domingo, 26 de março de 2017

45. Grande sertão: veredas

Riobaldo, fazendeiro mineiro, conta sua vida de jagunço a um ouvinte não identificado. Trata-se de um monólogo onde a fala do outro interlocutor é apenas sugerida. São histórias de disputas, vinganças, longas viagens, amores e mortes vistas e vividas pelo ex jagunço nos vários anos em que este andou por Minas, Goiás e sul da Bahia. Toda a narração é intercalada por vários momentos de reflexão sobre as coisas e os acontecimentos do sertão.

O assunto parece sempre girar na existência ou inexistência do diabo, já que Riobaldo parece ter vendido sua alma numa certa ocasião. Ele era um dos jagunços que percorriam o sertão abrindo o caminho à bala. Entre seus companheiros, havia um que muito lhe agradava: Reinaldo, ou Diadorim. Conhecera-o quando menino e mantinha com ele uma relação que muitas vezes passava de uma simples amizade. O jagunço, que admirava e cultivava um terno laço com Diadorim, perturbava-se com toda aquela relação, mas a alimentava com uma pureza que ia contra toda a rudeza do sertão, beirando inclusive o amor e os ciúmes.

Nas longas tramas e aventuras dos jagunços, conhece um dos seus heróis: o chefe Joca Ramiro, verdadeiro mito entre aqueles homens, que logo começa a mostrar certa confiança por ele. Isso dura pouco tempo, já que Riobaldo logo perde seu líder, pois Joca Ramiro acabou sendo traído e assassinado por um dos seus companheiros chamado Hermógenes. Riobaldo jura vingança e persegue Hermógenes e seus homens por toda aquela árida região.

O medo da morte e uma curiosidade sobre a existência ou não do diabo toma cada vez mais conta da alma de Riobaldo, evidencia-se um pacto entre o jagunço e o príncipe das trevas, apesar de não explícito. Acontecido ou não o tal pacto, o fato é que Riobaldo começa a mudar à medida que o combate final contra Hermógenes se aproxima. E a crescente raiva do jagunço só é contida por uma relação mais estreita com Diadorim, que já mostra marcas de amor completo.

Segue-se, então, o encontro com Hermógenes e seus homens, e a vingança é enfim saboreada por Riobaldo. Vingança, aliás, que se tornou amarga, já que Hermógenes mata, durante o combate, o grande amigo Diadorim... A obra reserva, nas últimas páginas, uma surpreendente revelação: na hora de lavar o corpo de Diadorim, Riobaldo percebe que o velho amigo de aventuras que sempre lhe cativou de uma forma especial era, na verdade, uma mulher.

Após o sepultamento dos mortos, Riobaldo, cansado e doente, abandona definitivamente a jagunçagem, quase morrendo de doença. Quando sara, reencontra Otacília, com quem já pretendia casar, quando estava no bando. Descobre, ainda, que Selorico Mendes,seu padrinho, fora na verdade seu pai, de quem herda a fazenda onde o herói reside na velhice presente.

Assim a história chega ao fim, com Riobaldo e o interlocutor no ponto de partida.
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João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. 10ª ed., Rio, José Olympio, 1976, 462 pp.

domingo, 19 de março de 2017

44. Pedro Páramo


Juan Rulfo (1918 - 1986), romancista e contista nascido no México, começou a trabalhar em dois capítulos de Pedro Páramo (1955), publicados em revistas literárias. Mais tarde, com auxílio de uma bolsa, pôde concluir a obra, que ganhou dimensões internacionais, tendo sido traduzida em vários idiomas.

O filho de Pedro Páramo, Juan Preciado, vai a Comala para encontrar seu pai. No entanto, essa  jornada tem sua essência na busca de identidade. Comala é um lugar desabitado, cheio de fantasmas, almas perdidas daqueles que lá viviam. Através de conversas com essas almas perdidas, Juan Preciado percebe estar vivendo, com eles, o coletivo passado de Comala e da história de Pedro Páramo, o cacique que fora tão importante para seu povo. O leitor vai perceber, através da trama meio enredada (mas inteligível), que Juan Preciado conversa com Dorotea, a mulher que lhe conta toda a história de Comala e de seu povo, numa situação “real maravilhosa” que não posso contar, para não estragar um ponto que é uma das muitas qualidades da escritura.

A novela de Juan Rulfo tem um estilo surrealista, cuja estética influenciou o real maravilhoso, característica que predominou na literatura latino-americana a partir da década de 40/50. O resultado é uma obra de grande perfeição técnica, que contou com várias versões e títulos anteriores para chegar à final. Graças a este desenvolvimento, a novela tem a particularidade e a singularidade dos personagens fortes, num ambiente fascinante.

A estrutura da narrativa apresenta uma sequência em ordem cronológica  contada em primeira pessoa, por Juan Preciado. Há outra sequencia mostrada em terceira pessoa, narrando  acontecimentos relacionados a seu pai, Pedro Páramo, em certa desordem cronológica. Há, ainda uma terceira sequência, que mistura as duas anteriores.

