terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A Inserção da Literatura de Consumo no Âmbito da Cultura - 2ª parte

Retornemos, então, aos meios de comunicação que difundem a cultura de forma mais rápida, popularizando-a através da imagem. A divulgação da imagem é de suma importância, porque passa a influenciar fortemente a poesia brasileira, a partir da década de 50 pelos concretistas. Com o advento da televisão, a partir da década de 60, a imagem passa a conviver com as formas escrita e auditiva (o rádio). O advento da tevê incorpora uma linguagem cotidiana, de massa, que altera e acrescenta elementos novos à cultura brasileira. Os meios de comunicação visual veiculam mais rapidamente os processos de aquisição e informação. A tevê substitui o cinema e passa a ter a fama de divulgadora de cultura de massa, atingindo um número cada vez maior de pessoas. Temos aí a questão da comunicação de massa, que se mistura com a cultura popular distanciada da cultura erudita. Por atingir grande número de pessoas, passa a ser utilizada para divulgar a propaganda de consumo. Para atingir um número maior de pessoas, há uma homogeneização do aspecto cultura e uma adequação mediana que agrade a gregos e troianos, tornando a cultura de massa fraca estética e significativamente.
A cultura de massa que surge na década de 60 vem impulsionada com a ideologia hípie da década de 60 exportada dos EUA para o mundo, da experiência grupal de vida, com os megafestivais ao ar livre, expressando uma arte também grupal. No Brasil, esse reflexo configurou-se através de uma atividade mais caracteristicamente brasileira, através dos festivais da canção que acabaram chegando à televisão. A música popular passa, a partir daí, a tomar gradativamente o lugar da poesia. As letras das canções retomam a importância da oralidade de tempos idos, para divulgar a palavra. Atualmente, elas tornam-se objeto de estudo da literatura brasileira. A questão da delimitação da literatura como forma de cultura da sociedade de consumo atual, compreende a forma da canção como veículo de expressão da arte da palavra.
Isto posto, e tomando-se a noção de que a canção, por apresentar o uso da palavra criativamente pode ser estudada literariamente, sigamos com uma análise de casos envolvendo imagens de nosso cotidiano - ou do cotidiano de uma determinada época, sob o pressuposto de que "Não é possível analisar uma obra literária, deixando de estabelecer a relação com a sociedade." A afirmação parte da concepção adorniana, de que a autonomia da arte é problemática, na medida que, a partir do século XIX, com a divisão do trabalho, transformou-se em mercadoria.
A canção popular, já dissemos, adquiriu força com os festivais da canção veiculados pela televisão na década de 60/70. Vem dessa época, também, o movimento artístico brasileiro que se denominou Tropicalismo e teve os músicos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil representantes das muitas figuras importantes da época. A Tropicália consistiu em reaproximar os ideais do manifesto modernista de 22, difundi-lo e acrescentar tudo o que de moderno estivesse acontecendo no momento, sendo incorporado no estilo de vida da sociedade urbana. Era a releitura do antropofagismo oswaldiano: deglutir e retornar à realidade sobre o aspecto da novidade.
Caetano Veloso utilizou em suas canções as imagens presentes na
sociedade de consumo da época. Alegria, Alegria, um dos ícones do movimento, revela interessantemente o cotidiano urbano de quem consome coca-cola, curte seus ídolos cinematográficos. A literariedade do poema está na afirmação do eu do poeta destacado do mundo massificado. No cotidiano de quem caminha contra o vento, sem uma identidade específica, encontra-se a pessoa que afirma: Eu vou/Por que não? Por que não? O poeta cantador pretende (quer) seguir vivendo, incorporando ao seu estilo de vida o que o mundo moderno lhe proporciona nas bancas de revistas, nas notícias, nos presidentes, na namorada (vínculo com a tradição: o casamento). Caetano Veloso veicula na canção dois universos: o da massificação (ou modernização, para sermos menos radicais) e o do indivíduo devidamente valorizado dentro desse universo. A canção apresenta o enredo de uma crônica da influência dos meios de comunicação de massa nos tempos modernos por um sujeito único.
A crônica é outra forma de expressão da literatura que representa a sociedade urbana em seu cotidiano. Não podemos esquecer de que o jornal e a revista continuam a existir como forma de divulgação da cultura popular. E a crônica, assim, insere-se como modelo de divulgação da literatura, pela simplicidade discursiva e por veicular elementos da atualidade do leitor de jornais e revistas, propiciando, também, leitura rápida e descartável.
Gênero híbrido, a crônica trabalha com o fato real. O cronista é um contador de histórias curtas, geralmente irônicas, que mistura o narrador à personagem, criando o contraste que acentua a ironia presente.
Luís Fernando Veríssimo, um dos melhores cronistas atuais, faz uma sátira da miséria humana em O mais terrível. A história gira em torno de um motorista que para no sinal e é abordado por uma criança de rua que lhe pede um trocado, chamando-o de tio. O narrador/personagem vai acrescentando elementos a partir da expressão "O mais terrível", até quebrar a expectativa criada pela expressão, provocando um efeito do humor. Contrapõe o mais terrível de ela estar no chão e ele no carro bacana, dele escolher a cara para dizer que não tem trocado, dela ter-lhe cuspido na cara e, o mais terrível: não lhe ter acertado o cuspe. A crônica é formada for partes, a princípio autônomas, mas que se relacionam no sentido geral do texto, que é a crónica da convivência com a dor dos outros, sem que se possa fazer nada para mudar a realidade do momento.
Nelson Rodrigues foi outro dos que modernizaram a literatura brasileira, pela presença cotidiana do ser humano comum, do subúrbio, como personagem central de sua obra, tanto o conto, a crônica e o teatro. Moderno por colocar o ser humano comum com sua linguagem, suas taras, seus impulsos primários que movem as paixões. No conto A Esbofeteada, o narrador conta a história de Silene, que rouba o namorado da amiga pelo prazer de ser esbofeteada como Ismênia tivera sido por Sinval, o namorado.
Assim, Nelson Rodrigues trabalha a ambivalência ódio/amor, repulsão/atração. Toda a castidade esconde em si a obscenidade. O grande tema de Nelson Rodrigues em sua obra foi o puritanismo. Tema esse que aparece no conto desenvolvido pelo absurdo, mostrando o seu reverso: a inconfessada satisfação pela subjugação física que sexualmente dá prazer, numa inversão moral de Silene, a tarada.
Finalizando, cumpre ressaltar os limites da criação literária através do que ela expressa de popular em personagens e situações através da canção, da crônica e do conto de cujos autores citados tivemos um caso elucidativo. Dentro de cada forma literária encontra-se o elemento integrador dessas três modalidades: a classe média exposta em seu cotidiano, envolvida em fatos sociais presentes da vida brasileira.

Bibliografia consultada:
Textos teóricos:
SODRÉ, Nelson W. Síntese da história da cultura brasileira. 3a. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974.
PEREIRA, Carlos A. M. O que é contracultura. 4a. ed. São Paulo, Brasiliense, 1983.
SANTANA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis, Vozes, 1986.
PAVIANI, Jayme. Estética mínima. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1996
Textos literários:
Alegria, alegria. Caetano Veloso
O mais terrível. Luís Fernando Veríssimo
A esbofeteada. Nelson Rodrigues

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A inserção da literatura de consumo no âmbito da cultura - 1ª parte

Para pensar a forma literária e seu lugar na cultura brasileira, precisa-se começar firmando os pressupostos gerais e algumas referências teóricas básicas para se objetivar os limites da literatura no âmbito dessa cultura.
Entendem-se os limites da literatura nas formas como ela se apresenta, para desvendar os valores de uma época. A crónica, o conto e a canção (como forma substitutiva da literatura poética na atualidade) serão objeto de discussão neste trabalho, como modelos delimitativos presentes na sociedade moderna, isto é, os modelos de expressão artística consumidos pela classe média na atualidade.
Entretanto, para que se possa pensar a literatura dentro da cultura, é necessário que se determine sucintamente o que se entende por cultura, e que se delimite o marco inicial do avanço desse tipo de manifestação literária desde o surgimento da contracultura, lá pela década de 60.
Nelson Werneck Sodré, em sua Síntese da História da Cultura Brasileira, abre o livro apresentando uma definição dicionarizada de cultura (constante do Dicionário Filosófico Abreviado, de M. Rosental e P. ludin, Ediciones Pueblos Unidos, Montevidéu, 1950, p. 104): "cultura é um conjunto de valores materiais e espirituais criados pela humanidade no curso de sua história. Esses valores se expressam através da educação, do progresso, do trabalho, da literatura, da arte e demais instituições afins. Portanto, a cultura é um processo de recriação e por isso supõe em cada caso um espaço social e histórico determinado com marcas próprias."
Existem, assim, estágios de cultura que acompanham épocas históricas. Carlos Alberto Pereira em seu livro O Que é Contracultura , cita o escrito de Luís Carlos Maciel, publicado originalmente no Pasquim, sobre o fenômeno da contracultura, apontando a definição de cultura "como um produto histórico e uma criação arbitrária da liberdade, cujo modelo supremo é a arte." Importa, então, fixar a questão de que a manifestação artística é o símbolo mais completo da expressividade humana.
A necessidade da abordagem da cultura faz-se necessária para situar um estágio específico de sua evolução histórica na década de 60, quando as manifestações populares ganham causa e expandem-se os limites de acesso ao fenômeno cultural, através dos meios de comunicação, principalmente da televisão como fonte de entretenimento e lazer. A partir dessa década, a imagem passa a ocupar o sentido da arte de forma mais acentuada que a palavra escrita.
A televisão pode ser considerada o veículo máximo da massificação da cultura e de tudo o que se quiser fazer para canalizar informações e fixar hábitos e costumes como nenhum outro. Ela poderia abreviar o fim da literatura de grande porte (o romance, por exemplo) e sobressalta a homogeneização de gostos através da imagem? Espera-se que não. Mas, pode-se firmar o conceito de cultura de massa, ligando-o ao veículo de comunicação chamado televisão. A sociedade brasileira transforma-se, da década de 60 para cá, igualando gostos e costumes. E incentivando o consumo.
É importante destacar, que a análise da formalização literária está presente ao momento atual da literatura para a sociedade, com todo o lastro da necessidade de expressar e consumir a obra de arte como mercadoria. Por isso mesmo, a partir do consumo, é importante distinguir que ela assume conceitos um pouco mais restritos, cultura popular, cultura erudita, cultura de massa, contracultura. Toda essa dicotomia de conceitos expressa uma adequação moderna do que vem a ser a a literatura como uma forma de arte em sua acepção moderna, buscando adequar-se à sociedade de consumo.
Cabe, também, pensar como se processou a evolução da literatura dentro da sociedade de consumo. O fato dela ser uma sociedade capitalista, põe a literatura para ser aborvida como mercadoria. Esse dado inquieta, porque torna-se difícil a delimitação, uma vez considerada a arte um produto a ser consumido, da qualidade que classifica determinada forma de expressão como sendo arte ou não, arte boa ou ruim. Que valor possui uma arte popular? O que se dizer da arte massificada (e massificante)? Ou ainda, que tipo de literatura pode ser veiculada como forma de arte para ser vendida?
A cultura popular, embora seja confundida às vezes com cultura de massa, não tem uma correlação qualificativa sinônima uma da outra. A cultura popular, antes tida como uma manifestação natural do ser humano, passou a ser considerada historicamente cultura popular, a partir da criação do proletariado no final do século XIX. Ou seja, começa-se a falar de cultura a partir de uma sociedade urbana estabelecida sobre o capitalismo, o homem vendendo sua força de trabalho, caracterizando a sociedade de consumo. A arte popular passa a ser a arte do proletariado, uma arte mais simples.
A arte erudita, por sua vez, apossa-se da arte popular - não exclusivamente dessa arte popular do proletariado - mas da arte popular como um caráter imanente do ser humano que se manifesta de forma pura, simples, universalmente. A arte erudita sofistica esteticamente as formas de expressão da arte popular, passando a ser consumida por uma classe social aristocrática.
Continua

