com o marido. O protótipo da mulher como protagonista na literatura, era o de adúltera.
O último ensaio versa sobre “Como está construído o Ulysses”, uma das grandes obras-primas do romance moderno, que pouquíssimas pessoas leram, pelo alto grau de complexidade da obra. Eu tentei a tradução de Antonio Houaiss e parei na página 548, de 850, por ter perdido o fio da meada. Agora comprei a tradução de Caetano Galindo, pela Penguin Companhia, para nova tentativa. Parece ser mais acessível. Neste ensaio, Piglia nos diz que não existe o texto fechado e perfeito. O verdadeiro leitor lê com a certeza de que o livro não estará suficientemente terminado. Qual sua utilidade e seu valor? Joyce escreve a epopeia de Bloom em 24 horas, na cidade Londres, baseada na epopeia homérica de Ulisses. A obra literária tem sempre uma correlação com outra já existente, que se renova ou se transforma, no caso de Ulysses.
Aconselharia ao leitor dessa crônica que se aventurasse a um voo mais alto, buscando ler a O último leitor. Pode surgir uma dúvida ou outra, nada que o Google não resolva. É de leitura acessível e instigante.

Ricardo Piglia. O último leitor. SP, Cia. Das Letras, 2006, 192 pp. R$ 44,50

domingo, 5 de agosto de 2012

Grandes esperanças

Lemos comumente textos divulgados em jornais e redes sociais, testemunhando que se aprende com os erros cometidos. No caso de Pip, o personagem central de Grandes Esperanças, de Charles Dickens, as virtudes são os acertos que ele faz durante sua trajetória no romance. Grandes esperanças é uma história de redenção moral. O protagonista é um órfão criado num lar humilde que herda uma grande fortuna e imediatamente rejeita os familiares e os amigos. Quando a fortuna desaparece por completo, é obrigado a assumir sua própria ingratidão. Uma das características interessantes de Pip, esse órfão, é que ele é sincero ao confessar seus defeitos, e isso acaba criando nele uma empatia que pode agradar ao leitor. Pip, apesar de ter vergonha de seus pares pobres, é capaz de efetuar boas ações durante a narrativa. É franco com seus sentimentos. Sua franqueza e suas boas ações serão a prova de sua redenção. Durante sua trajetória de altos e baixos, aprende que no encalço do desejo vem sempre a culpa, naquilo que gostaria de ser há aquilo que não pode deixar de ser. O tratamento rígido que recebe da irmã que o criara o faz ver que nada é percebido com tanta intensidade e sentido com tanta intensidade, quanto a injustiça. Isso foi a causa dele ter-se tornado tímido e sensível.
Um dia ele vê-se forçado a ajudar um criminoso em fuga. Sua bondade é reconhecida pelo bandido e isso é parte importantíssima no desenrolar da narrativa. Depois, ele é convidado a frequentar a residência de uma senhora muito rica para brincar com Estella, suposta filha. Ele se apaixona e a senhora lhe propõe mudar de vida, educar-se e ser alguém na sociedade para merecer a jovem. Então Pip passa a ter vergonha do lar e de Joe, seu padastro, um homem tosco, mas profundamente amoroso com Pip. É terrível ter vergonha do próprio lar,talvez seja a mais negra ingratidão. O lar nunca fora o lugar muito agradável para ele, devido ao temperamento de sua irmã. Antes, ele acreditava que o seu lar era o modelo correto de viver e conviver. Que a ferraria de Joe era o caminho da maturidade e independência. Um ano depois, entretanto, convivendo com Estella, tudo aquilo passa a ser-lhe grosseiro e vulgar. Passa a pensar ser vergonhoso se um de seus novos amigos um dia pudesse visitar sua casa humilde. A partir do momento em que Pip muda-se para Londres, muitas coisas acontecem. Seu espírito contraditório acaba levando-o à ruína, mas lhe traz a maturidade necessária para compreender que as grandes esperanças que tem em relação à vida incluem, no caminho, o reconhecimento do amor e da justiça.
O romance foi publicado originalmente em três volumes no ano de 1861, depois de ter sido publicado em folhetim um ano antes. Dickens, assim como Machado de Assis, José de Alencar e inúmeros escritores dessa época, publicavam seus romances em capítulos nos jornais. Por causa disso, sua técnica narrativa é muito bem amarrada. O final de cada capítulo leva o leitor a querer continuar a leitura do capítulo seguinte. Muito bem escrito, apresenta uma linguagem poética cativante.
Charles Dickens (1812-1870)nasceu na Inglaterra. Sua vida transcorre durante o período vitoriano, com a ascensão da Revolução Industrial, que trouxe progresso à nobreza e miséria à classe trabalhadora que surgia então. Sua obra transparece a crítica social a esse estilo de vida, que ele considerava injusto. Sua obra apresenta, assim, traços realistas. Seus romances apresentam, quase sempre, órfãos como heróis. Não raro, certo tom pessimista no futuro de seus personagens. É dos grandes da literatura universal.
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Charles Dickens. Grandes esperanças. SP, Penguin Companhia, 2012, 704 pp. R$ 37,00

