domingo, 25 de dezembro de 2011

A Camareira

Linda, 30 anos, solteira, solitária, parece não saber quem é. Diante do espelho nunca encontra a si mesma. Não sabe por que está viva. Um dia, conseguiu trabalho num hotel. De repente, acrescentou um passatempo a seus afazeres: visitar os quartos, mesmos os desocupados, examinando cada marca deixada pelos que se iam, dando vida às coisas imaginárias. A partir daí, passou a bisbilhotar os quartos dos hóspedes na ausência desses. Certa vez, enquanto mexia nas roupas de um hóspede, ele chegou. Subitamente, ela estava embaixo da cama. O medo de ser descoberta a fascinou. No dia seguinte, quando saiu do quarto, percebeu que havia encontrado um sentido na vida. Passou a fazer isso de forma cotidiana. Uma vez o homem recebeu uma prostituta. Linda se apaixonou pela voz de Chiara, seu nome, quis conhecer seu rosto. Durante a manhã, quando saía do apartamento, pegou o número do telefone que Chiara havia deixado sobre a mesa. Passaram-se uns dias e ela criou coragem para lhe telefonar. Marcaram um encontro. Acabaram transando. Quando a prostituta saiu, Linda sentiu curiosidade de saber como seria Chiara verdadeiramente. Como ela lhe havia dito que haveria outro encontro com aquele homem no mesmo quarto, nesse dia Linda chegou antes, como de costume, e pôs-se debaixo da cama à espera. O homem chegou e foi para o banho. Enquanto isso, Linda investigou sua bolsa e encontrou uma foto de um homem com uma mulher, provavelmente sua esposa? Na manhã seguinte, Linda seguiu o homem até sua casa no subúrbio. Dias depois, resolveu ir até lá, enquanto o homem estava com Chiara, para contar a verdade à mulher. Mas não conseguiu. Ao sair, desnorteada, quase é atropelada por um carro. O carro parou na casa da mulher. Seria seu amante? Um dia, Linda viu-se obrigada a tirar férias. Paremos aqui, para não estragar o final da história.
Markus Orths é um escritor alemão nascido em 1969. Todos os seus livros publicados receberam diversas distinções. No Brasil, a única obra traduzida até o momento é este A Camareira, que você vai devorar de uma sentada.
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Markus Orths. A Camareira. Porto Alegre, LPM, 2010, 136 p.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O Ofício de Viver

O italiano Cesare Pavese (1908-1950), poeta e romancista, manteve uma atividade intelectual antifacista. Quando o regime fascista fechou a revista em que trabalhava como seu diretor, Pavese foi desterrado no sul da Calábria (1935-36), onde começou a escrever O Ofício de Viver, diário pessoal que acompanha os últimos quinze anos de sua vida. Entretanto, seu posicionamento político nunca apareceu em sua escritura. Nas páginas de seu diário, todo ele escrito na primeira pessoa, afloram tensões obscuras centradas na dificuldade das relações entre os sexos que explodem numa tragédia final, transmitindo um sentido desolado de inutilidade da vida.
Em suas páginas encontramos considerações sobre sua poética, leituras críticas de outros escritores, lado a lado com desabafos e lamentos inflamados sobre sua vida pessoal e suas desilusões amorosas, acompanhados de reflexões sobre a morte, intimamente associado à idéia de suicídio. Dado como encerrado pelo autor cerca de uma semana antes da morte, e por ele próprio assinalados pelos limites cronológicos 1935-1950, constitui, assim, a evidência da trágica decisão consciente e antecipadamente tomada, e que vem ganhando corpo ao longo dos anos, de pôr termo à vida. No diário não há descrições nem alusões ao lugar em que se encontra. Referências a acontecimentos políticos também não se registram. O que se acentua em suas páginas é o clima de solidão. É a sua vida interior e a imagem da sua profunda angústia de viver.
Sobre as mulheres, que são a fonte direta de seu sofrimento, nada revela, nenhum retrato faz delas. São impessoais, despidas de sentimentos e movidas apenas por interesses, quase desumanizadas. O seu destino de perdedor em relação às mulheres tem como marco um acontecimento de 1929, quando ele conhece Tina, comunista e professora e matemática. Ela tivera uma enlace amoroso com um intelectual de esquerda. Pavese, entretanto, apaixona-se por ela. Em maio de 1935 a polícia invade a casa dele e encontra as cartas desse intelectual endereçadas a Tina. Pavese, para agradá-la, aceitara que a correspondência fosse enviada a sua casa. Quando ele regressa do exílio da Calábria, Tina já estava casada. O choque foi muito forte para ele. Jamais conseguiu compreender a atitude dela. A partir de então, Pavese torna-se, como ele mesmo diz de si mesmo no diário, um misógino. As mulheres nunca transmitem uma idéia afetiva, antes de decepção. Passam a representar para ele apenas um objeto de que se desfruta por breves momentos.
Pavese cultivou a idéia do suicídio ao longo de toda a vida, associando-a constantemente ao tema do amor. A autodestruição identifica-se com uma vida que para ele parece de pouca importância, apesar da consolidação do seu sucesso na carreira editorial e na de escritor. A 18 de agosto de 1950, quando ingere os soníferos que o libertariam de viver, escreve as últimas palavras do seu diário: “Tudo isto é asqueroso. Palavras, não. Um gesto. Não escreverei mais.”
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Cesare Pavese. O Ofício de Viver. Lisboa, Relógio D’água, 2004. 404 pp