Juan Rulfo não descuida do contexto histórico e social, fazendo referência à Revolução Mexicana de 1910, num México rural, em que Pedro Páramo é um cacique de um povo tiranizado pelo poder capitalista que se instalou no país a partir do século XX.

Tradução de Eric Nepomuceno
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Juan Rulfo. Pedro Páramo. Bestbolso, 2009, 134 pp   R$ 12,90 

domingo, 12 de março de 2017

43. O Continente - volume 1


                                                                                                

Continente compreende dois volumes iniciais da trilogia O Tempo e o Vento, do escritor gaúcho  Erico Veríssimo (1905/1975). O primeiro volume, que nos interessa aqui, narra o final da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893/1895) e as origens da família Terra Cambará até o momento do conflito. Os liberais apoiadores de Júlio de Castilhos venceram os federalistas de Gaspar Martins e Gumercindo Saraiva, mas em Santa Fé, o universo literário da narrativa épica de Erico Veríssimo, os federalistas só consideram acabada a guerra quando o neto de Bibiana, Licurgo Cambará, dono do sobrado, entregar suas armas. A trama é narrada em contraponto com o início e progressão da povoação do Rio Grande do Sul, na região das Missões, quando o território gaúcho era disputado entre portugueses e espanhóis.  

Quando começa O Continente, o ano é 1895 e a família Terra Cambará está acossada no casarão. Alice espera um filho e passa mal. Todos precisam de água que está no poço no centro da praça, vigiada por pistoleiros dos dois lados. Há um corte no tempo, e o leitor é situado nas Missões Guaraníticas de Santo Ângelo e arredores, então pertencentes à Espanha. Os personagens centrais são Padre Alonzo, que tem um segredo em sua vida pessoal e carrega consigo um punhal. Ele se encarrega da catequização do menino índio Pedro. O padre dá-lhe o punhal de prata, símbolo importante em toda a narrativa, pois atravessará o tempo nas mãos de determinados membros da família Terra Cambará.

Pedro Missioneiro nasce nas Missões Jesuíticas, filho de uma índia estuprada por algum bandeirante. Revela a capacidade de ter visões fantásticas desde a infância. Nessa época, 1745, os Sete Povos das Missões, pertencentes à coroa espanhola, vivem em crescente prosperidade. Com a guerra, Portugal devolve a Colônia do Sacramento à Espanha e recebe em troca o território das Missões, os povoados jesuíticos são destruídos e Pedro foge, sendo descoberto por Ana Terra, ferido, no açude da propriedade da família, paulistas vindos de Sorocaba para povoar o Continente de São Pedro.

A família Terra trata do índio, que se afeiçoa a todos. Um dia Pedro seduz Ana Terra no açude. Ana descobre, pouco depois, estar grávida. Pedro é morto pelos irmãos dela. Pedro Terra nasce. A família não aceita a criança. Num ataque dos castelhanos, todos são mortos, exceto Ana, o filho e a cunhada. Para salvar a vida do filho, ela insiste em ficar na casa, sendo estuprada barbaramente pelos bandidos. Os sobreviventes veem-se ao desabrigo. Ana decide, então, recomeçar de novo e parte com um grupo de colonizadores. Chegam às terras do coronel Amaral, que decide fundar o povoado de Santa Fé. A família Amaral vai se tornar inimiga dos Terra, até o final de O Continente.

Pedro Terra casa-se e tem dois filhos, Juvenal e Bibiana. Quando Bibiana já está moça, surge em Santa Fé o Capitão Rodrigo Cambará, personagem-símbolo do gaudério rio-grandense. Oriundo de Viamão e condecorado nas diversas guerras de que participou, Rodrigo Cambará chega à cidade sem muito propósito, até que põe os olhos em Bibiana e apaixona-se. A paixão é correspondida, mas o irmão e o pai não aprovam a aproximação dela com Rodrigo. Além do quê, Bento Amaral tem pretensões sobre Bibiana, mas a família Terra não o suporta. Há um duelo entre Bento Amaral e Rodrigo Cambará, Rodrigo vence, mas é traído, quase vindo a morrer. Quando se recupera, toma jeito e pede a mão de Bibiana em casamento e o enlace é consentido por Pedro Terra, com ressalvas. Rodrigo, em sociedade com o cunhado Juvenal, abre um armazém na cidade. Mas, com o tempo, se desinteressa pelo negócio, pois gosta de barulho, pelear pelo mundo. Bibiana sofre com as saídas frequentes do marido para outras freguesias. Os dois têm três filhos, Bolívar, Anita e Leonor. Numa dessas saídas para guerrear, Rodrigo acaba sendo morto.

