sábado, 29 de junho de 2013

O primeiro e o segundo homem


Luiz Sérgio Metz nasceu em Santo Ângelo, RS, em 1952 e faleceu prematuramente em Porto Alegre, em 1996. Militante político desde jovem, era jornalista, trabalhou na Secretaria Municipal de Cultura, em Porto Alegre e atuou efetivamente no mundo do nativismo. Passou a infância e a adolescência na região das Missões sul-riograndenses, terra marcada pela vida guarani, antes e depois dos jesuítas, por lutas de fronteira e grandes fazendas de gado, pelo plantio do soja na década de 60, que encolheu a economia das fazendas, forjando o gaúcho a pé, o peão sem emprego e sem cavalo, forçado a migrar para os centros urbanos sem especialização técnica para o trabalho na indústria; terra vizinha ao famoso rio Uruguai, donde na outra parte encontra-se o território argentino. É desse ambiente que brotam os seres e o universo dos contos de O primeiro e o segundo homem, o leitor irá encontrar histórias, a maioria delas trágicas, contadas em tom poético, do nascimento de Sepé Tiaraju, considerado santo popular, gerado de uma índia com o espírito santo; o êxodo de uma família de agricultores que se desfizeram do pouco que tinham para tentar a vida em Porto Alegre; lembranças do jogo de bolitas; um roubo de carga de soja e o emprego de tratorista foi o pretexto para um homem ser morto por vingança, para que o cargo de tratorista fosse dado a outro; o duelo de facão que resulta na morte de dois homens numa noite de lua cheia; um catador de lixo judia de uma cadela prenha o assunto acaba em morte; a morte de um taipeiro com o rosto deformado pelo ofício de foguista assemelha-se à caça de um tatu; a paixão de um menino pequeno pelo canto dos pássaros que inventava;
Luiz Sérgio publicou ainda a biografia de Aureliano de Figueiredo Pinto, o relato de uma viagem que fez a cavalo com três amigos por terras rio-grandenses em Terra Adentro e a novela considerada sua obra-prima: Assim na Terra.
                                                                            paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Luiz Sérgio Metz. O primeiro e o segundo homem. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 2001, 112 pp, R$ 26,00

sábado, 22 de junho de 2013

Vozes do deserto

O Califa de Bagdá, traumatizado com a traição da mulher com um escravo, a cada noite deitava-se com uma mulher diferente, que acabava matando, após o coito, como forma de vingança contra as mulheres e também como forma de não vir a se apaixonar novamente. Certa noite, uma das mulheres a ser condenada à morte decide salvar sua vida, contando ao califa uma história que se interrompe no clímax, para que na noite seguinte ele possa chamá-la novamente sob o pretexto de continuar a história. O nome dessa mulher: Scherezade. Esse é o mote para a monumental compilação de histórias árabes denominada Livro das mil e uma noite, com contos de origem síria e egípcia que todos conhecemos.

Nélida Piñon reconta a história de Scherezade de forma surpreendente, em Vozes do deserto, romance que lhe deu o Prêmio Jabuti de 2005. A moça do romance não teme a morte. Não acredita que o poder do mundo representado pelo Califa decrete por meio da morte o extermínio da sua imaginação. Quer ser a única capaz de interromper a sequência das mortes dadas às donzelas do reino. Não suporta ver o triunfo do mal que se estampa no rosto do Califa. Quer opor-se à desdita que atinge os lares de Bagdá e arredores, oferecendo-se ao soberano em sedicioso holocausto.

A dor do Califa, entretanto, não provém de um amor ofendido. Há muito deixara de querer a esposa que o traíra miseravelmente no passado. Nunca a amou de verdade. Por ter a liberdade de se relacionar com várias mulheres, habituara-se ao fulgor do desejo apenas. Ou de exercitar suas fantasias sexuais com a pretensão de atingir a cópula perfeita. A solidão do Califa persistia, a despeito do séquito das virgens que se sucediam em seu leito e que ia sacrificando a cada dia. E nunca tendo com quem dividir suas desventuras, ia guardando em segredo suas desilusões. Diferente dos demais mortais, protegia-se das intempéries enviando os súditos ao cadafalso.
Atento, ele registra como a jovem fomenta as emoções. Tarda em encomendar a morte de Scherezade. Inquieta-o que use as histórias da jovem como pretexto para mantê-la ao seu lado. Admite que a fantasia daquela contadora de histórias lhe azeita o corpo, e suas palavras, às vezes cultas, quase sempre de raiz popular, suspendem as noções que tivera até então de realidade. Para ela, era mister ao Califa vir a amar. Submeter-se à carne abandonada e abandonar por instantes o infortúnio alheio, presente em suas fantasias. Suspender o indomável instinto narrativo para transformar-se afinal em personagem do próprio destino. Nélida Piñon vê essa mulher que atravessou mil e uma noites contando histórias ao Califa, poupando a vida de mil e uma outras mulheres. Interiormente, mostra uma mulher forte e delicada, a mulher de quem a fabulosa criação oriental nos dera apenas o vulto escondido entre as dobras do véu muçulmano. A autora nos revela em sua história a natureza profunda de Scherezade. Desejosa de romper o sexo sem amor, obscenamente mecânico imposto a ela, que era possuída e não amada, com a sede da palavra. É esse desejo que salva a narradora e todas as mulheres pelos quais ela se sacrifica.
Quem tem ouvidos, ouça! Através dessa obra, Nélida Piñon reinventa o fascínio das Mil e Uma Noites. Este é mais um livro excelente e recente, que se encontra esgotado. Mas há em sebos virtuais com o preço médio de 15 reais um exemplar em bom estado
                                                                      paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Nélida Piñon. Vozes do deserto. Rio, Record, 2004. 354 pp

