domingo, 30 de abril de 2017

50. Cem anos de solidão

Quando tinha 8 anos de idade, o avô de Gabriel García Márquez levou-o a conhecer o gelo. Esse acontecimento, que ele relembra em suas memórias de Viver para contar, serviu de ponto inicial para a sua obra-prima Cem anos de solidão, quando o coronel Aureliano Buendía, diante do pelotão de fuzilamento, relembra a tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. A obra é um resgate dos fantasmas que povoaram a vida de García Márquez durante sua infância. Muitas das personagens encontram similitudes na vida real do autor, como ele conta em O cheiro da goiaba, outro livro de lembranças do escritor colombiano.

Publicado em 1967, embora tivesse escrito antes, foi o ponto de partida para o boom dos cinco maiores da literatura latino-americana, que ganhou notoriedade mundial: García Márquez, Vargas Llosa, Carlos Fuentes, José Donoso e Júlio Cortázar. Posteriormente, outros juntaram-se ao boom: Miguel Ángel Astúrias, Alejo Carpentier, Juan Rulfo, João Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, Borges (um pouco mais isolado). Começa a existir, assim, o sentimento de latino-mericanidade. As obras desses autores passam a configurar o realismo mágico, que não se deve confundir com o realismo fantástico. Esse é uma alegoria, enquanto o realismo mágico resulta de um tipo de consciência mítica do mundo. Os personagens desses romances, de certa forma, sacralizam o mundo. Seus destinos já estão marcados desde o nascimento. Esse tipo de característica é pertencente às sociedades arcaicas.

Em Cem anos de solidão, José Arcádio, o patriarca da clã dos Buendía,  tem predileção por descobertas e pelo esoterismo. Trava conhecimento com o cigano Melqúiades, que lhe ensina a magia, ao mesmo tempo em que escreve em uma língua desconhecida os documentos que serão traduzidos por um descendente da família. Na verdade, é Melquíades que escreve os cem anos de solidão da família Buendía. José Arcádio acaba morrendo amarrado a uma amendoeira, louco. Aureliano Buendía, um de seus filhos, é introvertido, apresenta uma imagem taciturna e frágil. O pouco de felicidade que teve na vida, foi quando se apaixonou por Remédios, uma criança. Foi preciso que esperasse a menina adolescer para que se pudesse casar com ela. Ela morre em seguida, quando tenta dar à luz. Depois tem relação com Pilar Ternera, uma índia que jogava cartas e búzios. Figura centenária em quase toda a obra. A descendência dos membros da família apresenta relações incestuosas. Por isso a loucura se manifesta em mulheres solitárias e secas, como Rebeca, que comia terra, Amaranta, que recusou todos os pretendentes apesar de amá-los. Úrsula, a matriarca, temia que nascesse alguém com rabo na família, o que acabou acontecendo com o último dos Buendía, um Aureliano.

O Coronel Aureliano Buendía teve seus primeiros contatos com as tensões políticas,  com as eleições que aconteceram em Macondo. É quando aprende a distinguir um liberal de um conservador. Acaba simpatizando com os liberais. Ser liberal não consistia em ser um ser com lisuras, Aureliano Buendía praticava a violência com seus inimigos e a corrupção, pelo poder. Aureliano será um dos que lutam na Guerra dos Mil Dias, que ocorreu no período de 1896 a 1902, na Colômbia, quando os conservadores vencem. Há um longo período de ditadura, onde os liberais são perseguidos. Na vida de García Márquez, seu avô simpatizava com os liberais, mas seu pai era político conservador. Por isso não há defesas de um regime ou de outro.

Aureliano morre numa tarde solitária de outubro, passando a ser uma lenda viva para todos de Macondo e arredores. Morreu velho, triste, taciturno e ensimesmado, exatamente como fora na juventude. O ciclo do Coronel Buendía é um ciclo de solidão, que acaba dando nome ao livro. Os 17 filhos que teve com 17 mulheres diferentes, todos Aurelianos e Arcádios alguma coisa, todos assassinados, todos com um ar de solidão que não permitia pôr em dúvida o parentescos com o coronel Aureliano Buendía.