Com a morte do marido, Bibiana vai viver com os filhos na casa do pai, que perde a propriedade para um tal de Aguinaldo Silva, homem enriquecido através de empréstimos a juros. No lugar da casa, Aguinaldo ergue o Casarão, onde se situa o mote central de "O sobrado". Aguinaldo tem uma neta, Luzia, por quem Bolívar se apaixona e os dois acabam casando. Bibiana tem sérios embates com a nora, até que arquiteta um plano para que a família Terra Cambará recupere o Casarão, o que acaba acontecendo.
Durante o confinamento no Sobrado, Alice Terra, casada com o primo Licurgo, está esperando o terceiro filho. Eles já tinham Toríbio e Rodrigo Cambará, que será o personagem principal da  segunda parte da trilogia, O Retrato. Este segundo Rodrigo é diametralmente oposto ao Capitão Rodrigo, por revelar uma personalidade de lisura contestável. Floriano, filho de Rodrigo neto, será o narrador-personagem da terceira parte da trilogia, O ArquipélagoO primeiro volume de O Continente termina com Alice Terra enlouquecendo, enquanto espera, com dificuldade,  para dar à luz.


O plano geral de O tempo e o vento é traçar toda a saga da formação rio-grandense, desde as origens remotas no século XVIII até o ano de 1946, finalizando a narrativa ao encontrarem-se, mais uma vez, o tempo da ficção e o momento presente em que o discurso é produzido.  A estrutura temporal, portanto tem o passado reconstruído como uma possibilidade de esclarecer o presente. Apesar disso, a obra de Erico Veríssimo não é um romance histórico e nem épico, já que a família Terra Cambará declina moral e economicamente, com o passar das gerações.

O Continente apresenta em contraponto o histórico com o social  com seu ritmo próprio e independência em relação ao conjunto do texto. Dentro dessa moldura, desenvolvem-se vários segmentos, com início, meio e fim, contendo, portanto, vida própria e autonomia do âmbito da totalidade da obra. Prova disso é o fato de Ana Terra e Um certo capitão Rodrigo terem sido lançados como romances independentes no mercado editorial.


http://educaterra.terra.com.br/literatura/livrodomes/livrodomes_ocontinente_11.htm

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Erico Veríssimo. O Continente vol. 1. Cia. das Letras, 2004, 416 pp


domingo, 5 de março de 2017

42. A Peste

Albert Camus (1913/1960) nasceu na Argélia, no período, em que o estado africano era colônia francesa. Logo, era um francês nascido na Argélia. Tinha, também, ascendência francesa por parte do pai. Filho de família muito humilde, fez seus estudos em Argel, destacando-se pela inteligência e originalidade na forma de se expressar. Graças a empenho de professores, conseguiu, através de bolsas de estudos, concluir o grau superior em Filosofia. Exerceu a função de jornalista em Argel, até mudar-se para Paris, onde passou a ser reconhecido internacionalmente, por  sua literatura. Camus era também teatrólogo.

Publicado em 1947, A Peste trata do absurdo da existência humana, que se resolve através da solidariedade. A narrativa se passa na Argélia, na cidade fictícia de Oran, onde as pessoas "se dedicavam ao tédio e a criar hábitos". Era uma cidade feia, sem pombos, sem árvores e sem jardins, apenas nos céus se lia a mudança das estações. Durante a manhã de 06 de abril de 1940, surge um acontecimento insólito: começam a aparecer ratos e mais ratos mortos pelas ruas e casas, assustando as pessoas. Era o vírus da peste bubônica que, logo em seguida, começa a dizimar os habitantes de Oran.
A administração pública in­siste em esconder o flagelo, mas a situação se complica e a cidade inteira entra em quarentena,  sitiada. Todos exilados, na condição de prisioneiros.

Quando os portões das cidades são fechados pelo isolamento do mundo, um fato inusitado acontece: os laços de amor e amizade estreitam-se. Um grupo de pessoas se dedicará à luta contra a peste, num enfrentamento resignado e persistente,  travado pelos homens que providenciavam o isolamento sanitário dos doentes e a quarentena dos familiares, assim como um mínimo de atendimento às vítimas da peste.

Uma das figuras solidárias é a do dr. Rieux, ateu, que faz o máximo possível para o bem estar alheio, mas não é visto como herói, faz o que faz de forma gratuita, nada além do estar bem consigo mesmo. O padre Paneloux é outro que se envolve voluntariamente no combate à peste. Ele achava, inicialmente, que a peste pudesse ter sido obra de Deus, para castigar os moradores da cidade. Com o tempo, começa a se opor à ideia de aceitação e submissão, achando aquilo tudo revoltante, sem, entretanto, perder a crença religiosa. Tarrou, um artista revoltado, é um estrangeiro em Oran, atuando lado a lado com o médico, criando abrigos sanitários. Ele se dizia ser um santo sem Deus.

Até que as coisas começam a mudar, a peste regride, os habitantes começam a se recuperar do isolamento e tudo se esquece e os ratos voltam a surgir vivos e espertos. Mas o que Camus desejava, com sua narrativa, é que as pessoas se dessem conta de que a vida, entretanto, não poderia voltar a ser exatamente o que era antes, que destruir é mais fácil que construir E o que se aprende com a destruição, é que colocando-se ao lado das vítimas, pode-se procurar a paz.

Tradução de Valerie Runjanek
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Albert Camus. A Peste. 5 ed, Rio, Record/Bestbolso, 2016, 294 pp