domingo, 26 de maio de 2013

Viagem aos mares do sul

Em Viagem aos mares do sul, José Carlos Queiroga nos apresenta a mesma Nova Hereford que  descrevera em Tratado ontológico acerca das bolas do boi, romance árido e por vezes cansativo, devido às muitas digressões e citações acerca do pampa e da formação da propriedade privada que levou ao movimento dos sem-terras dos dias de hoje. Viagem aos mares do sul  é romance curto. Suas 168 páginas podem ser lidas numa tarde, se você for leitor contumaz.
Nova Hereford é uma cidade imaginária que se supõe ser Alegrete, terra natal do escritor. Trata-se de uma cidade rural decadente dos exilados das faculdades de Porto Alegre. Os filhos dos proprietários de hoje em dia não se interessam mais em levar adiante os negócios agropecuários da família e fogem para a cidade grande. Em Nova Hereford, ao lado de alguns grandes estancieiros, existem as vilas pobres dos trabalhadores rurais desempregados. Os gaúchos depois do gaúcho a pé, conforme diz o crítico literário Marcelo Backes, ao analisar a obra de Queiroga. Lá, todo mundo se conhece. Sirley, nosso protagonista, é um guri bundudo e balofo, com jeito de abobado. Segundo o povo do lugar, um vagabundo que não se forma nunca!  O pai de Sirley é um homem grosso e machista. Tratou as mulheres com quem viveu como bichos. O filho teve o azar de herdar as características sensíveis da mãe e sofre com o silêncio que nunca se rompe na comunicação com o pai. Não queria seguir Agronomia em Porto Alegre, mas segue estudando como forma de buscar uma possível aproximação com o pai. Tem uma namorada na cidade, mas ela parece estar interessada em outro rapaz que mora ali. Um dia vai com a namorada e a mãe dela, entrosada em uma entidade filantrópica, visitar os bairros distantes, onde reina a miséria. Sirley chega a comover-se com isso, mas sua vida desinteressante não lhe permite formar opinião a respeito. É um perdido que não consegue vislumbrar uma saída para sua vida.
Viagem aos mares do sul foi publicada pela saudosa editora Mercado Aberto, faliu lá pela década de 90. A obra encontra-se esgotada, mas você consegue um exemplar novo no Balaio Digital por cerca de 10 reais. Vale a pena a leitura.

                                                                             paulinhopoa2003@yahoo.com.br

========================= 
José Carlos Queiroga. Viagem aos mares do sul. Poa, Mercado Aberto, 1999, 168 pp.

domingo, 19 de maio de 2013

Fluxo-floema

Fluxo-floema é o primeiro livro de ficção de Hilda Hilst. Publicado originalmente em 1970, pela editora Perspectiva, encontra-se reeditado pela editora Globo. Composto por cinco textos que não são romance nem ensaio e nem contos, carregam entre eles o fluxo de consciência da autora, que segundo Alcir Pécora, responsável pela organização e edição da obra de Hilda Hilst pela Globo, não se trata de um fluxo de consciência usual, em que o enunciado se apresenta como realista de pensamentos do autor. É, antes, surpreendentemente dialógico, e teatral. Em seu primeiro texto, Fluxo, temos Ruiska, querendo escrever sobre a angústia de dentro. Essa aflição que, surpreendentemente, não se consegue exprimir de forma racional, liberando o fluxo da consciência em discursos complexos e rítmicos, revelando essa angústia de dentro: Deus tira o bem, do mal que acontece. Falávamos dos seres extraterrestres, das civilizações longínquas, do espaço-tempo, dos seres que podem ser apenas luz, do desconhecido mais secreto dos homens, da vontade de subir e conhecer o espaço mais profundo.
Escrever um livro é como pegar uma enxada, e se você não tem uma excelente reserva de energia, você não consegue mais do que algumas páginas, isto é, mais do que dois ou três golpes de enxada. Por isso, nessa hora de escrever é preciso matar certas doçuras, é preciso matar também o desejo de contemplar, de alegrar-se com as próprias palavras, de alegrar o olhar. É preciso virilidade e compaixão. Sou um unicórnio fechado dentro de um apartamento na cidade.  

                                       paulinhopoa2003@yahoo.com.br                                                                                    
 ===================
Hilda Hilst. Fluxo-floema. SP, Globo, 2003, 278 pp,  R$ 35,00

domingo, 12 de maio de 2013

Corpo presente

João Paulo Cuenca (1978) é músico e escritor. Atualmente participa da bancada do Estúdio I, nas tardes da Globonews, discutindo cultura. Já publicou o livro de crônicas A Última Madrugada, Leya ( 2012) e os romances Corpo presente, Planeta ( 2002), O dia Mastroianni, Agir ( 2007) e O único final feliz para uma história de amor é um acidente, Cia. das Letras ( 2010), além de participação em inúmeras antologias.
Corpo presente é seu primeiro romance. Na trama, Alberto, debruçado na janela do apartamento, no meio da noite, imagina por trás das cortinas, olhando o pedaço de céu delimitado pela área interna do edifício. Fuma um baseado, não sabe se vai ou não se masturbar. Seu computador está ligado, com a tela em branco, encarando seu fracasso. Toda que vez que senta para escrever, não consegue desenvolver nenhuma ideia, tudo é coisa passada, que já foi escrita. Parece uma criança que monta um quebra-cabeça milhares de vezes. Imagina todos os outros que já estiveram debruçados em sacadas, tomando decisões idiotas e sem perspectivas. O que tenta fazer incessantemente e sem sucesso, é escrever para sobreviver a si mesmo. Durante a narrativa de Cuenca, o protagonista busca obsessivamente sentimentos perdidos num mundo cínico, violento e sexualizado demais. Busca incessantemente o amor perdido e impossível por Carmen, não a da ópera ou ficção, mas a de Copacabana claustrofóbica, suja e sedutora. Alberto só não consegue desintegrar Carmen, única sobrevivente sem pudor, pisando seus pés pequenos sobre os mortos. Durante a noite, Alberto segue descobrindo Carmen pelas ruas, em cada janela fechada, por trás de esquinas, entre cada espelho quebrado, em cada noite perdida, esbarrando nos corpos sem vida.
Escritos em capítulos curtos e numerados, Corpo presente apresenta leitura instigante. A obra encontra-se esgotada, mas pode ser encontrada em sebos virtuais, como o http://www.balaiodigital.com/ por 20 reais um exemplar novo.
                                                    paulinhopoa2003@yahoo.com.br
===================
João Paulo Cuenca. Corpo presente. SP, Planeta, 2003. 144 pp. 