É um livro riquíssimo, com várias histórias que se cruzam e se mesclam formando o todo do universo de Cem anos de solidão.
     
Tradução de Eric Nepomuceno
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Gabriel García Márquez. Cem anos de solidão. 46ª ed, Record, 2009, 448 pp. 


domingo, 23 de abril de 2017

49. Rayuela – o jogo da amarelinha

O Jogo da Amarelinha não tem cronologia, não tem enredo convencional, nem suspense. É uma espécie de antirromance. A história, de forma ambígua, faz o leitor mergulhar no livro intuitivamente, para enxergar o que seja a realidade. O argumento é aparentemente simples: o argentino Horácio Oliveira busca incessantemente a Maga, uruguaia, mãe de um menino, que ele conhecera em Paris, enquanto estava lá exilado. Após a morte do menino, a Maga desaparece e Oliveira a busca pela cidade parisiense e depois em Buenos Aires, quando entra em contato com Traveler, administrador de circo, e Talita, sua mulher. À medida que esse relacionamento avança, Oliveira vai confundindo em sua mente a presença de Talita com a de Maga. Os três decidem trocar de negócio, comprando um hospício, onde Oliveira, no final da história, acaba internado como maníaco. 

Quando Oliveira inicia a busca pela mulher, sobre uma ponte em Paris, o leitor já fica sabendo que a busca do personagem será uma busca perdida, posto que a primeira frase do romance é a fala de Oliveira, dizendo com o verbo no futuro do pretérito: "Encontraria a Maga? Mas Oliveira tenta, em vão, recuperá-la pela narrativa numa divagação frustrada pelas pontes e ruas de Paris, depois no trabalho com o circo, em Buenos Aires.

O livro é dividido em três partes: "Do lado de lá", ambientada em Paris;" Do lado de cá", em Buenos Aires; e "De outros lados", com capítulos prescindíveis, que se tornarão imprescindíveis, de acordo com a escolha do leitor. São no mínimo dois romances dentro de um. Cortázar convida o leitor a escolher uma das duas possibilidade que o livro oferece: o primeiro livro seria lido em sequência, até o capítulo 56, quando termina a história. O segundo livro começaria a ser lido a partir do capítulo 73 e seguindo logo na ordem  que é indicada ao final de cada capítulo. Essa segunda possibilidade tem a ver com o jogo da amarelinha. O leitor avança, retrocede, avança novamente e assim sucessivamente.

Cortázar pensa a obra de arte como uma condensação de significados. A proposta do autor, sugerindo ao leitor começar o livro no capítulo 73, parte da destruição radical de sua estrutura, para inovar na experimentação da linguagem, pois o romance é projetado em sua própria construção. Ao propor a leitura aos saltos, um jogo, o autor acrescenta  desdobramentos ou comentários poéticos sobre o romance que se vai construindo, com a participação do leitor, pois é este que vai consumar a obra, gestando-a à medida em que a lê.

Há um personagem enigmático que aparece na leitura aos saltos: Morelli, que faz parte das conversas dos intelectuais integrantes do Grupo da Serpente de Paris, que se reuniam periodicamente para discutir as coisas da vida. Morelli é um escritor que não escreve, uma espécie de filósofo idealista, ou então, alguém que escreve um romance em eterna gestação. Morelli é mencionado na possibilidade de leitura sequencial como um velho escritor que morre atropelado, sem que lhe mencione o nome.

Tradução de Fernando de Castro Ferro
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Julio Cortázar. O jogo da amarelinhas. 22ª Ed. Civlização Brasileira, 2014, 640p.

domingo, 16 de abril de 2017

48. A paixão segundo G. H.

A escrita é um ato de solidão. Ninguém pode fazer nada a ninguém, a não ser o escritor a si mesmo. A escrita literária é pura abstração poética. Uma das funções da linguagem poética é mostrar as coisas que não acontecem no convívio social. GH não tem memória empírica, é pura abstração. Está no quarto de empregada e logo mais num minarete no deserto. GH sonha em se objetivar, mas é medrosa: “Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.” (p.8) Mesmo assim insiste, quer  escrever sobre o que não tem controle, quer compartilhar sua individualidade.

