domingo, 30 de março de 2014

Triste fim de Policarpo Quaresma

Mais uma edição da Penguin com a Companhia das Letras nos revela uma leitura sem o ranço da obrigatoriedade escolar que nos levaram a ler Triste fim de Policarpo Quaresma na escola. O tempo passado entre a primeira leitura e a de agora, muitos anos depois, nos ajuda a compreender na figura de Quaresma um parvo caricato, mas um homem fiel  a seus princípios e honesto em sua forma de pensar o nacionalismo que buscava seguir. Essa fidelidade o vai isolando cada vez mais de uma sociedade, essa sim, caricaturada como hipócrita.
Quaresma amava a modinha tocada na viola pelo amigo Ricardo Coração dos Outros. Ficava desanimado pelo povo não guardar as tradições e com elas suas canções. Isso era demonstração de fraqueza diante de outras nações que as guardavam durante séculos.  Queria que houvesse uma reação que desenvolvesse o culto das tradições, para mantê-las sempre vivazes nas memórias e costumes do povo brasileiro.

No final da vida, alijado da vida social, por ser considerado louco, Quaresma dá-se conta de que não é só a morte que nivela as pessoas. A loucura, o crime e a doença passam também a sua vassoura pelas distinções que inventamos.  A sobrinha, casada com um médico emergente e sovina, é a única que, juntamente com o músico Ricardo Coração dos Outros, demonstra afeição por Quaresma, quando este já está considerado insano. Busca a ajuda do marido, que se abstém. Ela o enfrenta e sai à rua, em busca de auxílio. Busca contato com os políticos, que lhe debocham na cara.

Quem sabe um pouco do escritor Lima Barreto (informe-se) sabe que a vida não lhe foi fácil. Sua literatura critica os políticos e a sociedade emergente na recém-criada República através da caricatura e denuncia o estado precário que vivia a classe pobre da periferia inchada de brancos e negros pobres.
                                                                      pauinhopoa2003@yahoo.com.br
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Lima Barreto. Triste fim de Policarpo Quaresma. SP, Penguin, 2011. 368 pp, R$ 26,50

domingo, 23 de março de 2014

Memórias de um sargento de milícias

 Vez ou outra relia Memórias de um sargento de milícias, quando ainda era professor de literatura brasileira. Recentemente li mais uma vez o romance pela edição bem cuidada da Penguin & Companhia das Letras. Leitura deliciosa e sempre surpreendente. Consegui observar melhor a figura do Vidigal, famoso por sua autoridade e implicância com o Leonardo Pataca, revelando, entretanto, um lado afetivo e paternal que diminui um pouco essa caricatura, para revelar um homem com atitudes contraditórias.
Memórias de um sargento de milícias foi uma façanha literária de Manuel Antônio de Almeida, jornalista que escreveu sua única obra ainda jovem, de maneira original. O livro saiu no período do Romantismo, em que Alencar, Macedo e Machado de Assis, em sua fase inicial, revelavam em suas obras heróis e heroínas típicos dos salões do Império no Rio de Janeiro. O romance de Manuel Antônio de Almeida foge diametralmente do romantismo dramático, revelando personagens caricatos com a função de exercer, inclusive, uma crítica social aos costumes e à política da época. O autor nos mostra um herói simplório só na aparência, já que Leonardo é muito vivo e sabe tirar partido das adversidades para buscar aquilo em que acredita. O romance revela um cenário carioca com uma multidão composta por meirinhos, soldados, barbeiros,padres, ciganos, burocratas, costureiras, marujos, boticários, parteiras, beatas, curandeiros, professores,músicos, dançarinos, taverneiros, agiotas, vadios, velhacos, valentões, todos ou quase todos de origem portuguesa, mas já corrompidos pelos costumes do Rio de Janeiro da época. A originalidade da obra de Manuel Antônio de Almeida reside em contar uma história cheia de pequenos golpes, mutretas e espertezas. Curiosamente, como atesta Rui Castro no ensaio introdutório do romance, não se notam nobres, nem escravos e muito menos índios, revelando que o cânone romântico não comportava a obra-prima de Manuel Antônio de Almeida.

Há quem considere Memórias de um sargento de milícias como o nosso romance picaresco. A malandragem que permeia o romance também aparece nas comédias de Martins Pena, outro autor que não se deixa amarrar na estética dominante do Romantismo brasileiro. A menos que possua o livro, evite aquelas edições horrorosas que se usavam na escola, com os desenhos horrorosos da capa. Isso ajudou muito a desmerecer o interesse pelo livro.  O mérito dessas editoras é que foram as únicas, por bom tempo, a lançar livros paradidáticos com preços bem acessíveis. Mas esqueceram o conforto da leitura.

Dedico essa crônica a alguns ex-alunos da Lomba do Pinheiro, que descobriram meu blog, demonstrando-me que ensinar literatura pode render bons frutos.