domingo, 12 de dezembro de 2010

O silêncio - uma leitura pessoal

Há um essencial promordial que aproxima a psicanálise da literatura: a metáfora. A literatura lida com a metáfora no campo ficcional, em confronto com a vida real. A personagem, embora verosimilhante, faz parte da fantasia. É dessa personagem que buscamos interpretar atos, atitudes, estilos de vidas, principalmente os conflitos,trazendo-os para nossa história cotidiana.
A psicanálise, grosso modo, lidaria com o paciente (o uso da terminologia é intencional), um ser real de carne e osso que relata ao terapeuta as histórias de sua vida, para que se possam traçar orientações para uma conduta mais saudável. Mas esse paciente relata fatos de uma fantasia porque, ao recontar determinado acontecimento, cria uma história, sua memória seleciona os que lhe interessa (ou seleciona coisas que surgem sem a censura prévia do paciente). Ao analista, cabe trabalhar com a metáfora de verdade contida nessa história. O paciente, como o escritor, usa-se da ficção para contar um fato real, com a diferença de o escritor tem domínio do que escreve e o paciente pode derrapar no inconsciente, esquecendo o que não lhe interessa ou o que lhe causa incomodação. Assim sendo, a história contada pode revelar nuances que só o analista consegue captar. Daí uma diferenciação da metáfora da psicanálise, da metáfora literária.
O silêncio é uma dessas metáforas. O silencio, esse mistério. Silêncio como segredo, como esquecimento, como inibição, como soberba ( menosprezo com o silêncio aos que não me interessam), como afeto, como fuga, como uma espécie de covardia, medo, insegurança.
Silêncio como falta do que dizer (quantas vezes busquei na memória um acontecimento que me marcou e não consegui me expressar ou não fui compreendido suficientemente e me calei, mudei de assunto pela certeza da incomunicabilidade de uma emoção que se truncou...).
O silêncio como esquecimento – aquilo que a memória não guardou, se é que há coisas esquecidas – estas estariam num território do silêncio, enigmáticas, à procura de indagações.
Silêncio como conforto, quando precisamos dele para ler um livro, para escrever uma poesia, para ouvir um cd de música instrumental. Conforto também onde a comunicação se dá através do carinho e do afeto. Comunicação sem diálogos verbais.

Para quem quiser se aventurar no tema do silêncio e suas metáforas, recomendo dois filmes de Bergman: O silêncio, cuja temática é a incomunicabilidade entre seres que deveriam se amar - no caso, duas irmãs. Outro, belíssimo, é Sonata de Outono. Há uma imagem crucial no filme, em que a mãe (Ingrid Bergman)toca piano junto com a filha (Liv Ullman). Enquanto a sonata é tocada, a filha olha a mãe profundamente e a sensação que se tem, é de que ela enxerga perdas, afetos que não se concretizaram na relação de vida das duas.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Anthropos, polis, ethos

Para compreendermos a ética em seu sentido antigo, é preciso ter em vista que o homem grego antigo buscava na ética uma estética da existência. A ética eram caminhos de aperfeiçoamento, que visavam à estilização da vida. Essa estética tomou como referencial a própria beleza inscrita no cosmos. Ordenar-se, tornar-se virtuoso, conquistar um bem, uma excelência, transformar-se em alguém dotado de virtude, seria de certa maneira trazer para a vida pessoal e para a cidade a beleza que esse cosmos revela.
Essa questão da estética da existência vai acontecer no mundo antigo em várias linhas. A forma mais antiga sobre ética vem dos primeiros documentos que ficaram registrados, tornando-se a tradição literária inaugural do ocidente, que são as epopéias homéricas. A ética está identificada à situação natural, espontânea de determinados homens, chamados de os bons, os belos, os melhores. Essas pessoas possuem um bem, porque são os nobres, os descendentes das grandes famílias, consideradas até descendentes de deuses. Daí o sangue nobre ser dotado de excelência. Veremos essa herança mais adiante, em texto sobre a tragédia de Shakespeare.
Vamos encontrar na Grécia, também, a manifestação explicita de uma nova maneira de entender esse estilo e essa nobreza. A questão do sangue perde sentido, à medida que a virtude passa a ser vista como o resultado de um esforço, de um conquista, ou seja, não mais o sangue torna inata a virtude no ser aristocrático, mas é necessário conquistar a virtude através de um esforço, de um trabalho.
Percebe-se, também, que o corpo vivo pode tanto manifestar saúde e beleza, como pode representar doença e feiúra. Ele é saudável e belo quando todas as suas partes estão funcionando de maneira correta e integrada. A saúde do ponto de vista da alma, do ponto de vista da realidade interior do homem, como a saúde do ponto de vista da cidade, também serão fundamentadas no modelo da saúde do corpo. A metáfora do corpo saudável vai ser fortíssima para a construção das estilísticas diferentes que vão ser os vários sistemas filosóficos voltados para a ética.
Por outro lado, o homem se percebe como um ser em trânsito, como um ser navegante, como um ser itinerante. Ele sabe que a sua dimensão é temporal, por isso ele se chama o tempo todo de mortal, em contrapartida aos deuses, que são imortais. O ser humano se constitui no tempo, nele navega, dentro de seu território de duração limitada, que é seu destino. Só que precisa ter um certo rumo, se ele quer construir um caminho voltado para o bem, para o belo, para a virtude.
A metáfora da navegação é fundamental como a metáfora do corpo. E a cidade é entendida por Platão como uma grande nau que exige de cada um determinada função muito bem delimitada, muito bem executada; mas, é importante também que haja alguém capaz de lidar com o leme e estabelecer o rumo certo. A ética, quer na dimensão em que transborda em política quer na dimensão em que se restringe ao campo pessoal e mesmo na esfera subjetiva, interior, tem na navegação um paradigma e um modelo igualmente rico que alguns estudiosos vão explorar.
Acontece que o surgimento da ética no discurso dos filósofos gregos entre o clássico e o helenístico teve destaque justamente no momento de decadência material da pólis. Sócrates, Platão, Aristóteles e Epicuro aparecem no momento em que a sociedade grega em geral, e a ateniense em particular, vivem o momento de maior desagregação interna, de dominação da política pelos demagogos, pela decadência dos velhos modos de vida, da superação da riqueza intelectual pela material.
O dinamismo da sociedade grega acaba criando os conflitos da crescente camada de comerciantes enriquecidos contra as velhas aristocracias – cuja base do poder era de um lado a tradição e de outro a propriedade fundiária – e termina com a ascensão dos tiranos – magnatas que se postulam defensores das camadas mais pobres da população, evoluindo para mundo que iria, aos poucos, infiltrar-se no antigo, voltar contra si mesmos os princípios tanto da democracia quanto da filosofia. Estimula-se o florescimento da demagogia. É o período dos grandes monumentos, do supremo desenvolvimento da escultura, da mais ampla extensão da democracia que chega à sofisticação de pagar uma contribuição a todos os cidadãos que compareçam às Assembléias, como absoluta garantia do direito a todos a participar das decisões da cidade. É também o momento no qual os sábios de todo o mundo helênico – da Ásia Menor à Calábria, então chamada de Magna Grécia – convergem à Atenas na busca tanto de um ambiente de efervescência cultural como de patronos, os mecenas.
O fruto filosófico deste período atribulado são os sofistas e seu relativismo moral. O pensamento sofista não deixa de ser um ataque à hipocrisia ateniense no qual os velhos valores não são mais evocados senão como uma justificativa da dominação de Atenas sobre outros Estados, dos ricos demagogos sobre os velhos. É nesse contexto de decadência e crise moral que os esforços intelectuais de Sócrates, Platão, Aristóteles devem ser entendidos. Quando se enxerga a questão por esse prisma, o fato de Sócrates ter "inventado" a Ética, revela não o surgimento de uma nova ordem, mas antes a necessidade de se refletir, sistematizar e defender conceitos que antes eram dados como automáticos, em especial quanto à essência da ética, ou seja, as relações entre o bem comum e a felicidade individual.
Basta saber o que é a bondade para ser bom?
Esse pressuposto básico da Ética de Sócrates – que basta saber o que é bondade para que se seja bom - pode parecer ingênuo no mundo de hoje, mas na sua época era uma noção perfeitamente coerente com o pensamento – ainda que não com a prática – da sociedade grega.
É com os sofistas que Sócrates dialoga, em um esforço para refutar seu relativismo moral cuja validação, sabe ele, significaria o fim do "espírito grego". O grande mérito de Sócrates foi enfrentar de forma virulenta a hipocrisia da sociedade ateniense, cuja resposta aos sofistas era apenas a reafirmação insincera dos velhos valores. Sócrates defende a identidade entre os interesses individuais e os comunitários como único caminho para a felicidade, o que implica na valorização da bondade, da moderação dos apetites, na busca do conhecimento.
Assim ao mesmo tempo Sócrates busca uma volta às velhas tradições da Cidadania, mas para isso precisa voltar-se contra essas próprias tradições. Ele aceita os princípios gerais definidos por aquelas tradições, mas apenas como um conceito, uma categoria a ser investigada pela mente humana, rejeitando tanto a forma pela qual estes valores são apreendidos como o conteúdo usualmente atribuído a eles.
À questão sobre o que é a Justiça – para dar um exemplo prático desta dupla oposição de Sócrates – os sofistas dizem que ela é a convenção estabelecida pelo mais forte para dominar o mais fraco; os tradicionalistas a entendem como o conjunto das instituições que definem o "Império da Lei". Sócrates diz que ambos estão certos e errados ao mesmo tempo. Os sofistas não estão errados, porque a descrição deles corresponde ao estado de coisas na época, os tradicionalistas também não estão errados porque o princípio que teoricamente rege aquelas instituições seriam aqueles elevados valores da cidadania. Mas ambos estão errados, porque a deterioração da justiça não significa que não exista objetivamente uma Justiça e que esta não seja uma meta a ser alcançada – ao contrário do que pensam os sofistas – e porque o que as pessoas entendem como justiça não é justiça de fato, apenas uma visão distorcida daquele conceito – ao contrário do que dizem os tradicionalistas. O problema ético, para Sócrates é, sobretudo, uma questão de definição de termos.
A essência da Ética Socrática é o poder libertador do verdadeiro conhecimento confrontado com a hipocrisia. É através dese conhecimento, crê Sócrates, que cada indivíduo é capaz de um dia chegar à compreensão do que é o Bem, conhecimento que por si só tem efeito transformador tanto de quem o adquire como da sociedade na qual ele vive.