A paixão segundo GH não é um mergulho na loucura nem no inconsciente por si só. Sua luta deve ser a busca com o mundo. Está tentando dar uma forma à sua desorientação. GH quer a objetividade: “Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?” (p.16)

Ela precisa dizer, mas não sabe como.  Ao entrar no quarto da empregada que se fora, para arrumá-lo, depara-se com uma barata no guarda-roupa. Num impulso prensa o inseto na porta do móvel. Pronto! Deu-se o fluxo do inconsciente. Esse é o ponto de partida para a narrativa introspectiva. A personagem, perdida no exercício da memória, esforça-se para reorganizar o seu discurso, solicitando a atenção do leitor como a mão que a apoiará nessa tentativa de reorganização caótica da memória. No romance quase não há ação externa. Ficamos sabendo que mora sozinha, é independente financeiramente, é escultora, fez um aborto e amou um homem, mas esses acontecimentos externos não são desenvolvidos, não adquirirem importância na obra. O que vale é seu labirinto interior.  

A paixão segundo GH é um romance metafísico. Trata-se de um monólogo centrado na experiência da linguagem. O eu e a coisa. GH e a barata (que inicialmente é nojenta). O romance é uma narrativa poética, como já se disse. GH efetua uma busca existencial, própria da poesia. O tempo interior é o que predomina, com suas angústias e seus gestos.

“Viver não é coragem, saber que se vive é a coragem.” (p.20)


Clarice Lispector. A paixão segundo GH. 6ª ed., Nova Fronteira, 1979, 176 pp

domingo, 9 de abril de 2017

47. O Gattopardo

A Sicília é o pano de fundo para o grande romance O Gattopardo,  obra póstuma de um escritor desconhecido dos grandes meios literário, Tomaso di Lampedusa (1896/1957), que morreu antes da obra ser publicada. Oriundo da classe aristocrática, Lampedusa narra o declínio e a decadência de uma família nobre e do feudalismo siciliano, numa atmosfera pitoresca e grandiosa.

A história começa em 1860, na guerra em que Garibaldi une as duas Sicílias, propiciando o surgimento e enriquecimento da classe burguesa, formando uma nova Itália. Em seu palacete na vila de Salina, em Palermo,  acompanha os fatos com certa apreensão, por estar totalmente envolto nas tradições e hierarquias. Por isso, vivia eternamente descontente, contemplando o ruir de sua casta e do seu patrimônio sem nada fazer e sem nenhum desejo de remediar o desastre que se vislumbrava no ambiente político da Itália. Em vez disso, pensava na linda família que tivera. Tinha sete filhos, um deles, o mais amado, estava ausente há dois anos. Um dia sumira de casa e nada se soube dele durante dois meses. Até que chegara uma carta de Londres, em que se desculpava pelos transtornos causados, afirmando preferir a vida modesta de funcionário de uma empresa de carvão à existência excessivamente protegida nos confortos de Palermo. O príncipe tinha a esposa com crises de histerismo, excessivamente pudica - nunca lhe vira o corpo desnudo

Próximo à propriedade dos Salina, havia uma vila semidestruída, pertencente a Tancredi, seu sobrinho e pupilo. Seu pai perdulário dilapidara toda a fortuna, morrendo em seguida, quando Tancredi tinha 14 anos. O rapaz, inicialmente quase um desconhecido, tornara-se muito querido do Príncipe, que percebia nele um entusiasmo briguento. Agora, aos vinte anos, Tancredi entregava-se ao ócio e aos prazeres com o dinheiro que o tutor não lhe negava, mesmo tendo de tirá-lo do próprio bolso. O sobrinho  acaba simpatizando com a causa de Garibaldi, lutando a seu lado. Isso desagradou o príncipe, que no entanto não deixou de amá-lo.