sábado, 15 de junho de 2013

Livro das horas

Livro das horas é a publicação mais recente de Nélida Piñon (1937). É um livro de memórias, carregadas de imagens poéticas. Prosa deliciosa que nos faz parar frequentemente para refletir sobre as colocações que a autora brasileira faz sobre o fato de existir.

Nélida Piñon é escritora desde o berço. Ao abrir os olhos, jurou ter fé nas palavras, com elas contar uma história. Este ofício lhe compromete com a fala poética, com o discurso do mistério, com o coração da língua. Mas, na condição de aprendiz, rastreia o transcurso literário dos antecessores, a fim de saber onde eles estiveram e ela não está. A quem eles amaram, ela não amou.
Não tem filhos, mas tem a nós, leitores capazes de defender a civilização contra o avanço da barbárie. A nós, nomeia sucessores de uma linhagem irrenunciável. E, embora duvide às vezes se vale defender alguns princípios hoje contestados, persiste em inscrever certas normas no código dos direitos humanos. Não nos conhece e nem sabe onde vivemos, mas pensa um dia convidar-nos a sermos parceiros, sócios, aliados das suas aventuras narrativas. A nos conhecer pessoalmente, trazendo debaixo do braço algum romance de Machado de Assis. E que vejamos como é a aparência de quem se habituou a registrar os enredos que também vivemos junto com nossas famílias. Instalados em sua sala da Lagoa, ela nos ofereceria um guaraná Antarctica, um cafezinho, e biscoitos de polvilho. Juntos, mergulharíamos nas águas barrentas das palavras, no redemoinho vertiginoso das emoções, nas trevas perturbadoras dos sentimentos ainda sem nome e definição precisa, sem que atropelemos a palavra do outro para impor a nossa. Para exercitarmo-nos a ouvir o que o outro tem a dizer.

Nélida Piñon nos conta que, a cada dia, aprende a perder as pequenas utopias e os ideais indomáveis. Não lamenta viver sem eles. Sente-se mais leve sem o fardo que representam. É impossível servir aos deuses e a ela mesma. Além do mais, perder bens que julgávamos eternos significa estarmos aptos a adquirir, no futuro, haveres que só a fantasia enxerga. É como destilar a solidão que é vida também. Enquanto escreve, ela se resigna em dissolver as ideias que nunca foram suas. Por que padecer pelo que não sabe contar? Ou desesperar-se pela narrativa que viceja alhures e aguardar que algum adorno estético da historia lhe transfigure de repente? Afinal, ela diz, o fracasso literário é didático, impõe a criação de um outro acervo constituído de experiências, lamúrias, segredos, reavaliações. Uma técnica com a qual a vida ensina a que se reabilite no futuro um livro previamente condenado. Acaso ocorre o mesmo com o amor e a morte, sempre iminentes? Devemos ler esse livro maravilhoso para respondermos.
                                  paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Nélida Piñon. Livro das horas. 2ª Ed., SP, Cia. das Letras, 2012, 208 pp., R$ 39,90

domingo, 9 de junho de 2013

Tratado ontológico acerca das bolas do boi

 Otacílio leva muito a sério as comemorações do 20 de Setembro. Sente-se honrado em protagonizar a festa, em manter a tradição. Muitos não vão por falta de dinheiro pras pilchas ou pras cordas, ou, pior, por falta de cavalo. Sem estarem completos, têm vergonha de desfilar; não estando completos, têm vergonha de pedir emprestado o que lhes falta. No afã de conseguir um cavalo, Otacílio pensa em tudo, até em roubar um, se for o caso. Esse é o mote para a estória do gaúcho depois do gaúcho a pé, contada pelo alegretense José Carlos Queiroga em Tratado ontológico acerca das bolas do boi.