Platão e a sociedade perfeita
Platão defendia que o homem estava em contato permanente com dois tipos de realidade: a inteligível (a realidade imutável, igual a si mesma) e a sensível (todas as coisas que nos afetam os sentidos são realidades dependentes, mutáveis, imagens das realidades inteligíveis). Alguma coisa é, na medida em que particida da Ideia desse objeto. Platão cria, então, sua Teoria das Ideias. O que há de permanente em um objeto é a Ideia; mais precisamente, a participação desse objeto na sua Ideia correspondente.
Assim como Sócrates, Platão pensava que a essência do conhecimento não se poderia buscar nas coisas, pois estas variam, mudam, surgem e se vão. A verdade plena, deve ser buscada em algo estável, nas verdadeiras causas, pois logicamente a verdade não pode variar e, se há uma verdade essencial para os homens, essa verdade deve valer para todas as pessoas. Logo, a verdade deve ser buscada em algo superior.
Também o conhecimento tinha fins morais, isto é, levar o homem à bondade e à felicidade. Assim, a forma de conhecimento era um reconhecimento, que faria o homem dar-se conta das verdades que sempre possuíra e que o levavam a discernir melhor dentre as aparências de verdades e as verdades. A obtenção do autoconhecimento era um caminho árduo e metódico.
A resposta de Platão à necessidade de se resgatar o velho sentido da Ética, da Justiça e da Moral, perdidos durante o período de crescimento e enriquecimento de Atenas, contaminados pela hipocrisia, é a "volta a uma sociedade mais simples". Mas não uma volta ao passado real, antes a um passado imaginário situado em algum lugar do futuro, onde os velhos valores – renovados a partir das indagações e críticas de Sócrates – possam orientar uma sociedade estável que tende à perfeição.
Assim, à dissociação entre o mundo real e os valores éticos, Platão contrapõe a necessidade de uma reconstrução da sociedade segundo esses valores, por mais radical que possa parecer. O eixo da ampla reforma sugerida por Platão, para construir a sociedade perfeita, é a substituição do poder exercido pelos mais ricos que reinava na Atenas Imperial dos mercadores, por uma em que os governantes seriam os melhores dentre os homens de seu tempo, em termos de conhecimento e sabedoria.
Aristóteles e a ética como ciência das condutas
Aluno de Platão, Aristóteles discorda de uma parte fundamental da sua filosofia, que concebe dois mundos existentes: aquele que é apreendido por nossos sentidos, o mundo concreto -, em constante mutação; e outro mundo - abstrato -, o das ideias, acessível somente pelo intelecto, imutável e independente do tempo e do espaço material. Aristóteles, ao contrário, defende a existência de um único mundo: este em que vivemos. O que está além de nossa experiência sensível não pode ser nada para nós.
Para Aristóteles, a ética não se ocupa com aquilo que no homem é essencial e imutável, mas daquilo que pode ser obtido por ações repetidas, disposições adquiridas ou hábitos que constituem as virtudes e os vícios. Seu objetivo último é garantir ou possibilitar a conquista da felicidade.
Na filosofia aristotélica, a política é um desdobramento natural da ética. Ambas, na verdade, compõem a unidade do que Aristóteles chamava de filosofia prática. Se a ética está preocupada com a felicidade individual do homem, a política se preocupa com a felicidade coletiva da pólis. Desse modo, é tarefa da política investigar e descobrir quais são as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva. Trata-se, portanto, de investigar a constituição do estado.

O universo interior
Epicuro foi outro dos maiores pensadores éticos da história do pensamento e suas ideias têm extraordinária atualidade. Para o filósofo, o sentido de liberdade adquire o sentido de libertação interior. Em grande parte, sua ética é um ensino de virtuosismo pessoal, para que se possa ser feliz, sereno e ter prazer, mesmo na adversidade.
Epicuro viveu no século III a.C, numa Grecia que não era mais livre, mas que fazia parte do império macedônico. Não era mais um mosaico de cidades com sua própria fisionomia cultural. Era o pedaço de um grande império que se estendia até a Asia. Agora as leis irmanam de cima, de um imperador ou rei, e têm de se curvar a sua vontade. Mas, para Epicuro, mesmo nesses momentos de cerceamento da liberdade, há a possibilidade de trabalhar o universo interior, que pode ser objeto de processo de libertação pessoal. No tempo de adversidade, mesmo assim, o homem pode e deve ser feliz, porque nasceu para a felicidade. Devia-se, então, partir para a saúde da alma, pelo afastamento da ignorância, da crendice, através de um conhecimento que aclara a mente interior, fazendo com que o homem, a partir do conhecimento e da natureza das coisas, possa posicionar-se e compreender sua existência e seu papel.
Compreensão da natureza das coisas. Era isso! Procura e valorização do prazer, afirmando que o homem não existe em função do sofrimento, mas da felicidade. Como isso é feito? Através de uma autogestão de si mesmo. Uma independência interior, um desvio da fatalidade externa, administrando sua vida de forma saudável. Alternativa: ou vida política ou serenidade. Hoje, podemos ver isso através da diferença entre o campo da vida pessoal e o campo da vida pública. A vida pública é um campo de antagonismo. A vida pessoal, ao contrário, deve ser uma vida de serenidade, de felicidade.
Se a procura da liberdade interior é uma procura que retira o homem da turbulência da pólis, ele se recolhe entre os seus e procura no intercambio, nas conversas, no esforço de grupo, tentar manter aí o seu trabalho interior e só assim, dentro da amizade, é que esse projeto pode ser realidade. Não se trata de isolar o homem, mas substituir a pólis pelo grupo, com a sua amizade, que está no fundo do próprio projeto da filosofia, que é o amor à sabedoria, a amizade pelo conhecimento, que aproxima os amigos no mesmo processo de busca do conhecimento.
É importante, portanto, lembrar que a ética de Epicuro fundamenta-se, primeiro, no conhecimento, no apoio à razão, na recusa ao obscurantismo, na recusa à crendice, na colocação do mundo como alguma coisa dentro da possibilidade da medida humana. O mundo é mensurável pela razão do homem. É essa idéia básica que afasta tudo que é obscuro, intangível, absolutamente insondável, que faz com que os próprios deuses sejam compreensíveis e os homens, a natureza, tudo, sejam explicáveis racionalmente. Na verdade, o que Epicuro propõe, é que a amizade que se concretiza no jardim desses seres que procuram cada vez mais a clareza e a liberdade interior e que estimula reciprocamente a permanecer nesse esforço, imite à distancia os deuses. Não que os deuses venham fazer a libertação, os deuses são serenos justamente porque não estão preocupados com a humanidade e com o mundo, eles vivem plenamente a serenidade porque estão tão distante dos homens, quanto os homens do jardim se separam da pólis turbulenta.
O direito à felicidade, ao bem, à plenitude de vida, à cidadania completa, não é ilimitado como fora na democracia ateniense de antigamente. Lá, apenas alguns podiam fazer esse trabalho: os homens maiores, nascidos em Atenas e não escravos. Com Epicuro, a felicidade está acessível a qualquer um, independentemente de posição social. Por isso, suas idéias chegam até nós com extrema atualidade.
Não há adversidade externa que decida o nosso projeto ético pessoal. A dimensão pessoal da busca do bem da felicidade é subjetiva, intransferível e só pode ser feita por cada um e ou com o apoio dos que se aproximam do mesmo ideal.
Na ética de Epicuro:
- não há nada a temer quanto aos deuses
- Não há necessidade de temer a morte
- a felicidade é possível
- podemos escapar à dor
Na verdade, isso é um resumo, como uma receita da ética de Epicuro. A questão da saúde aparece aí com toda a clareza. A felicidade é uma conquista, é um direito de qualquer um, todos devem buscar o bem o prazer, a serenidade, não importando a quem. É o resultado de um luta incessante de autolibertação, de criação do espaço de sua autonomia e de busca permanente de seu prazer sábio e sereno.
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Fontes de consulta:
Convite à filosofia. Marilena Chauí, ed. Ática. 2003
Ética. Pessanha et alii. Cia. de Bolso. 2007
O que é ética. Alvaro Valls. Brasiliense. 1996
http://pt.wikipedia.org/wiki/Plat%C3%A3o (sobre Platão)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teles (sobre Aristóteles)
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3crates (sobre Sócrates)
http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%B3lis (sobre pólis)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Epicuro (sobre Epicuro)