domingo, 29 de julho de 2012

Caderno de ruminações

Sergipe é um estado que muitos passam por cima, quando vão da Bahia para os outros estados do Nordeste. Uns dizem que é por causa da água escura do mar de Aracaju, parecida com a de nosso litoral gaúcho. Eu, que gosto de lá, conheço praias de águas claras calmas e agradáveis, como a Praia do Saco, coladinha à Mangue Seco. O cânion do São Francisco também fica em Sergipe, no município de Paulo Afonso. No plano da literatura, há sergipanos importantes e famosos, como Joel Silveira (1918-2007), jornalista e contista. Você deve lembrar do imbróglio que teve com Zelia Gattai, quando ela se candidatou à vaga deixada por Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras. Joel fez campanha contra, chegou a se candidatar para tentar impedi-la de ganhar o posto. Não adiantou. Foi eleita. Se você teve um bom professor de Literatura, deve-se lembrar de Tobias Barreto (1839-1889), filósofo, poeta, crítico e jurista brasileiro, nascido naquele estado. Sílvio Romero (1851-1914), famoso crítico literário que escreveu sua famosa Introdução à História da Literatura Brasileira.
Atualmente, dois escritores de Sergipe têm se destacado nas letras nacionais, sendo publicados por editoras importantes como a Companhia das Letras e a Alfaguara. São eles Antonio Carlos Viana (1946), contista que obteve fama com seu livro O meio do mundo e Francisco J. C. Dantas (1941), romancista que se destacou com o romance já consagrado, Coivara da Memória. Esses dois autores são sangue novo à nova literatura do nordeste, que ficara estagnada em Graciliano Ramos e Jorge Amado, para citar alguns do cânone modernista.
Francisco J. C. Dantas lançou recentemente Caderno de Ruminações, narrando quatro dias que antecedem o casamento de Rochinha, o anti-herói da história. Médico proctologista, tinha pai humilde que vendeu suas poucas terras para custear a faculdade do filho. Rochinha, um cara íntegro, profissional idealista que pratica a saúde com escrúpulos e direiteza, acaba pagando um preço muito alto por isso. Tenta inúmeras vezes uma vaga na saúde pública, mas não tem o perfil de quem vá angariar votos para os políticos que comandam a rede de saúde. É forçado a exercer a medicina em lugares longínquos, de gente miserável, até que se dá conta de que, pra vencer na vida, precisa abdicar de alguns princípios que lhe passaram e trair o próprio juramento. Tem de arranjar um respaldo muito forte, cultivar boas relações com certos colegas, laboratórios, chefes, e separar direitinho a quem prestar favores ou fazer concessões.
O problema de Rochinha é que ele não consegue deixar de ser íntegro na sua profissão. Adquire fama e dinheiro com rapidez, mas seu dinheiro e seus bens são desgastados por sócios inescrupulosos e um primo que lhe tem inveja. A derrocada moral de Rochinha ocorre, quando se decide casar com uma prima rica e libertina.
Francisco J. C. Dantas começou a escrever na idade madura, aos 50 anos. Foi professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na Universidade de Sergipe e na Universidade da Califórnia.
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Francisco J. C. Dantas. Caderno de ruminações. Rio, Alfaguara/Objetiva, 2012 402 pp. R$ 49,90