Não há nada no mundo igual ao pampa. Otacílio jamais ultrapassou os limites da Serra do Caverá (fica no município de Rosário do Sul,RS). Para ele, a juventude passou mais rápido como enterro de pobre, de à cavalo, correndo ao costado do touro e soltando o laço nas aspas, maneando o animal com as duas mãos, fazendo-o virar cambota na cancha. Hoje, destituído de cavalo, é peão de lavoura. Mora num barraco com a mulher e a filha pequena no interior do município e trabalha numa lavoura de arroz. Na época do trabalho duro, consegue ver a família uma vez só, a cada quinze dias, na entressafra. Otacílio, sem cavalo no mundo, sente um vazio de boi de canga, carregando o mundo nas costas, mas fora do aconchego do mundo que sempre foi o seu e agora lhe tomam:trabalha no arroz feito um pato dentro d’água; em casa, a mulher em mágoa pela carestia de tudo. Otacílio é um homem simples, analfabeto (mas não pras coisas do campo, que isso ele entende muito bem!), tem vida simples, sonhos simples, crenças simples, elementares. Se lhe dizem que o fogo aquele que “nunca acaba” nunca apagou desde 1835, ele acredita, sem qualquer fagulha de dúvida, porque é simples.  
Assim como todo mundo, Otacílio já ouvira falar do Movimento Sepé Tiaraju, e sempre mal. É ajuntamento de bandido, que se acolhera pra roubar a terra dos outros; que vão invadindo, cortando cerca. Um  fazendeiro lhe disse que os que mandam no movimento vão para as vilas e arrebanham só a ralé, os borrachos, os bandidos, e os levam de arrasto com promessa de virarem proprietários, patrões, pras beiras das estradas, esperando a hora de dar o bote. Otacílio, entretanto, se interessa pouco por isso, o que ele quer é conseguir um cavalo para poder desfilar no dia 20 de Setembro.
Tratado ontológico acerca das bolas do boi é um romance em retalhos. O périplo de Otacílio pelo pampa sem cavalo e sem terra é recortado por explicações filosóficas e históricas sobre as transformações que sofreram o campo gaúcho com o surgimento do agrobusiness, contadas de forma divertida, mas com fundamentação científica. O livro de Queiroga faz uma análise do movimento dos sem-terra, por exemplo, sedimentada numa ontologia histórica, para exemplificar o que acontece quando se modifica a ideia de que no pampa, as coisas são e pronto, de que desde que o mundo é mundo, o gaúcho vive no lombo do cavalo, que é de onde tira seu parco sustento, cuidando de gado alheio. O pobre Otacílio luta contra os tempos modernos para manter a tradição, numa batalha perdida, num mundo sem cavalo. Tirar-lhe o bicho é como capá-lo a bordizo, a torquês retorcendo o corte por dentro.
Trata-se de um livro diferente. Com um pouco de paciência o leitor desfrutará de uma leitura inteligente e divertida. A obra encontra-se esgotada. Você a encontrará nos sebos virtuais por um preço médio de R$ 30,00.

                        paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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José Carlos Queiroga. Tratado ontológico acerca das bolas do boi. Passo Fundo, Méritos, 2004, 528 pp

 

 

domingo, 2 de junho de 2013

Berlim Alexanderplatz

Após passar quatro anos na prisão pela morte da mulher que ele prostituiu e depois feriu mortalmente numa briga, Franz Biberkopf, homem rude, de aparência repulsiva, volta às ruas de Berlim. Jura a todo mundo e a si mesmo manter-se, a partir de então, um homem decente. Enquanto teve dinheiro, manteve-se assim. Quando o dinheiro acabou, entretanto, foi mostrando gradativamente o homem que realmente era. Biberkopf jurou ser um homem decente, mas isso foi uma trégua. A vida é um antro de miséria e passa-lhe rasteiras. Depois de ser traído por um amigo, passa a questionar a vida mesquinha e desgraçada, que contradiz todas as suas intenções. Atira-se à bebida. Esse tal amigo o havia atropelado e Biberkopf perdeu um braço. Mas, ele não desistiu. Há uma rápida recuperação, mas acaba envolvido à força em um crime e é obrigado a resguardar-se, para não voltar à cadeia. Apaixona-se sempre por prostitutas e torna-se gigolô das que o amam.  O amigo que o trai continua ligado a ele, pregando-lhe trapaças. As intenções desse amigo traidor são ambíguas.
Alfred Döblin, judeu alemão, escreveu sua obra monumental em 1928, período em que a Alemanha nazista estava tomando forma. Mas Berlim Alexdanderplatz não deve ser visto por esse viés que empobreceria a obra. O romance cria uma ilusão sobre a realidade, distorce-a, transgredindo a vida. De tons expressionistas, mostra um personagem que sofre um golpe atrás do outro e segue adiante, sem que consiga questionar como e por que é manipulado pelas pessoas. O cineasta Rainer Werner Fassbinder filmou uma série baseada no livro de Döblin, mantendo-lhe o tom expressionista e teatral. A obra gravada para a tevê está dividida em 13 capítulos e um epílogo. Foi restaurada pela Versátil e pode ser encontrada em locadoras (a Espaço Vídeo de Porto Alegre tem). Entretanto, a visão de Fassbinder sobre Berlim Alexanderplatz é uma outra ilusão sobre a vida, igualmente interessante.

A tradução brasileira é de Lya Luft pela Editora Rocco, mas encontra-se esgotada. Há uma edição da Martins Editora, que eu não conheço a tradução, por $66,90. Você consegue um exemplar novo da Rocco por 35 reais no sebo virtual.

                                                                             paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Alfred Doblin. Berlim Alexanderplatz. Rio, Rocco, 1995, 436 pp.