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A ética que eu exijo dos outros não é a minha ética, ué!!!

Grosso modo, ética é mais ou menos a educação da nossa vontade, recebendo uma formação racional que nos ajuda a escolher entre o bem e o mal, o vício e a virtude. Isso vem lá da Grécia Antiga: a ética como a educação da vontade pela razão para a vida justa, bela e feliz, a qual estamos destinados por natureza. Nós temos paixões como amor, odio, cólera, tristeza, alegria, generosidade. Elas agem sobre nosso caráter, podendo provocar danos terríveis, deixar-nos à deriva, desorientados, sem saber o que fazer. É preciso a educação do nosso temperamento, que é a educação da nossa vontade, recebendo uma formação racional que ajuda a escolher entre o bem e o mal, o vício e a virtude.
Atualmente, será que o que era ético deixou de sê-lo? Corrupção na polícia, nos bancos, na política... A ética dos gregos antigos parece andar como uma nau perdida no mar das incertezas, mantida pela impunidade. Tomemos como exemplos ações simples do dia a dia que envolvem a ética: se estaciono o carro na vaga destinada a deficiente em supermercado; infringi uma lei, mas foi rapidinho, "chegasse alguém eu saía!" Ou, saio com o meu cachorro para fazer xixi e cocô no muro e na calçada do vizinho, saindo de fininho pra ninguém me ver, afinal "o que é público não tem dono", ou melhor, posso sujar o que é público, já que não tem dono! Chego para o almoço e estaciono o carro na calçada em frente ao portão da garagem, atrapalhando o trânsito de pedestres (inúmeros moradores do bairro Petrópolis fazem a mesma coisa que eu!). Ora, que passem pelo meio da rua, "estou na frente da minha casa!" Ou ainda quando atrapalho o trânsito na rua estreita onde moro e viro a cabeça de dentro do carro para dizer ao motorista buzinando atrás que eu não estou com pressa. Também infrinjo uma lei. Mas, ora bolas, "que se explodam"! E assim é nossa vida cotidiana, cometendo pequenos pecados com a velha desculpa: todos fazem isso, se fosse só eu! Será reflexo do que entendemos por democracia pelo lado contrário?
Isso é micro, coisa corriqueira. Avancemos um pouco no campo jurídico, por exemplo. O advogado que defende um agressor com certo poder aquisitivo tem sua ética aceita pelos tribuniais - eu posso arrumar testemunho falso, desdizer o que disse, sonegar informações para não me incriminar. Já o advogado do agredido, quando pertencente às camadas mais carentes da população, a ética é outra. Parta-se para um acordo!
Se cada homem é um individuo que realiza, a seu modo, seu individualismo, como vai se entender a possibilidade de uma vida coletiva, gregária, socialmente organizada? Se cada homem é uma ilha, se minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro, como vai se organizar a sociedade? É um problema pungente e original, especialmente na classe média. Aquele camarada pobre lá da casinha de papelão debaixo da ponte, suja porque não teve acesso à educação. Agora eu, classe média, com estudo, que sei o que é certo e errado, quando transgrido a lei, não é por falta de educação, é por falta de ética mesmo!
Na forma democrática todo homem deve valer a mesma coisa. Isso é uma abstração: os homens não valem a mesma coisa, são diferentes entre si, mas na forma democrática significa que, na escolha política, todos nós temos o mesmo peso.Como é que é?
Com a mídia é a mesma coisa: a falsa ilusão de isenção partidária na hora de publicar uma matéria. José Miguel Wisnick disse numa entrevista a um programa cultural que "nos acostumamos a ler uma reportagem como se ela fosse mais real do que é, por ter o peso de uma coisa escrita, uma forma acabada da verdade. Essa é uma ilusão de que a página escrita é verdadeira, é uma ilusão difícil de perder. Ao lermos um jornal, tendemos a acreditar no que está escrito. No entanto, o que está escrito é uma construção que pode alterar completamente o significado que foi acontecido. Ética jornalística. Todo trabalho jornalístico está centrado nesse poder de montar e de que é o lugar onde o lugar da noticia vai se dar."
Assim sendo, leitor, quando você abrir a boca para criticar (e deve fazê-lo, mesmo!)da falta de ética da política brasileira, lembre-se do cocô do seu cão na calçada, do seu carro atrapalhando os pedestres, das sua paradas rapidinhas nas vagas dos deficientes e no controle da sua vontade. Afinal, a política nada mais é do que o reflexo do homem da pólis. A política pode, ou melhor, a política é o espelho da sociedade que nós, como cidadãos, constituímos.
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Fontes de referência:
Convite à filosofia. Marilena Chauí, Ática, 2003.
Cultura brasileira: tradição, contradição. Gerd Bornheim. Zahar, 1997.
As fundações do pensamento político moderno. Renato Janine Ribeiro, Cia. das Letras, 1996.
Série Ética: A Arte do Viver/A Culpa dos Reis. Dvd. Cultura Marcas.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Quincas Berro d'Água: o livro carrega o filme

Vocês conhecem alguém que tenha visto uma obra cinematográfica baseada em livro, melhor que o livro? Eu, não. Mas, devem existir, sim. Eu, particularmente, gosto muito de assistir a filmes adaptados de obras literárias, especialmente depois de lê-las. Gosto das películas que fazem uma leitura competente do livro, respeitando a obra, criando cenas muito próximas do que havia imaginado quando lia um livro.
Mas, há filmes que deixam muito a desejar em relação às obras ecritas em que foram baseadas. Quincas Berro D'Água é um deles. As coisas começam pelo fato de o filme ser da rede Globo. Explico: os cineastas enviam seus projetos para arrecadar fundos para a filmagem se utilizando, entre outras coisas, de atores globais, não sei se para puxar público para o cinema ou se para ganhar algum, divulgando o filme na própria Globo. É aquela história, o governo dá dinheiro para a Globo ( que direta ou indiretamente acaba usando o produto como se fosse dela mesma, já que o elenco é todo ele global).
Bem, voltemos ao livro versus filme.
A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água é uma novela de Jorge Amado, escrita em 1958, uma das melhores obras do autor. Joaquim Soares da Cunha, o Quincas, foi funcionário público, pai e marido exemplar até o dia em que jogou tudo para o alto, trocando família, respeitabilidade, conhecidos, amigos, tradição, pela convivência com as prostitutas, os bêbados, os marinheiros, os jogadores e pequenos meliantes e contraventores da ralé de Salvador. Sua sede era saciada com cachaça e seu descanso pelo corpo acolhedor da prostituta. Fez-se respeitado e admirado entre seus novos companheiros de infortúnio, sempre disposto a mais uma farra ou bebedeira. Sua opção pela bandalha representa o grito do homem dominado e cerceado por preconceitos, que um dia rompe as amarras e grita por liberdade. Morreu solitariamente sobre uma cama imunda e sua morte detonou todo o processo de reconhecimento e desconhecimento por parte da família real e da família adotada.
Os amigos durante o velório se embriagam e resolvem, bêbados, levar o defunto para um último "giro" pelo baixo-mundo que habitavam. O passeio passa pelos bordéis e botecos, terminando em um saveiro, onde há comida e mulheres. Vem uma tempestade e o corpo de Quincas cai ao mar.
É Esse o plot do filme. A ação centra-se nessa via crucis de Quincas, já morto, querendo a voz de sua alma que os amigos lhe façam o desejo de morrer em paz, do jeito "proletário" de viver. Os quatro atores que carregam a ação dramática são o melhor do filme e os que o salvam de um desastre. Com atuações cômicas, "clownescas", convincentes, esses quatro bêbados dão credibilidade à história, prendendo a atenção do espectador até o seu final. Os atores globais de maior nome como Paulo José, Mariana Ximenes e Marieta Severo têm atuações discretas. Marieta Severo encarna uma prostituta amante do Quincas, falando um castelhano muito mal estruturado. A sensação que tive de Marieta Severo, é que ela tirou a personagem da epiderme do braço esquerdo e ficou com preguiça de investir melhor seu talento, que é bom quando ela quer. Mariana Ximenes ensaia uma tentativa minúscula de sotaque baiano, que abandona na segunda fala e o que vemos é mais uma Clara da novela das nove, pasteurizada e sem gosto.
O problema do cinema brasileiro dessa safra atual, é que os filmes passam a sensação de serem feitos nas coxas, baseados em uma idéia interessante até, mas sem criativade e fôlego para uma produção decente. Quem vai a cinema seria para ver cinema e não seriado de televisão. O jeito em que as coisas andam na produção cinematográfica, fazem pensar num certo amadorismo descosturado na sétima arte nacional.
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A morte e a morte de Quincas Berro d'Água. Jorge Amado, Cia das Letras, 2008, R$ 25,00
Quincas Berro d'Água. Direção de Sérgio Machado. Elenco: Paulo José, Marieta Severo, Mariana Ximenes, Vladimir Brichta. R$ 29,90

domingo, 17 de outubro de 2010

O último pingo vai sempre pra calça?