A situação política na região estava muito tensa, temia-se a invasão de piemonteses próximo a vila Salina e as autoridades haviam detectado na população uma efervescência silenciosa, a escória da cidade esperava o primeiro sinal de enfraquecimento do poder para lançar-se ao saque e ao estupro. Mas o príncipe preferia não pensar nesses acontecimentos. Mantendo a calma, pediu permissão a Giuseppe Garibaldi para viajar à região de Ragusa, na vila de Donnafugata, onde tinha outro palácio, igualmente suntuoso.

Lá chegando, trata de dar uma festa solene para saudar a nobreza do lugar. Lampedusa descreve em detalhes primorosos a preparação do banquete, desde a arrumação da mesa, o lustro das louças e a decoração da sala, deixando no leitor imagens completas do ambiente. O momento da entrada de Angélica, filha de Don Calógero, um aristocrata arruinado, é outro momento brilhante da narrativa.

Tancredi toma-se de amores por Angélica e os dois acabam casando, para desgosto de Concetta, filha do Príncipe, apaixonada pelo jovem. Há uma série de acontecimentos importantes, até  o príncipe voltar a Palermo, quando a cidade vivia de relativa calma e os bailes pela cidade se multipicavam. O Príncipe comparece a um desses bailes, na companhia de Tancredi. Em certo momento, sofre um mal súbito e é retirado do baile pelo sobrinho que busca levá-lo a um hospital, mas param num hotel decadente para que Don Fabrício pudesse descansar um pouco. O príncipe piora e acaba morrendo pouco depois.

Nos sete primeiro capítulos, os acontecimentos se dão em curto espaço de tempo, no mesmo ano, 1860. No oitavo e último capítulo, há um salto de 50 anos após a morte do Príncipe. Estamos em 1910 na residência da família, onde as três filhas remanescentes e solteiras, Concetta, Catarina e Caterina, recebe a visita de Angélica, já viúva, para confortar as três irmãs profundamente ofendidas pela inspeção da sua capela  por um membro da Igreja, que considerou relíquias que elas tanto amavam, como objetos descartáveis para ornamentar o local. Quando ficam a sós, Concetta retira-se para seu quarto, amargurada pelo amor não correspondido de Tancredi.

Tradução de Marina Colasanti

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Giuseppe Tomasi di Lampedusa. O Gattopoardo. 2ª ed., Rio, Record, 2006, 306 pp.

domingo, 2 de abril de 2017

46. O Quarteto de Alexandria

O Quarteto de Alexandria é a história da vida e amores de um jovem britânico, Darley, que vive no Egito antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Darley tem casos de amor com três mulheres: Justine, Melissa e Clea. Lawrence Durrell (1912/1990) acreditava na ideia de que experimentando as variedades de amor, se poderia ascender do contato físico cru para formas superiores de conexão espiritual. Assim, cada uma das principais personagens incorpora um ou mais aspectos do amor ocidental. Justine representa o poder da paixão sexual, Melissa, afeto de caridade,e  Clea, a alma gêmea de Darley. Mas, o que se percebe no desenrolar dos quatro romances, é que o amor  está falido, os personagens procuram, mas não conseguem encontrar relações apaixonadas. Embora centrada nas relações humanas, há um foco paralelo, menos intenso, centrado nas relações políticas da região, ocupada pela Inglaterra, com o Egito e outros países árabes buscando sua independência.


Justine

No início de sua vida em Alexandria, Darley conhece Melissa dançando em um cabaré. Passam a viver juntos numa pobreza profunda, pois sua renda exígua como escritor não permitia nem mesmo frequentar o cabaré onde Melissa trabalhava. Com o tempo, conhece Nessim, rico empresário, e através dele começa a transitar com alguma desenvoltura pela imensa teia da sociedade alexandrina como convidado. Ficaram amigos rapidamente e passou a acompanhá-lo nos mais diversos lugares. Desde então, conhece a esposa de Nessim, Justine, por quem se apaixona profundamente.