domingo, 5 de maio de 2013

Caminhos da literdade

Sartre escreveu em O que é a literatura?, que um dos principais motivos da criação artística seria a necessidade do homem sentir-se essencial em relação ao mundo. O universo do escritor deveria mostrar em toda a sua profundidade o exame, a admiração, a indignação e o amor generoso como promessa de mudar o mundo para compactuar com a liberdade do leitor. Grosso modo, a obra de arte, de qualquer ângulo, é um ato de confiança na liberdade dos homens. Para isso, deve-lhe restituir a indignação e a opacidade do mundo como forma de reflexão.
Sartre teve suas atitudes políticas oscilando entre comunismo, anticomunismo e neutralismo, oscilações compreensíveis a um intelectual que pensava o mundo em toda sua amplitude, discutidas no âmbito filosófico e político. A supervalorização que teve esses aspectos, entretanto, injustiçou sua obra romanceada e dramatúrgica de valor apreciável. Sartre escreveu pelo menos um romance que perdura até hoje: A Náusea. E uma peça igualmente memorável: As Moscas.
A trilogia Os caminhos da liberdade, de 1945, compreende três romances, desenvolvendo estudos morais, de alcance social e político de importância documentária indiscutível, mas de mérito literário menor, conforme aponta Otto Maria Carpeaux em sua monumental História da Literatura Ocidental. Havia o planejamento de um quarto romance, que não chegou a ser escrito. 
A idade da razão, o primeiro, passa-se em Paris, 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Mathieu é um professor de filosofia que defende a ideia da liberdade individual, desprezando qualquer tipo de compromisso. A gravidez inesperada de sua namorada, entretanto, coloca em xeque seus conceitos e os dos que o rodeiam.  Mathieu propõe o aborto e a namorada em princípio aceita, sem convicção. Entretanto, Mathieu não tem dinheiro para fazer o serviço com segurança e busca conseguir o dinheiro emprestado com amigos, sem sucesso. Crenças que forjou na sua juventude são desafiadas. Deve tomar decisões que afetarão sua vida futura. Decide roubar o dinheiro de uma velha boêmia sovina. No final, assume que roubou o dinheiro, mas a namorada decide não interromper a gestação e os dois se separam. Sartre levanta nesse primeiro volume, a questão de que realmente seja a liberdade, o compromisso e o amor.

No segundo, Sursis, os acontecimentos nas vidas de diversas pessoas na Europa se entrecruzam, enquanto o continente se consome na angústia da inevitabilidade da guerra. Os personagens de “A Idade da Razão”, cada um vivendo as suas vidas, à espera de serem chamados como reservistas do exército francês, todos com a certeza de não poderem mais sonhar com a liberdade. A história transcorre em sete dias que antecedem o acordo da França e Inglaterra com a Alemanha, como tentativa de evitar a guerra. Para Mathieu, a iminência da guerra significaria que sua vida estaria morta. Considerava-se um homem pacífico e, naquele momento, o futuro se lhe apresentava como uma incógnita. Nesse romance, Sartre descreve a angústia de todos os estratos da população. Ele se utiliza desse contexto para pensar, através de um emaranhado de situações, sobre o que a liberdade representa de importante para o ser humano e a ameaça que isso representa, com o advento da guerra.

Com a morte na alma, terceiro volume da trilogia, conduz o leitor a uma viagem amarga dos mesmos personagens,  marcada por um mesmo acontecimento: a tomada de Paris pelos alemães em 1940. Entrelaçam-se reflexões de um grupo de soldados perplexos ante a derrota iminente, de indivíduos que tentam escapar, mas se encontram submersos na impotência e na presença avassaladora da morte. Mathieu encontra-se lutando pelo exército francês. Todos os heróis da saga chegam a um momento crucial de suas vidas. A guerra os obriga a fazer escolhas, cujas consequências podem ser vitais. Sartre descreve personagens sempre torturados por sua escolha excepcional nesse contexto da guerra. Trata-se da privação da liberdade.

Os caminhos da liberdade pode ser visto como datada, já que os acontecimentos e o pensamento de Sartre modificavam-se de acordo com os acontecimentos do século XX. Vale a pena ser lida pelos amantes de Sartre, como forma de tomar contato com as vertentes do existencialismo, do qual ele foi um dos propagadores mais eminentes.

                                                     paulinhopoa2003@yahoo.com.br

==========================
Sartre. A idade da razão. Rio, Nova Fronteira, 2012, 372 pp. R$ 16,90 (Saraiva de bolso)
_____ Sursis. 4ª ed. Rio, Nova Fronteira, 2005, 440 pp. R$ 53,90
_____ Com a morte na alma. Rio, Nova Fronteira, 2012, 376 pp. R$ 14,40 (Saraiva de bolso)