domingo, 22 de julho de 2012

Patti & Mapplethorpe, Só Garotos

Patti Smith lançou recentemente seu disco de estúdio, Banga. Tem a sonoridade menos agressiva que seus discos anteriores. Para compensar, apresenta letras densas (Patti sempre foi poeta), algumas canções são poemas que a cantora diz enquanto a melodia toca. Nele tem This is the girl, homenageando Amy Winehouse; tem também Constantine’s Dream, poema longo de mais de seis minutos, onde a intérprete, ao acordar de um sonho apocalíptico, vai à igreja rezar e encontra lá a pintura que seu amor há tanto procurava. Todas as músicas são bacanas. Patti Smith fez parte do movimento punk, que efervesceu a partir da década de 70 do século passado. Cultuada como poetisa do rock, faz parte de um time seleto de roqueiros que incluem Bruce Springsteen e Bob Dylan, de quem já era fã antes de começar sua carreira como cantora. Se você não lembra dela, pode ter visto e ouvido a música que ela fez com Bruce Spreengsten e rola no You Tube, os dois junto com Bono, do U2: Because the night.
Banga serve de mote para comentar o livro que ela havia prometido escrever a seu grande amigo, o artista plástico e fotógrafo Robert Michael Mapplethorpe, pouco antes da morte dele, em 1989, para contar a história dos dois, em Só garotos. Ela e Robert nasceram em 1946, foram para Nova Iorque no mesmo ano – ela para ser poeta, ele para ganhar expressão como artista plástico. Os dois se conheceram em uma livraria onde ela trabalhava. Em dois toques tornaram-se amantes. A coisa não continuou, porque Robert era homossexual e decidiu seguir sua tendência. Tornaram-se amigos por toda a vida. Patti, muitas vezes, assumiu o papel de irmã mais velha do fotógrafo em suas crises existenciais. Robert, desde cedo, envolveu-se com LSD. Sujeito irreverente, teve o incentivo de Andy Wahrol para desenvolver sua fotografia como arte. Robert era bastante conhecido por suas fotos retratando o sadomasoquismo guei. Patti, por sua vez, era apaixonada por poesia. Rimbaud era dos seus autores favoritos. Tinha intenções de publicar um livro de poemas. Como já cantava e tocava, Robert a incentivou a enveredar pela música. Seu primeiro álbum, Horses, teve design gráfico e fotos dele. Enquanto viveram juntos, foram morar no Hotel Chelsea, que na época tinha residentes ilustres. Antes deles, Bob Dylan e Janis Joplin, por exemplo, haviam morado lá. Enquanto viveram no Chelsea, tiveram contato íntimo com a nata da intelectualidade cultural da época, seja na música, na literatura e nas artes plásticas. William Burroughs, escritor, foi outro que teve grande influência na vida dos dois. Separados, saíram do Chelsea. Patti partiu para sua carreira musical e Robert descobriu os prazeres da fotografia. A década de 80, efervescente em novas tendências artísticas, infelizmente trouxe o estigma da AIDS. Robert foi uma de suas vítimas, morrendo em consequência disso. Patti ficou próxima a ele até sua morte.
Só garotos é importantíssimo para retratar uma das épocas mais importantes do movimento pós-moderno, que já havia lançado raízes nas décadas passadas. As marcas do homem contemporâneo, individualista, autodestrutivo, enraizado na sociedade de consumo, evidenciando novos comportamentos sociais, têm suas marcas na rica história das mudanças de comportamento social que o livro de Patti Smith faz refletir na história de vida dela e na história de vida de Robert Mapplethorpe. Leia!
Se você é fã de Patti Smith e quer comprar seu disco, gaste um pouquinho mais e compre o disco importado, quem contém as letras e um diário. Se optar pela edicção nacional, terá de buscar as letras na internet.
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Patti Smith. Só garotos. SP,Cia. das Letras, 2010, 220 pp. R$ 39,00