                                                                   paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um sargento de milícias. SP,Penguin/Companhia, 2013, 270 pp, R$ 24,50

domingo, 16 de março de 2014

O grande Gatsby

Nas noites de verão, a música irradiava da casa de seu vizinho Gatsby. Em seus jardins suntuosos, homens e mulheres iam e vinham feito mariposas entre sussurros , champanhe e estrelas. Nas tardes de maré alta, ele observava os convivas mergulhando no alto de sua balsa, ou tomando sol nas areias quentes de sua praia particular enquanto barcos a motor cortavam as águas, puxando esquiadores aquáticos por entre cataratas de espuma. Nos fins de semana, seu rolls-royce virava um lotação, transportando convidados das nove da manhã até depois da meia-noite, enquanto sua caminhonete zunia feito um inseto amarelo e ligeiro no encalço de trens. E às segundas-feiras, oito empregados, incluindo um jardineiro extra, trabalhavam o dia todo com esfregões, escovas, martelos e tesouras de jardinagem, reparando os destroços da noite anterior.

Nick, o vizinho, é um espectador em busca de um astro. Vê Gatsby, que se interessa por Nick, que fica seu amigo e confidente. Sob os olhos de Nick ficamos conhecendo a história de Gatsby e de como se tornou O Grande Gatsby.
Quanto vale um homem sem o seu dinheiro? Para a sociedade norte-americana da década de 1920, nada. Gatsby, sujeito obscuro, que não se deixa inteiramente conhecer, já que é visto sob o ângulo de seu vizinho,  era de origem humilde e se apaixonara por uma moça rica de Nova Iorque. Ela casa com outro, Gatsby fica rico e decide investir novamente sobre essa mulher. Acaba morto de forma equivocada, tentando protegê-la. É quando Nick percebe que o mundo de pessoas que frequentava suas festas suntuosas, não estavam interessados em nada mais que a futilidade proporcionada pelo dinheiro.

O escritor norte-americano F. Scott Fidgerald (informe-se) fez parte do grupo de escritores norte-americanos que viveu em Paris nas primeiras décadas do século XX, quando os Estados Unidos vivia a grande depressão de 30.

Há duas versões cinematográficas que podem ser encontradas em locadoras, com interpretações diferentes do livro. A de 1974, com Robert Redford, apresenta uma leitura chapada das personagens, criticando a máscara social da sociedade de 1920. A Daisy de Mia Farroll é plana, caricatura da mulher fútil e histérica. A de 2013, com Di Caprio, tem um clima de show bizz (tem até tecnopop como trilha sonora), em que a sociedade hipócrita e oportunista da década de 20 do século passado passa a ser o personagem central. A Daisy de Carey Mulligan é esférica, não se deixa conhecer de todo. Primeiro, você deve ler o livro, que é muito melhor. Depois, escolha seus atores preferidos e veja o filme, que é outra linguagem. E depois, empreste o livro aos amigos e, feita as leituras, vão tomar uma cerveja para discutir o livro. É assim que se fazia na década de 80.
Tradução de Vanessa Barbara.
                                                                 paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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F. Scott Fitzgerald. O grande Gatsby. SP, Pinguin Companhia, 2011, 256 pp, R$ 26,50

domingo, 9 de março de 2014

A letra escarlate

"Na cidade puritana de Salém, na primeira metade do século XIX, seus habitantes esperavam um acontecimento grave. Quando a porta da cadeia foi aberta, surgiu na praça uma jovem, que avançou a céu aberto.  Segurava nos braços um bebê de cerca de três meses, Assim que a jovem — mãe dessa criança — se revelou por inteiro à multidão, pareceu ter sido seu primeiro instinto abraçar com mais força o bebê junto ao peito; não tanto por um impulso de afetividade materna, mas como se escondesse um símbolo, o qual vinha gravado ou costurado naquela altura do vestido. No momento seguinte, no entanto, percebendo que não fazia mais do que ocultar de maneira precária um emblema de sua vergonha com outro, ela tomou o bebê num dos braços e, com o rosto queimando, um sorriso arrogante e o olhar de quem não se deixaria humilhar, encarou a gente de sua cidade e os vizinhos que a rodeavam. No peitoral da túnica, em tecido vermelho fino e adornada por um elaborado bordado e fantásticos floreios em linha dourada, trazia a letra A. O emblema fora bordado com arte, exuberância e beleza decorativas, dando a  impressão de um toque final e preciso à roupa que ela usava; roupa que, por sua vez, exibia esplendor conforme ao gosto da época, mas muito além do que permitiriam as normas da colônia no que dizia respeito a ostentação e luxo. A jovem era alta, uma figura de perfeita elegância em todos os sentidos, tinha cabelo escuro e abundante,  e um rosto que causava aquela impressão bem feminina, para os padrões da época; caracterizava-se por certa postura e dignidade. Talvez houvesse nela algo delicadamente doloroso. Seu traje, que, na verdade, confeccionara para a ocasião na própria cadeia, modelando-o bem ao seu gosto, parecia expressar, com insolente e pitoresca peculiaridade, uma postura de espírito, a desesperada temeridade de seu estado de ânimo. Mas o detalhe que atraía todos os olhares e, como era de esperar, transfigurava sua portadora — a ponto de homens e mulheres para quem ela fora até ali uma presença familiar agora a olharem como se pela primeira vez — era aquela letra escarlate, tão magnificamente bordada e iluminada em seu peito. Funcionava como um feitiço, apartando-a das relações humanas ordinárias para encapsulá-la numa esfera própria. O lúgubre oficial de justiça fez um gesto com o bastão, para abrir caminho. Chegara a hora em que a virtuosa colônia de Massachusetts, onde a justiça se faz à luz do sol visse a jovem mulher exibir sua letra escarlate na praça pública, expondo, assim, sua vergonha."