Além de O Ofício de Viver, Pavese tem os seguintes livros traduzidos para o português:
Diálogos de Leucó. Ed. Cosac Naify. Em 27 de agosto de 1950, quando foi Cesare Pavese encontrado morto em um quarto de hotel em Turim. Ao lado de seu corpo, havia apenas um livro, 'Diálogos com Leucó', no qual escreveu suas palavras de despedida. Escritos em sua maioria entre 1943 e 1946, estes 'Diálogos' entre seres da mitologia grega versam sobre o que Pavese considerava as questões fundamentais da existência humana - o destino, a violência, o amor, a morte, a poesia.
Trabalhar cansa. Ed. Cosac Naify. Poesia. Com um verso mais narrativo, aberto à prosa da vida cotidiana, o autor retratou as noites insones das cidades, as figuras de proletários, camponeses, prostitutas, bandidos, bêbados e mendigos vivendo seu drama diário.
A lua e as fogueiras. Ed. Berlendis & Vertecch. Publicado originalmente em 1950, 'A lua e as fogueiras' é o último e mais bonito romance de Cesare Pavese. Nele, o personagem central retorna rico à cidade de Santo Stefano Belbo, de onde partiu ainda jovem para "fazer a América", pretendendo usufruir uma vida abastada. Não é mais o rapaz obrigado a trabalhar nos campos, mas um homem maduro que agora pode ser um patrão. Numa paisagem em que, aparentemente, nada mudou, encontra tudo transformado. Não só pela passagem do tempo e pelas transformações históricas, mas, principalmente, porque ele próprio mudou. Outro tema típico de Pavese aqui se repete - o retorno com o pensamento à vida de jovem, mas sob a luz dos novos tempos, em busca da identidade do protagonista com um mundo que, obviamente, se transformou. Mas a narrativa demonstra que a busca da identidade não se resolve com o retorno do protagonista ao paese, à sua terra natal. Este se descobre ainda um expatriado, em uma contínua busca de contato com as suas raízes e com seu passado infantil, situação que, no plano biográfico, também era a de Pavese que, não por acaso, situa a história na mesma Santo Stefano em que nasceu.
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Meu agradecimento especial à tradutora Margarida Periquito, pelas informações imprescindíveis.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Do amor e outros demônios