Já comentei uma vez aqui, acho uma pena que, pelo menos em minha geração (1953), os homens tenham sido educados diferentemente das mulheres. Digo-lhes isso para questionar por que os banheiros masculinos são nojentos e sujos. Será por que a mulher não ensinava o filho homem a sacudir o piupiu depois de urinar? Minha mãe nunca me ensinou. O que ela me ensinava era que eu devia entrar no banheiro, levantar a tábua do assento, urinar e puxar a descarga. Essa história de que tinha de sacudir, limpar com papel higiênico a cabeça do guri e guardá-lo com cuidado para que o último pingo não perpassasse a calça eu aprendi por conta própria, depois de alguns vexames.
Hoje já se percebem mudanças, pelo menos na classe média em que marido e mulher trabalham fora e parte da educação de seus filhos fica a cargo das creches. Sei de homens que trocam fraldas, buscam os filhos na escola, quando se separam lutam para ficar com a guarda dos filhos. Isso ainda não é comum, mas se encontram com frequencia homens que amam seus filhos de igual para igual. Mas, a situação da sujeira dos banheiros masculinos não mudou nada.
Em minhas andanças frequentes pelo Brasil de avião, tenho de fazer uso dos banheiros de aeroportos. São nojentos. Mesmo levando-se em conta que a limpeza deles sejam feitas algumas vezes por dia, mesmo assim, permanecem sujos: muitos pingos no chão ao redor dos mictórios. Pedaços de papeis entupindo a saída da água de muitos deles. Quanto aos vasos sanitários desses banheiros nada poderei argumentar, pois tenho toc (nojo de banheiros públicos) e jamais me vi na possibilidade de evacuar, sentando em um desses aparelhos.
Confesso que um pouco dessa sujeira no local dos mictórios deve-se ao fato da mira não muito segura da genitália masculina: às vezes a gente mira no lugar correto, mas o jato desvia para o lugar errado. Paciência. Mas esse erro estratégico não é o maior responsável pela nojeira dos banheiros públicos. Muito disso é falta de educação, mesmo! Mesmo que eu tenha criticado no início deste texto que a mulher não educava o menino igualmente à menina, depois de adultos devemos ter a consciência de que nos educamos através da vida e somos reponsáveis por essa educação e mudança de hábitos, quando se trata de cuidar da estética dos banheiros masculinos.

domingo, 29 de agosto de 2010

A felicidade consiste em quê?

Li num blog de cultura, recentemente, uma afirmação creditada ao escritor francês Romain Rolland, de que "a felicidade consiste em conhecer seus limites e amá-los". Uma afirmação importante dessas assim, pinçada ao acaso e fora do contexto em que o autor a citou, pode tornar-se inconsequente a qualquer comentário. Mas, vou puxá-la para um contexto subjetivo e fazer algumas considerações: Puxa vida! Como podemos conhecer nossos limites sem transcendê-los? Os semideuses da mitologia grega buscavam ultrapassar seus limites. Sua hybris (ousadia) suscitava a fúria dos deuses e eram castigados. Daí virem muitas das tragédias gregas que conhecemos: Prometeu foi um titã que criou os homens (com seu irmão Epimeteu) e também roubou o fogo dos deuses para presentear às suas criações. Isso tornou o homem superior aos animais. O fogo era exclusividade dos deuses. Por isso Zeus puniu Prometeu, acorrentando-ao topo de um monte, onde diariamente uma águia dilacerava seu fígado, que diariamente se regenerava. Imaginemos se Prometeu tivesse conhecido e respeitado seus limites, obedecendo sua "natureza"... teria tido uma vida feliz e livre dos castigos. Mas o homem não teria ganho o fogo, princípio de nosso progresso material.
Ícaro tentou fugir de Creta usando asas fabricadas pelo artesão Dédalo, seu pai. Ele deveria voar longe do sol para que a cera que sustentava suas asas não derretesse. Desobedeu a ordem aproximando-se do sol e foi castigado. Suas asas desmancharam e ele caiu no mar. Hoje voamos de forma segura (sem nos aproximarmos muito do sol, claro). Devemos, quem sabe, isso à ousadia de Ícaro, que buscou o desafio de fazer o homem voar como os pássaros.
Então, conhecer seus limites. Um desafio contrário ao dos semideuses. Conhecer a nós mesmos é uma tarefa ingrata, muitas vezes. Não vou dizer que isso é impossível, pois já ouvi muita gente falar que conhece seus defeitos e qualidades, que conhece seus limites e não infraciona a lei natural da existência. Mas eu, sinceramente, não sei dizer se conheço meus limites. Admito que tenho medo, até, de conhecê-los a fundo. Isso me assusta, embora possa ser o caminho da minha felicidade. Deve ser muito bonito conhecer suas limitações e respeitá-las. Mas a minha felicidade ainda não passou por isso. Tive e ainda tenho o ímpeto dos semideuses, de buscar conquistar aquilo que está longe de mim. Traço mil e uma estratégias. Me ferro na maioria delas. Mas as poucas vezes que consegui esse feito me senti feliz. Será que estava ultrapassando aquilo que julgava ser o meu limite, ou estava justamento trabalhando dentro das suas possibilidades... Boa pergunta pra mim: vou pensar a respeito.
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Romain Rolland foi um biógrafo, novelista e músico francês nascido no século XIX e morto em 1944. Dizia, entre muitas coisas, que o pessismo da inteligência não deveria abalar o otimismo da vontade. E agora?

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Ganhos

o que você vai fazer, quando se aposentar? Quero ficar um bom tempo sem fazer nada, depois decido alguma coisa. É bom pensar em algo para fazer, você ainda é novo, 53 anos, há planos, coisas a fazer...
Pois é, coisas a fazer. Mas, o quê? Não sinto vontade de fazer nada, minha vida de trabalhador sempre teve o pensamento e a fala: "não vejo a hora de parar de trabalhar e gozar a vida!" Gozar a vida, pra mim, sempre teve a intenção de não fazer nada. Entenda-se esse "nada" como todas as coisas proveitosas, agradáveis, prazerosas, que não podemos fazer porque estamos trabalhando por obrigação,para construir essa base para o "nada" do que estou falando.
Quando estava envolvido com o processo da aposentadoria do banco onde trabalhava, tive crise: tonturas, expectativas, indecisões. Conversei com Rozana, já fora do banco. Estava em Ibiraquera, morando na praia com seus cachorros e o marido. Feliz da vida. Quem não é feliz da vida perto do mar! Conversei com Gládis, recém-saída do trabalho: "não tenho tempo pra nada!", me disse ela. Quem já está aposentado entende o que ela disse. De fato a gente não tem tempo pra nada. Porque a noção de tempo de um aposentado que preza o "dolce far niente" é outro. Mais curto. O tempo passa depressa. A ruptura dos padrões desse bom pedaço da vida em que produzimos para sobreviver, que é o trabalho ativo, compromissado, de carteira assinada, é uma coisa muito boa. Eu penso assim. Sinto isso. Gostei muito.
Dias desses falei com Zuleide, que se retirou do batente na mesma época que eu. Está fazendo artesanato, reick, passa temporadas na praia quando quer, preferentemente fora da loucura do veraneio. Acompanha a trajetória da filha que corre o mundo, trabalhando numa ong humanitária. Está fazendo nada... que delícia!
Dias desses falei com Valdir, que se transferiu parcialmente para Chapecó. Está feliz com a mudança de ares. Tem vontade de investir num novo trabalho, ele precisa disso. Está perseguindo o que gostaria de fazer, com uma boa remuneração, sem neuras.
Dias desses almocei com Claudinha, Berê e Ricardo, colegas da ativa que ainda têm um caminho a percorrer. Junto estavam Hamilton e Ana, que estavam saindo para "o não fazer nada". Dúvidas? Claro! Mas tenho a certeza de que a liberdade é o melhor caminho para todas as escolhas, mesmo que seja para "nenhuma delas", como é o meu caso.
A aposentadoria incomoda porque acontece no momento em que estamos no alvorecer de nosso envelhecimento. Se envelhecer pode ser uma coisa boa, poderá também ser uma coisa complicada. Melhor dizendo, com algumas complicações, nada que não se possa resolver com nosso plano de saúde. Batalhem pela liberdade, meus amigos! Vale a pena.