O que acontecera é que essa mulher era casada com um homem tido como honrado, ainda que não tivesse aparecido ainda na cidade, pois a mulher tinha vindo antes dele para Salém. Como tivera um filho, certamente não seria do marido. Agora, em praça pública, querem que ela revele o nome do pai da criança. Mas ela se cala, como gesto de proteção.

Percebe-se no trecho narrado acima, que estamos diante de uma obra romântica: dignidade, beleza física, recato. O romance retrata o adultério na sociedade puritana do século XVIII. A letra escarlate, entretanto, é uma obra muito mais complexa. Os puritanos insistem numa sociedade absolutamente pública, porque acreditam necessitar de toda a energia de cada indivíduo na tarefa de estabelecer uma colônia duradoura. Segundo esse ponto de vista, a sociedade e a própria civilização seriam incompatíveis com a privacidade.  Para isso, os puritanos precisam manter cada aspecto da vida das pessoas sob controle.Tal objetivo é incompatível com a permissão de que os indivíduos tenham vida privada ou existência íntima.  Para os puritanos, o adultério é um pecado aos olhos de Deus e, consequentemente, considerado um crime. Mas a questão importante na história não é o pecado, mas a maneira como a crença de que é conduz os puritanos a certas ações que, por sua vez, afetam pessoas que mantêm opiniões diferentes sobre o adultério.  Embora Hester, a adúltera, sofra enormemente pela vergonha de sua desonra pública e pelo isolamento que seu castigo impõe, jamais consegue aceitar, no íntimo de seu coração, a interpretação puritana para seu ato. Mantém, assim, seu amor próprio e sobrevive à sua pena com dignidade e caráter cada vez mais fortalecido.

A tradução é de Christian Schwartz.

                                         paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Nathaniel Hawthorne. A letra escarlate. SP, Penguin Companhia, 2010, 336 pp, R$ 29,00

domingo, 2 de março de 2014

O coronel Chabert

O coronel Chabert é uma novela curta de Balzac, que você vai ler de um fôlego só, pois é envolvente e criativa. Conta a história de um homem considerado morto perante a justiça,  que busca readquirir sua identidade e a fortuna que perdeu para a mulher, oficialmente viúva e casada com outro homem, com quem teve dois filhos. Chabert procura o advogado Derville para lhe contar sua história e como se tornou um morto-vivo esfarrapado e faminto. O advogado se interessa pela história de Chabert, adiantando-lhe pequena soma em dinheiro para que o defunto sobreviva, enquanto investiga os fatos. Essa investigação acaba revelando muitas surpresas, mas o básico é o uso do dinheiro como o único meio para subir na sociedade burguesa da época.

Chabert, o defunto, conta ao advogado que comandava um regimento de infantaria ligado ao imperador Napoleão Bonaparte, que tinha o maior apreço por Chabert. Numa batalha contra os russos, quando voltavam para junto do imperador, depois de dispersados os russos, Chabert e seus comandados toparam com um batalhão do exército inimigo. Deu-se a batalha e Chabert acabou ferido por uma espada na cabeça e dado como morto junto com outros tantos soldados franceses. Enterrado em uma vala comum com os outros mortos, Chabert recobra os sentidos pouco depois, mas seu atestado de óbito já havia sido feito conforme as regras estabelecidas pela jurisprudência militar.

Chabert se esconde na Alemanha, onde é resgatado por um casal de camponeses que tratam de seu ferimento e lhe dão roupas para vestir. Quando regressa a Paris é que descobre que é um morto-vivo, e todos passam a desacreditá-lo. Sua esposa, agora oficialmente viúva, herdou dele grande quantia em dinheiro e não lhe quer dar um tostão sequer.  Derville lhe diz que a esposa o havia procurado justamente para tentar negar a existência de Chabert. Muitas coisas mais acontecem, a partir daí.

O coronel Chabert tem tradução de Eduardo Brandão
                                                                  paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Honoré de Balzac. O coronel Chabert. SP, Penguin/ Cia das Letras,  2012, 88 pp, R$  14,90