Do amor e outros demônios foi escrito pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez em 1994. Sierva Maria, filha de um casamento sem amor, é criada pelos escravos negros da propriedade onde vivia. Aos 12 anos é mordida por um cão raivoso e isso acaba trazendo preocupações a seu pai, que acreditava que a menina pudesse, então, estar possuída pelo demônio. A partir daí, aproxima-se mais da filha, busca ajuda de um médico ateu, do bispo da região, que lhe apresenta um padre exorcista que acaba, no decorrer da história, apaixonando-se pela menina. Sierva Maria é internada num convento, a pedido do bispo, onde passa a sofrer uma série de torturas. A novela tem um final trágico. Alguns personagens da história:
Sierva María – nasceu no dia 07 de dezembro, dia de Santo Ambrósio (o santo que, segundo a tradição, pregava a importância da virgindade e do culto à Virgem Maria). Nasceu de 7 meses, com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Quase morreu, mas foi salva por Dominga Del Adviento, uma escrava, que prometeu a seu santo de guarda que, se ela vivesse, seu cabelo não seria cortado até que se casasse. Por isso, tinha imensa cabeleira que caía-lhe aos pés. Herdou do pai a timidez e o isolamento. Seu modo de ser era tão sigiloso que parecia uma criatura invisível. Analfabeta até a adolescência, assimilou a cultura dos negros, com eles convivendo por quase todo o tempo, até que seu pai a trouxe para dentro de casa e tratou de civilizá-la. Era chamada entre os negros de Maria Mandinga. Ao ser mordida por um cão raivoso, surgiram suspeitas de que estaria possuída pelo demônio. Foi internada no convento das monjas “enterradas vivas”. Tinha acessos de fúria quando tentavam tirar seus colares de yorubá do pescoço. Algumas monjas, escondidas, aproximavam-se dela para pedir-lhe favores impossíveis, como se fosse uma santa.
Ygnacio – pai de Sierva Maria, era um homem débil desde a juventude. Custou a aprender a ler e escrever. Cresceu com certos sinais de retardo mental. Seu primeiro sintoma de vida fui quando se tomou de amores por Dulce Olívia. considerada louca. Foi a primeira paixão platônica de Ignacio. Correspondiam-se por bilhetes. Quando Ignácio decidiu casar-se com ela, o pai o desterrou em uma de suas fazendas. Mais tarde seu pai ameaçou-o com clausulas testamentarias, obrigando-o a casar-se com Olalla, uma mujer bela e com muitos talentos. Foi um casamento sem sexo. Olalla intentou vencer o obstáculo através da música, mas morreu fulminada por um raio sem consegui-lo. Mais tarde é obrigado a casar-se com Bernarda, mulher que odiou a vida inteira.
Bernarda – mestiça, seduziu Ignacio até fazer sexo com ele. Engravidou e a situação o obrigou a casar-se com ela. Foi um casamento cercado de ódio. Bernarda não amava a filha, antes tinha-lhe temor. Com um furor insasiável de sexo, comprou um negro, Judas, que se tornou seu amante, sem que Ignacio se opusesse. Quando soube que a filha havia sido internada no convento, abandonou o marido, levando o que pôde de riqueza desses 12 anos de má convivência.
Cayetano deLaura – padre exorcista chamado para exorcizar Sierva Maria, mas acaba apaixonando-se por ela. Dialogava muito sobre a menina com o bispo (havia fuxicos de que Cayetano seria seu filho ilegítimo) e com o médico Abrenúncio. Um dia disse ao médico que no seminário lhe haviam proibido um livro e ele ficara curioso de saber o nome da obra. O médico lhe diz que o livro era o Amadis de Gaula, que conta o relato dos amores furtivos entre um rei e uma infanta, que deram lugar a uma criança abandonada numa barca. A criança, Amadis, é criada pelo cavaleiro Gandales. Mais tarde, Amadis vai em busca das suas verdadeiras origens, o que o leva a meter-se em fantásticas aventuras, sempre protegido pela feiticeira Urganda e perseguido pelo mago Arcalaus, o encantador. Passa por todo o tipo de perigosas aventuras, pelo amor da sua amada Oriana. Nas versões iniciais, a união dos dois tem fins trágicos.
Médico Abrenúncio – solteiro, judeu, ateu. Quando Ignácio internara a filha no convento para o exorcismo, foi contra. Achava que as feitiçarias dos negros sacrificavam animais, enquanto a igreja sacrificava pessoas. Abrenúncio é importante na narrativa, porque em sua conversa com Delaura sobre a possessão de Sierva Maria, consegue fazer ver a Delaura, que este está apaixonado por ela. Sierva Maria, assim, é o demônio do amor que ele não precisaria exorcizar.
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Garcia Marquez. Do amor e outros demônios. 9ª ed, Record, 1996.
García Marquez. Del amor y otros demónios. 16ª ed., Debolsillo, 2009