sábado, 10 de julho de 2010

Perdas

Lidar com perdas não é tarefa das mais fáceis. Mas é inevitável. As perdas fazem parte de nossa vida, seja uma perda amorosa, a perda de um emprego, uma oportunidade, seja a perda de um ente querido. A dimensão dramática do que significa uma perda eu tive com a morte de minha mãe. A ausência dela mostrou um espaço irreparável que não poderia mais ser preenchido. Era tratar de reorganizar a vida, o que fiz buscando meu primeiro emprego, pois era adolescente, nessa época. Hoje, pensando sobre isso, sinto que a pessoa que mais sentiu e se modificou, a partir da ausência de minha mãe, foi meu pai.
Seu sorriso já não era mais o mesmo, até quando algum tom alegre no ambiente o fazia sorrir. Quando não gostava de alguma coisa, limitava-se a resmungar e fechava a cara de poucos amigos. Às vezes eu implicava, perguntando-lhe o que era. Ele respondia nada. Certas dores no corpo, a pedra nos rins...
Percebia-se a mudança também no rosto. A boca que pronunciava palavras silenciosas, enquanto jogava cartas sozinho na sala, não tinha mais cor. Era uma boca de defunto. Os olhos castanhos acumulavam as marcas do tempo a seu redor e os poucos cabelos da parte lateral da cabeça não escondem mais a mescla de grisalhos: era completamente branca.Quando me aproximava para lhe desejar bom-dia, o braço que me tocava o ombro estava completamente flácido.
Quando me sentava na outra ponta da mesa para tomar o café da manhã, sentia sua respiração ofegante. Tossia de vez em quando. Ouvia o barulho da xícara raspando o pires e me sentia assim como ele, também diminuído, gelado, trancado na mesma saudade, parceiro de mesma solidão.
O silêncio enchia a sala. Quando essa triste lembrança da morte dela se tornar saudade, talvez pudéssemos voltar a discutir futebol e política, sorrindo e brigando como velhos amigos. Torcia para que o tempo fizesse surtir seu efeito.
Não foi possível. A saudade dela acabou tirando-lhe a vida alguns anos depois.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Solidão que une

Ontem assisti a um filme perturbador em dvd: "Ander", filme falado em basco e espanhol, com legendas em espanhol. Ander era um homem de quarenta anos que dividia suas tarefas numa fábrica de bicicleta com a vida no campo. Morava com sua mãe velha, moralista e autoritária, que se negava a falar espanhol com quem não fosse basco. Havia também a irmã, que estava prestes a casar.
Um dia, Ander sofre um acidente e quebra uma das pernas. Foi preciso contratar um ajudante rapidamente. Encontraram um peruano, Juan, que estava na região à procura de trabalho. Ele é contratado, apesar da objeção da mãe, por ser estrangeiro.
Aí a história ganha interesse: os dois tornam-se amigos e Ander descobre sentimentos que até então desconhecia. Busca aproximar Juan da família, contra a vontade da mãe. Na festa de casamento da irmã, Juan leva Ander ao banheiro, para ajudá-lo a urinar; Juan demonstra-lhe fisicamente seu afeto. Fazem sexo - Juan penetra Ander, que se desestabiliza, a partir de então.
Logo em seguida sua mãe morre. Os dois passam a viver sozinhos no sítio. Juan passa a ser maltratado. Ander trata-o com desprezo, mas vai conseguindo observar a dedicação do empregado para com ele e as coisas da casa. Sente a crise, vê seu relacionamento com amigos e parentes se modificar, e precisa decidir se deseja realmente incluir Juan em sua vida.
O que me chamou a atenção no filme foi que a solidão de Ander, assim como a de Juan, pediam a presença um do outro. Viver solitariamente é uma arte difícil de se aplicar na vida de alguém. Viver junto é bacana, mas difícil. Viver sozinho também é bacana, se for mais que uma opção, uma filosofia de vida. Permitir a presença do outro em nossas vidas requer uma política de relacionamento muito bem articulada. O amor (e a amizade), para criar raízes, precisa ser administrado com razão e sentimento.
Ander, que vivia solitariamente em seu cotidiano, fazendo sexo evetualmente com uma prostituta, descobriu a necessidade do amor na figura suave de Juan, que demonstrava seu carinho na maneira discreta de ser e agir.
O filme carrega outras simbologias interessantes: a atração que Ander sente por Juan começa situada na dominação do forte pelo fraco. O relacionamento dele com a mãe, a rigidez da educação que quando se desfaz, com a morte dela, deixa Ander desorientado. A homofobia de Ander, o moralismo da cultura espanhola, em termos mais abertos, enfim, o filme é riquíssimo. Pena que dificilmente circule nas telas brasileiras, não é filme fácil de se ver. Na Espanha ele foi proibido. Circula em festivais gueis, onde já ganhou prêmios, mas a temátima homossexual não é a bandeira do filme. Vale a pena vê-lo!
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Ander, Direção: Roberto Castón
Elenco: Joxean Bengoetxea, Christian Esquivel, Mamen Rivera

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O limite do viver

Neste final de semana o Domingo Espetacular mostrou a matéria de um casal de velhinhos - sessenta e tantos anos de casados, segundo a esposa - o marido saíra para caminhar e não voltara até à noite. Junto com ele, a cachorrinha que o seguia sempre. A velhinha, assustada, buscou ajuda dos vizinhos para achar o marido, mas não o encontraram. Pediram ajuda do corpo de bombeiros. Acabaram descobrindo o velhinho no meio de um canavial, durante a madrugada. Ao sentir barulho, a cachorrinha dera sinal e os bombeiros chegaram até ele, de barriga para baixo, ainda vivo.
Enquanto via a matéria, fiquei pensando no que poderia estar passando na cabeça do velhinho naquele momento. Não sou médico neurologista nem geriatra, o que me impressionou no assunto tratado levei para o campo da ficção. O velho não conseguira morrer. Não tivera forças para cavar sua própria cova? Estava vivo para alegria da esposa e para seu desapontamento. A fisionomia do velho era de tristeza, de decepção. O repórter perguntava coisas que ele não respondia. A esposa dizia que ele era tudo na vida dela. Precisava dele. Ele talvez já não precisasse de ninguém.Aquele velhinho personagem, que se perdera por não conceber mais o espaço real da vida, caminhara para o nada. Para o infinito. Saíra da casinha da vida, entrara no delírio do fim do mundo, mesmo. Será que não queria mais viver? O que será que pensa da vida ele, já que ainda está vivo? Já não pensa mais nada.
O velhinho da matéria da televisão me impressionou e incomodou meu lado velho, que está se aproximando cotidianamente e sempre. Como estarei eu com a idade daquele velhinho? Ele aparentava uns noventa anos... Fiquei incomodado porque tenho medo da morte. Gostaria de viver bastante ainda, e bem lúcido com a realidade. Mas ainda não cheguei aos sessenta e ele já está nos noventa. Já deve saber mais da morte que da vida. Já não domina mais essa vida que tanto aprecio querer viver. Seu domínio é o desejo pelo desconhecido. Quando saiu a caminhar e se perdeu, para ele isso não tinha sido uma perda (perder-se é um caminho), mas um desejo de viver a morte.
Remeto os leitores para dois livros muito bons que retratam o velho como personagem: "O albatroz azul", de João Ubaldo Ribeiro, que retrata a vida de um homem bastante velho, que apesar de muita sabedoria colhida durante a vida, ainda busca um sentido para viver. Outro é "Memória de mis putas tristes", de Gabriel Garcia Marquez. Nele, lemos um homem de noventa anos que programa passar a noite com uma adolescente, para provar a si mesmo e ao mundo, que está vivo.

terça-feira, 8 de junho de 2010

A 60 minutos por hora

Hoje pela manhã, quando voltava do supermercado pela segunda vez, me veio à cabeça a música “A 60 minutos por hora”, de Walter Franco (a música faz parte do ótimo cd de Leila Pinheiro, “Nos horizontes do mundo”, Biscoito Fino). A letra diz: “a 60 minutos por hora/sem pressa nem demora/a 60 minutos por hora pela vida afora/venha, não tenha pressa/pra chegar a lugar nenhum”. Por que me veio essa música na cabeça?
Sou um cara apressadinho por natureza. A pressa sempre fez parte de minha vida, mesmo não precisando dela. O que me motiva isso é a ansiedade. Sou um cara ansioso à beça. Seja o que for que eu faça, faço com uma tensão desnecessária, que já me prejudicou muitas vezes. Desde criança fui assim, apressadinho, fazendo tudo correndo, me livrando das tarefas obrigatórias para poder brincar em paz. Hoje, já na adolescência do envelhecer, aparentemente sou um sujeito calmo e tranquilo. Mas internamente...
A ansiedade faz parte da minha personalidade, paciência.Tenho de carregá-la da forma mais diplomática possível, evitando o estresse.
Voltando ao supermercado, eu tenho o hábito de entrar nele já de costas, fazendo tudo rapidamente, pois não gosto daquele ambiente, principalmente quando há muita gente se pechando (conhecem essa? Os rio-grandinos como eu conhecem essa gíria), filas no caixa, demora. Apesar de me trabalhar há alguns anos para lidar com essa bruta ansiedade, às vezes me atropelo, esqueço de comprar metade do que precisava, e acabo voltando para completar a tarefa. Foi na segunda volta do supermercado,hoje pela manhã, já resignado com minhas imperfeições, que me toquei cantando essa música que na aparência é engraçada, mas contém uma filosofia de vida: as coisas acontecem num tempo. Se você for apressadinho, vai multiplicar esse tempo por dois. Portanto, “a 60 minutos por hora/sem pressa e sem demora”. Grande Walter Franco!
Obs.: para quem não conhece ou não lembra de Walter Franco, ele ficou conhecido na década de 70 com a música “Cabeça”. Ela ganhou um festival internacional da canção, mas destituíram o júri, não reconheceram a música, e quem acabou ganhando o festival foi Jorge Ben Jor com “Fio Maravilha”. Chico Buarque gravou uma música de Walter Franco no disco Sinal Fechado (1974), chamada “Me deixe mudo” (“não me pergunte/não me responda/não me procure/e não se esconda/não diga nada/saiba de tudo/fique calada/me deixe mudo”). Era no tempo da ditadura e Chico Buarque, proibido de gravar suas próprias canções, lançou o disco com composições de outros autores.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Preconceito e razão