domingo, 15 de julho de 2012

Gabriela Cravo e Canela

Jorge Amado era muito bom contador de histórias. Criou caricaturas da sociedade baiana, seja no período histórico do cacau: coronéis, políticos, damas da sociedade, seja nos romances urbanos: o político, o industrial, homens e mulheres da alta classe média de Salvador. Foi um dos poucos escritores com perfil para ganhar o Nobel de Literatura. Seus romances foram traduzidos em inúmeros idiomas, conseguindo sucesso de venda. Homem de esquerda por muito tempo, elegia pessoas do povo para heróis de suas histórias. Pessoas pobres, analfabetas ou quase analfabetas (Gabriela, por exemplo, não fez escola, nem certidão de nascimento tinha). Em Capitães de Areia eram os meninos de rua; em Teresa Batista, uma prostituta, em Jubiabá, um pai de santo. Não foi um romancista dos mais primorosos em relação a sua técnica narrativa. Muitas de suas histórias carecem de soluções melhor elaboradas. Alguns conflitos se resolvem de forma piegas e simplista. Entretanto, sua prosa é viva e saborosa. Com a regravação da novela Gabriela, resolvi relembrar a Gabriela do romance, relendo o livro cuja leitura havia sido feita há 37 anos, no curso de Letras.
Gabriela é mulata, “nada mais era que uma pobre moça, quase menina ainda”, “seria uma criança, não fossem as ancas largas”. A moça tem 21 anos. Aparece na história lá pela página 80, quando vem fugida da seca para Ilhéus. Quis o destino que ela encontrasse o sírio Nacib, que nesse mesmo tempo estava precisando urgentemente de uma cozinheira para seu bar, o Vesúvio. Depois de muito procurar, encontra Gabriela na praça central, no lugar onde antes ficavam os escravos à venda e onde agora estava ela, juntamente com outros retirantes, à espera de que alguém os empregasse. Além de bela, sensual e comunicativa, Gabriela era talentosa na cozinha. Logo conquistou a confiança e o amor de Nacib. Ele, entretanto, zela pela moral. Quer casar, Gabriela reluta, mas cede. O casamento oficial dura cinco meses. Nacib ama Gabriela, mas não se acha um diabo qualquer. É amigo de gente influente na política local. Quer introduzi-la na vida social, fazê-la conduzir-se como uma senhora da sociedade de Ilhéus. Obriga-a a usar sapatos, chama-lhe a atenção para não falar alto no cinema, não mostrar intimidade com as empregadas, não rir debochada para qualquer um, como fazia no bar, não usar mais rosa atrás da orelha, quando saem juntos. Afinal, comprara-lhe vestidos de seda, chapéus, até luvas. Dera-lhe anéis e colares. Queria-a tão bem vestida como a senhora mais rica, como se isso apagasse seu passado. Gabriela, com isso, encolhe-se, perdida. Moça sem instrução, gosta de andar de pés descalços, é comunicativa, simples, uma moça desencanada, capaz de deitar com um homem por vontade, sem preocupar-se com os conceitos morais que possam fazer dela. Acaba traindo Nacib. O casamento é anulado. Os dois voltam às boas, quando os preceitos morais ficam de lado e o amor renasce livre e verdadeiro.
O romance se dá em um período curto de tempo, no ano de 1925. A história de O romance divide-se em dois focos principais: Gabriela e disputa política. Sua vida com Nacib serve para costurar os acontecimentos sociais e políticos de Ilhéus, em pleno esplendor do cacau. Grandes proprietários de terras passam a ter casas na cidade. Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e Itabuna naquele tempo. Era assunto nas colunas de jornais, nos bares, nos cabarés. Novas ruas e centros comerciais eram criados. A cidade foi perdendo o ar de fazendeiros montados a cavalo, revólver na cintura, de jagunços que amedrontavam as ruas sem calçamento, de mascates que chegavam e expunham seus produtos nas calçadas. A cidade passa a expor mercadorias em vitrinas coloridas e variadas, multiplicam-se lojas e armazéns. Surgem bares, cabarés, cinemas e colégios. Naquele tempo, doutor não era doutor, capitão não era capitão, assim como coronéis não o eram. Os fazendeiros da lavoura de cacau adquiriam patentes de Coronel da Guarda Nacional. Ficara o costume. Donos de roças de mais de mil arrobas passam normalmente a usar e receber o título que ali não implicava em mando militar e, sim, no reconhecimento da riqueza. Com o crescimento da lavoura cacaueira, Mundinho Falcão, paulista, cuja família comercializava café, vê no cacau da Bahia um caminho novo para enriquecer por seus próprios métodos. De outro lado, o coronel Ramiro Bastos, que mandava na cidade por métodos antigos, vê em Mundinho Falcão um inimigo a ser declarado. A luta dos dois pelo poder político de Ilhéus é o mote da história.
As adaptações feitas do romance para a televisão e o cinema têm seu fundamento. A televisão e o cinema são outras linguagens. Podem alterar ou acrescentar fatos, até envelhecer Gabriela, desde que mantenham seu frescor de juventude e sua sensualidade nativa da Bahia.
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Jorge Amado. Gabriela Cravo e Canela. SP, Cia. das Letras (edição
econômica), 2012, 336 pp. R$ 30,00