domingo, 4 de dezembro de 2011

Terra nostra, de Carlos Fuentes



John Elliot, no prefácio à edição de Terra nostra pela editora Seix Barral, escreve que o romance está impregnado de um sentido de passado. A estória rica e complexa de Fuentes, tem como tema a História. O autor, como historiador, busca evocar o passado, ao mesmo tempo que o interpreta. A novela de Fuentes tem como intuito trazer a influência do passado no presente e interpretá-lo em relação ao futuro. O presente, igualmente, influencia na forma como se vê e se compreende o passado. O historiador, ou o narrador ou o cronista do enredo múltiplo (são várias historias que se misturam), é o guardião da memória. Aquele que escolhe recordar do passado o que sobrevive e dá forma a um futuro.
Terra nostra apresenta um México nativo do autor como uma nação resultante da contundente imposição da civilização espanhola do século XVI às civilizações astecas e maias. As civilizações hispânica e indígena têm pontos de vista diferentes sobre o tempo. Para os habitantes do México prévio à conquista, o tempo era cíclico; para os espanhóis da era do Renascimento e da Contrarreforma, o tempo era linear, culminando na grande apoteose do Juízo Final.
El Escorial, palácio mandado construir por Felipe II é central na história, porque dali a Espanha trata de impor sua visão de mundo a um México conquistado. A Espanha que subjuga e coloniza o México é a rígida e intolerante Espanha da Contra-Reforma.
A história de Terra nostra, a fábula, é o destino de três irmãos, filhos bastardo do Senhor (Felipe II), todos com uma cruz vermelha nas costas e seis dedos em cada um dos pés. Na primeira parte da obra, El viejo mundo, passa-se na Espanha, quando o rei discute com seu cronista os valores da existência. Fuentes incorpora no enredo figuras desse mundo, a partir de A Celestina, de Fernando de Rojas, Don Juan, de Tirso de Molina e Don Quijote, de Cervantes. A Celestina é obra de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Nela são retratados os vícios e defeitos de uma sociedade moralista. A Celestina é uma alcoviteira e dona de prostíbulo, que amarra casamentos à base do dinheiro. Acaba, assim, juntando Calisto e Melibea, que representam a paixão descontrolada e destrutiva, alheios à razão. Don Juan, o burlador de Sevilla, apresenta o comportamento imoral de um homem que seduz as mulheres com falsas promessas de casamento, com a finalidade única de fazer sexo com elas e depois abandoná-las. Don Quijote é a história por demais conhecida, do cavaleiro da triste figura. Em Terra nostra, as personagens dessas três obras se misturam e passam a refletir a moral oficial deformada da Igreja e dos poderosos da época.
Na segunda parte do romance, El mundo nuevo, o cenário é o México da época do descobrimento da América pelos espanhóis, o confronto do tempo cíclico dos selvagens, com a realidade linear dos descobridores. Carlos Fuentes narra o mito de Quetzalcóatl, uma mistura de ave plumada com serpente, venerada pelos astecas e mais. Quetzalcoatl representa as energias telúricas e também a vida, a abundância da vegetação, o alimento físico e espiritual para o povo. Posteriormente passou a ser cultuado como deus, representante do planeta Vênus, correspondendo à noção de morte e ressurreiçao. Uma das representações desse deus, segundo fontes orais, seria a de um homem branco, barbudo e de olhos claros. Alguns historiadores acreditam que os astecas viram no explorador Hernán Cortés a figura de Quetzalcoatl, o que teria facilitado a subjugação espanhola sobre os povos nativos do México.
A terceira parte, El otro mundo, volta à Espanha da Contra-Reforma, mas dá saltos no tempo em relação ao passado, presente e futuro. Surge a história da formação da Itália e sua constituição política, surge o México dos caudilhos, Paris dos fugitivos políticos. Há uma passagem interessante de Ludovico, quando este regressa do Novo Mundo e conversa com o Senhor Felipe II e este lhe pergunta: “Então, triunfaste tu. O sonho foi realidade”, ao qual Ludovico responde: “Não, Felipe, triunfaste tu, o sonho foi pesadelo. A mesma ordem que quiseste para a Espanha foi trasladada à Nova Espanha, as mesmas hierarquias rígidas, vesticais, o mesmo estilo de governo. Para os poderosos, todos os tipos de direitos e nenhuma obrigação; para os fracos, nenhum direito e todas as obrigações. O novo mundo foi povoado por espanhóis enervados pelo luxo inesperado, o clima, a mestiçagem, as tentações de uma injustiça impune”.  Eu li Terra nostra no original, mas há a tradução de Olga Savary pela Nova Fronteira, 1982, que se pode garimpar nos sebos. É um livro pesado, exige alguma pesquisa paralela à leitura, mas é de leitura enriquecedora, se tivermos um pouco de paciência.
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Carlos Fuentes. Terra nostra. Barcelona, Seix Barral, 2003. 796pp

Fernando de Rojas. A Celestina. Porto Alegre, LPM, 2008
Tirso de Molina. Don Juan, o burlador de Sevilha. Brasília, Círculo de Brasília, 2004
Cervantes. Dom Quixote. Porto Alegre, LPM, 2005 2vol.