Li no sítio do jornal A Capa desta semana, que a torcida do São Paulo publicara um manifesto na internet, ofendendo o jogador Richarlyson, depois que circulou a notícia que o jogador havia sido visto numa boate gay paulistana. O texto que havia sido publicado pela torcida começava assim: "Não é de hoje que esse traste suja a imagem sagrada do São Paulo Futebol Clube com seu jeito afeminado. Dentro de campo, sequer justifica isso com um futebol decente. O fato é que Richarlyson é o antimarketing do clube, isso pode afetar inclusive o crescimento da torcida são-paulina. “ Após a repercussão do caso, a direção retirou a notícia do ar e se contradisse, afirmando que a torcida organizada são-paulina não era preconceituosa, só estava querendo cobrar do Richarlyson uma postura mais efetiva em campo, já que não estava mostrando bom jogo.
Ora, o que se viu acima é uma atitude preconceituosa, sim. As pessoas têm medo de conviver com a diferença, ainda mais quando essa diferença possa envolver a sexualidade de alguém.
Richarlyson nunca afirmou publicamente que fosse homossexual, pelo contrário. Bobo ele se, sendo, o dissesse. Com uma imprensa de quinta categoria, como a nossa, imagina o estrago que o craque faria em sua carreira, num esporte eminentemente machista.
Por que será que somos preconceituosos? Já notaram pessoas que contam piadas sobre viados justificando-se imediatamente, dizendo que não têm preconceito, que é apenas uma brincadeira? Com negros também se faz isso. Com índios (“fazer uma indiada”), com loiras, etc. O interessante nisso tudo é que quando a diferença é bi volt, o fato se abranda um pouquinho: o homossexual afetado é visto com o mesmo sarcasmo que o homossexual com comportamento semelhante ao heterossexual. A diferença é que o afetado, muitas vezes, acaba compactuando a visão machista da maioria heterossexual, submetendo-se ao preconceituoso.
Mas as coisas, parece, estão mudando. Por exemplo, minha visão da homossexualidade anda em crise. Já não ando mais acreditando em uma só homossexualidade, há homossexualidades. Existem os afetados porque se sentem bem assim, tanto quanto os gueis normais (com comportamento social hétero). A visão de bissexualidade está adquirindo um status de aceitação maior, visto que há tempos atrás, o bissexual era visto como o homossexual que não se assumia (ainda que os não-assumidos existam em número relevante).
Bem, conviver com a diferença, não é fácil. Envolve receio, medo, insegurança, inveja, um monte de coisas. É muito bom que os diferentes se mostrem, mesmo os que sejam héteros como Richarlyson se diz ser. Caetano Veloso escandalizou nas décadas de 60 e 70 e não é homossexual. Eu, que tenho minha homofobia presente, devido à educação, aos meus receios e inseguranças, procuro fazer o exercício de enxergar a diferença como normal e necessária, pois isso é saudável. Parabéns a Richarlyson por ser do jeito que gosta, porque se sente bem assim.
Para quem se interessa sobre o tema homossexualidade, tem um livrinho interessante que pode ser encontrado em sebos: O que é homossexualidade, de Peter Fry e Edward Macrae. Coleção Primeiros Passos, Ed. Brasiliense.

Campanha mundial contra a fome

A FAO, Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, está realizando uma campanha mundial contra a fome (1billionhungry) lançada no dia 11 de maio, que consiste na assinatura de uma petição globlal, on-line, pedindo que as pessoas não fiquem indiferentes ao fato de que cerca de um bilhão de pessoas no mundo viva com fome e, estimulando os governos a fazerem da erradicação da fome sua principal prioridade. Isso porque nos últimos 3 anos houve um aumento de 200 milhões de pessoas em insegurança alimentar

O objetivo é chamar atenção para o problema e pedir um basta à fome. !!!

O link para a petição é http://www.1billionhungry.org

Sua participação é muito importante para esse movimento. Assine e divulgue mais essa grande mobilização em prol de uma sociedade mais fraterna.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Meninos e meninas

Estou lendo a autobiografia de Sartre (As palavras, 6ª ed., RJ, Nova Fronteira, 2000. A obra pode ser encontrada em sebos da Estante Virtual). Nela, o escritor conta sua infância ao lado da mãe e do avô materno – seu pai morrera quando Jean-Paul era muito pequeno. Numa passagem do livro, ele narra a sensação de que sua mãe talvez quisesse tê-lo como menina, fazia-o usar cabelos compridos, além de outros mimos que ele sentia como características dadas às meninas. Um belo dia, o avô o leva ao barbeiro e acaba com os devaneios da mãe.

Isso despertou a lembrança de uma conversa que tive com minha mãe, quando eu era criança. Pedi para lavar a louça do almoço e ela não quis, disse que se eu aprendesse tarefas femininas, quando me casasse iria fazer as lidas domésticas que caberiam à minha mulher. Hoje moro sozinho, aprendi a lavar louça, cozinhar. Se minha mãe, além de me ter deixado lavar a louça, tivesse me ensinado a cozinhar, teria herdado muito de seu gostoso tempero caseiro.

Hoje em dia, apesar dos avanços de gênero, ainda percebo muito da forma de pensar de minha mãe na postura das mulheres. A clássica divisão das tarefas domésticas existe, apesar da ajuda masculina. Faz parte da cultura do ser humano em qualquer lugar. Nas separações de casais com filhos, ainda é comum a presença deles junto às mães.

Na educação, por que ainda se veem mulheres diversificando costumes que poderiam ser semelhantes entre os sexos? É da cultura? É do preconceito feminino contra si próprio, criando o menino diferentemente da menina? Será que espelham no filho o desejo do homem ideal? A igualdade ou diversificação de comportamento entre homens e mulheres ainda tem maior responsabilidade na presença da mãe? As mulher talvez possam responder melhor a esses questionamentos.

(Aproveito a oportunidade para divulgar o blog


www.familiaseparadapelaalienacaoparental.blogspot.com)

Palhaço

Um dia desses escrevi para meu amiço Ciço, em Aracaju, fazendo-lhe um elogio mais ou menos assim, de que ele era meu palhaço preferido. Cícero é dramaturgo, ator e diretor. Um excelente clown, mas ele não acredita em mim. Pois não é que logo depois do elogio tratei de lhe explicar o sentido que queria dar ao termo?! Bobagem minha. Preconceito. Ele entendeu e aceitou muito bem o elogio, pois tem a sensibilidade do ator e do homem sensível que compreende a mágica importância dos palhaços na vida das pessoas.


Sempre tive uma simpatia especial pelos palhaços. Eles fizeram parte de minha infância no interior de Pedro Osório, quando os circos passavam por lá. O palhaço Carequinha também me cativou. Conhecia sua arte através de seus discos de música infantil: "o bom menino não faz xixi na cama/o bom menino não faz malcriação"... Mais tarde passei a acompanhá-lo na televisão.

Não gosto quando as pessoas ofendem alguém usando o termo plhaço pejorativamente. Eles estão equivocados. Não se dão conta do uso errado do termo, pois o palhaço é um profissional digno, que trabalha para nos fazer rir. O palhaço permite que a gente dê gargalhadas, fazendo-nos pensar que as palhaçadas que ele faz são dele, quando na verdade rimos de nós mesmos; as situações engraçadas que ele aponta já vivenciamos de uma forma ou de outra.

Dizem que rir da gente mesmo faz bem. Concordo. O riso é uma alternativa para o trágico. Nos aponta para o fato de que nem tudo está perdido, ou o que de ruim acontece pode ser passageiro, faz parte da vida. Daqui a pouco nosso personagem atrapalhado, nosso clown, nos fará rir, como rimos do palhaço.

Aproveito para sugerir a crônica de Cecília Meireles, sobre o tema, intitulada Programa de circo (do livro Escolha seu sonho, 26ª ed, RJ, Record, 2005). A escritora tem várias crôonicas abordando a importância do circo na vida das pessoas.

Ensinar, aprender o desenvolvimento em uma perspectiva pós-vygotskyana.

Certa vez estava em Brasília para reforumulação de um curso de linha do Banco do Brasil e o colega que coordenava o projeto me disse que se todos os doutores em educação voltassem às salas de aula das séries iniciais, a educação teria outro sentido, mais produtivo e verdadeiro. Penso que ele tenha sua razão. A educação evolui muito a teoria, mas ainda se observa a prática centrada no tradicionalismo: professor dando aula e aluno ouvindo. Meu trabalho como educador formador de alfabetizadores de jovens e adultos me traz o desejo de poder observar in loco a atuação dos alfabetizadores formados nos cursos. Poder observar a postura mediadora do alfabetizador, segundo que se discute sobre Vygotsky e ZDP.


Mas, como sou também simpático às teorias, quero partilhar com quem gosta de teoria de educação, especialmente de Vygotsky, uma palestra que assisti na Faculdade de Educação da Ufrgs, sugerida por Júlio Zacouteguy, nesta terça-feira (25/05/10), com a professora Anna Setsenko, do Programa de Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento, envolvida com educação urbana e com o Centro de Estudos da Mulher e Sociedade do Centro de Pós-Graduação da City University of New York (CUNY, NY). A pesquisadora é reconhecida como uma representante proeminente da teoria da atividade de Vygotsky. Desenvolveu a noção de aprendizagem e desenvolvimento enquanto projetos ativistas de devir histórico, dentro de práticas transformadoras colaborativas. A palestra foi em inglês, mas as lâminas expostas estavam em português. O relato:

- a professora começou dizendo que não há nada mais prático que uma boa teoria. E que todos temos uma teoria. O importante é saber como nos referir a ela, de acordo com as diversas situações de ensino-aprendizagem.

A seguir, fez um breve histórico das formas de ensino do passado para o presente, criticando o cognitismo, que predominou até bem pouco tempo, em nosso ensino dito tradicional. O cognitismo, segundo ela, peca pelo individualismo. O ser humano pensa sozinho, sem necessariamente comungar com os demais. Passando à atualidade, citou Piaget, Jewey e Vygotsky (também citou Paulo Freire), como defensores de um enfoque educacional mais humanista, com o ser humano envolvido no contexto, numa visão dialética sobre desenvolvimento e aprendizagem.

Falou, a seguir, em "teoria relacional" , segundo ela um grande marco na história aprendizagem, pois põe balizas ao que até então era tido como definitivo no campo das motivações humanas. E esse fato tem incidências no campo da educação e especialmente no ensino da língua materna, pois até agora pouco tem sido feito para libertar o ensino de línguas da espiral behaviorista que procura partir dos influxos exteriores, o que não tem nenhum valor e nem pode alcançar as motivações intrínsecas que se sedimentaram em cada uma das personalidades dos educandos. Essa teoria aponta para algo ainda mais sério: o processo de formação das motivações dos próprios educadores, pois este influenciará de forma direta suas práticas e, conseqüentemente, as relações estabelecidas com os educandos (o que pode trazer resultados positivos ou negativos, dependendo de variáveis como equilíbrio do professor, ambiente, disponibilidade material, etc).

Também discorreu sobre a "teoria dos sistemas dinâmicos", que consiste numa abordagem que recorre a multidisciplinaridade para fundamentar seus pressupostos. O comportamento humano não obedece a uma progressão linear, ou seja, as variações comportamentais em função do tempo não se dão seguindo uma linha determinada e não maleável. Aqueles que estudam a teoria dos sistemas dinâmicos estão particularmente interessados em saber como um sistema varia ao longo do tempo, passando de um estado estável para outro, devido ao efeito de uma variável específica.

Falou em "teoria ator-rede", que se compreendi bem, seria algo como um estudo para designar um tipo de investigação que visa o mapeamento de situações de um social que não é anterior nas relações entre os atores, mas definido como algo em constante modificação, resultado de entidades surpreendentes, fato que vem quebrar as certezas sobre a composição do mundo em que vivemos. Em um mundo em constante mudança, outros métodos de investigação são necessários para que possam dar conta de campos ainda não explorados, de exigências que se tornam urgentes. Lembro que ela falou em mediação.

Citou Vygotsky para falar na posição ativista transformadora, ou modo expandido; em ponto central da coletividade; em ponto central da transformação; a postura transformadora é uma nova abordagem e metodologia que ajudam a fechar lacunas tradicionais, incluindo teoria versus prática e objetividade versus ética.

Foi concluindo, falando da educação não vista como uma ação no presente, mas como uma ação no futuro.

Terminou citando Vygotsky: "as pessoas precisam compreender as verdades da sociedade, antes que possam compreender suas próprias verdades."

Certamente alguma coisa pode ter ficado confusa neste relato, pois quem conta um conto aumenta um ponto. Mas espero que seja importante para buscarmos mais, pesquisarmos mais essa perspectiva pedagógica.

A cegueira branca

Imaginem uma cidade moderna que represente o mundo contemporâneo, com excelente padrão de vida (isso não exclui o fato de nela haver imigrantes de todas as partes, assim como pobres e moradores de rua). Nesse lugar, de repente, ocorre uma epidemia de cegueira branca que toma conta de um número de pessoas de padrão de vida, cores e raças diferentes. Essas pessoas, à medida que se contaminam, são isoladas em um asilo. Forças externas que tomam conta do local são fortemente armadas. Não entram, assim como impedem qualquer infectado de sair. No gueto, eles tentam se organizar para viver em comunidade. Um reaprendizado de vivência coletiva. O ambiente é fétido, precisa ser limpo. Dividem-se tarefas, distribuem-se em alas. A comida é racionada. Em meio a isso, todas as corruptelas do sistema social reaparecem. Disputa pelo poder, autoritarismo, roubo, submissão, subjugação, humilhação. Violência e mortes são inevitáveis. Agora preciso dizer que no grupo há uma mulher que enxerga. Ela é que guarda a o grupo. Trata de por ordem "na casa". Busca alternativas para solucionar conflitos. Acaba conseguindo fugir com alguns cegos, de volta à cidade. No caminho, encontram rua imundas, pessoas vivendo em condições sub-humanas, disputando comida com cães. Bem, essa mulher busca encontrar um pouco de comida para o grupo, quando consegue quase é linchada pela população cega, mas consegue escapar. Ela senta-se numa escadaria para descansar e observa os cães comendo uma pessoa morta e demais dejetos. Um cão aproxima-se dela e lambe seu rosto. Ela acaricia o cão: ela gosta de cães assim como ama os seres humanos. Reune o grupo em sua casa, todos se banham, almoçam em harmonia, em comunhão. Todos estão felizes. Nesse momento um dos cegos volta a enxergar. Parece que o amor dessa mulher pelas pessoas, seu cuidado, seu carinho, serviu como antídoto para que as cores voltassem a se distinguir no branco. As pessoas voltariam a enxergar.


Vocês viram que estou falando do filme Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meireles, baseado no livro de José Saramago. Revi ontem o filme no canal Telecine Cult e gostei bem mais do que da primeira vez. Antes, o excesso de branco me incomodou, não havia percebido a intenção do diretor em passar a sensação de cegueira que os personagens sentem. Achava que o filme perdia um pouco da beleza estética, o excesso de branco deixava o filme meio "sujo". Mas isso foi intencional e não desmerece o talento do diretor. Os americanos não gostaram do filme. A imprensa internacional o recebeu com frieza. Uma associação norte-americana de deficientes visuais protestou, sob alegação de que o filme era preconceituoso, já que a cegueira das pessoas contaminava umas às outras. E o filme acabou não fazendo sucesso. Uma pena. Para os americanos o que conta é um filme de ação que não leve a grandes interpretações metafóricas sobre os males da humanidade.

Saramago e também Meireles não pensaram numa provável raiz preconceituosa dos vários conceitos de cegueira, quando fizeram suas obras. Besteira dos americanos. A mensagem do filme, no caso, é muito mais do que a maneira de enxergar um filme preconceituoso. Saramago, escritor, ateu e comunista, é conhecido por despertar em seus leitores diversos questionamentos morais e existenciais que habitam em cada um de nós. Acho que a associação dos deficientes visuais norte-americana ficou contaminada pela cegueira branca.

De uruguayos y argentinos

Certa vez, em Florianópolis, a dona de um albergue onde eu me hospedara me dizia que o estabelecimento estava cheio de argentinos, o que colaborava para o aumento dos preços, devido a demanda - naquele tempo o dólar valia muito e nosso pré-real valia nada. Lá, os argentinos se faziam sentir falando alto, tomando conta do lugar com seu estilo barulhento. Um tempo depois perguntei a ela se os uruguaios não visitavam o albergue e ela disse que sim. A temporada deles era em março. Então me veio a pergunta infalível: quem eram melhores clientes, os argentinos ou os uruguaios? Para ela, os argentinos vinham em maior número, dava mais lucro por isso. Mas os uruguaios tinham outro tipo de humor, eram mais educados no sentido de que não extrapolavam no ambiente com falas altas. Eram mais tranquilos.


Uruguaios ou argentinos? Gosto dos dois. Gosto dos argentinos, quando estou em Buenos Aires, seu estilo "explosivo" colabora para fazer da metrópole um charme. Eles tem uma autoestima muito pra cima, se acham bom em tudo. São patriotas. Também são lutadores, quando se trata de reivindicar seus direitos. São politizados. Gosto dos uruguaios, quando estou em Montevidéu, quando vou à fronteira e tenho oportunidade de conversar com eles. Percebo que muitos falam bem português. Não o portuñol, o português. Cometem alguns erros de pronuncia, às vezes misturam um termo nativo na língua, mas desenvolvem bem o discurso. Isso é diferente do portuñol. Os brasileiros falamos, sim, o portuñol. Nos metemos a transformar as palavras terminadas em ão en ón e achamos que estamos falando espanhol. Deveríamos aprender a língua espanhola com mais carinho, estamos cercados de hermanos.

Mas voltando aos uruguaios, gosto deles por serem mais tranquilos em sua forma de tratar. Parece que não têm aquela pressa nervosa dos argentinos. Me identifico mais com os uruguaios, sendo gaúcho. Sempre tive a idéia, desde criança, de que um dia fizemos parte do Uruguai, até que os portugueses nos tomaram ao Brasil. Quarta-feira passada assisti ao programa da Katia Suman na TVCom e tive o prazer de escutar o uruguaio Sebastián Jantos. Música bonita, com toque moderno de folclore pampeano. Cantor do mesmo porte de Jorge Drexler, outro de quem gosto muito. Esse intercâmbio entre Rio Grande e Uruguai/Argentina nos está fazendo muito bem.

O homem criando a vida

Ontem assisti pela televisão à noticia de que o homem havia criado uma bactéria artificial que poderá, futuramente, contribuir para os avanços cientifícos em beneficio do homem. No mesmo telejornal entrevistaram, a seguir, uma professora pesquisadora da Usp, perguntando como ela via esse feito. Ela disse que o via com muito otimismo, visto que o homem estaria, pela primeira vez, criando a vida do "nada". Foi-lhe perguntado se não haveria o perigo de criação de um ser, um animal, algo que pudesse causar algum mal ao homem, bem como uma bactéria que se pudesse proliferar na natureza, causando estrago e mortes. Ela disse não acreditar nisso. Era preciso dar fé à ciência para descobertas importantes dessa natureza.

Eu penso como essa pesquisadora. Também acredito no ser humano e na ciência. A vida é maravilhosa com tudo o que o homem cria - ele fez e faz cultura - transformando e adaptando-se à natureza, para que vivamos com melhores perspectivas de vida. O mal existe. Pessoa há que faça o mal. Mas não é a desconfiança nem o moralismo religioso que deverá prevalecer para o progresso da humanidade.