Com o desenrolar da história, ficamos sabendo que Justine fora violada na adolescência, tivera uma filha que se encontra desaparecida, estivera casada com um velho rico, de quem se separou logo em seguida. Depois, casou-se  com Nessim, também mais velho que ela. Darley torna-se amante de Justine. O incômodo desse relacionamento, é que quanto mais ele tentava amá-la e compreendê-la, mais distante ela se tornava dele. Ele descobre que Justine tinha outros amantes, inclusive um relacionamento rápido com Cléa, uma pintora aristocrática. Um dia Justine desaparece da vida de todos. Mais tarde, Clea conta que, numa viagem que fizera a Síria, parara em Israel e encontrara Justine, trabalhando num kibutz. Paralelamente, Melissa conta a Nessim, que Justine mantinha um caso com Darley. Esperançoso de que a mulher um dia voltasse a ele, pede a ela que mantenha esse fato em segredo.

Melissa acaba doente e morre, deixando uma filha pequena que tivera com Nessim. A história termina onde começa, com o narrador chegando a Alexandria para o enterro de Melissa, passando a adotar a menina.


Baltazar

Publicado em 1958, representa uma mudança de ângulo, em relação a Justine, divulgando novas informações que mudam a história do caso de amor do narrador com Justine. Este segundo volume, apresenta a história vivida por eles sob o ponto de vista de Balthazar,  personagem discreto no volume anterior. Era em sua casa que a intelectualidade de Alexandria costumava se encontrar de vez em quando.

A novela começa como no romance anterior. Darley encontra-se isolado numa ilha grega com a filha de Melissa, buscando colocar em texto  o que Justine, Melissa e Clea representam para ele. Enquanto terminava o livro, não mais enxergava suas amantes e seus amigos como pessoas vivas, mas como imagens coloridas de sua mente, habitando seu manuscrito. No entanto, quando escreveu seu esboço, não dispunha de todos os fatos, deduzindo, muitas vezes, através de suposições.

De repente, recebe uma carta de Balthazar, afirmando que tem um manuscrito com verdades reveladoras a respeito de todos. Até então, Darley encontrava-se mergulhado nas revelações dos diários de Justine, revelados pelo seu primeiro marido. Assim, avisa ao escritor que lhe enviará seu manuscrito sobre os acontecimentos que o cercaram.
Darley recebe os manuscritos diretamente de Balthazar, repleto de observações manuscritas nas margens do texto. Após a curta conversa que tiveram, Balthazar parte com o amante, deixando-lhe um grande problema: como encontrar uma maneira de introduzir esse material novo e perturbador sob a pele do antigo, sem modificar ou destruir os contornos que dera a seus personagens.

Nas observações de Balthazar, Justine saíra do nada, forçando-se a trabalhar por um tempo como modelo para os estudantes de um ateliê, ganhando uns cobres por hora. Clea, certo dia,  passou pela galeria e ficou impressionada pela  beleza sombria e alexandrina de seu rosto e contratou-a para um retrato. Logo depois, deu um golpe astuto, casando-se com Arnauti, um estrangeiro, apenas para ganhar o desprezo da sociedade ao permitir que ele a abandonasse. O dois tiveram uma menina, a quem não davam bola. Certo dia, ela e o marido estavam com a filha junto a um lago, quando a menina desapareceu, sendo encontrada depois afogada. O fato marcara profundamente a vida dos dois, Justine justificava aos demais que a filha havia sido sequestrada. 

Justine e Arnauti separam-se e logo em seguida Nessim, que já era apaixonado por ela, busca aproximar-se para casarem e viverem juntos. Ele não se importa que ela não o ame, partindo para visitar a família e comunicar à mãe, Leda, o desejo de casar-se com Justine. A mãe era uma mulher fútil, amante de um diplomata mais jovem, 

Mountolive, que irá protagonizar o terceiro volume da tetralogia. Leda, apesar da ressalva a Justine pelo fato dela ser judia, concorda com o casamento. Nessim tinha um irmão que administrava os bens da família no interior, Nahriz, um homem complexado por ter o lábio leporino. Nariz apaixona-se por Clea.  Buscando saber mais informações sobre o paradeiro da filha de Justine, Nariz procura uma espécie de feiticeiro árabe, que tem uma visão de que a filha de Justine encontrava-se com ela e o marido em um lago e a menina desaparecera nas águas.


Mountolive

Publicado em 1958, é o terceiro volume da série.  Nele, Lawrence Durrell apresenta os fatos de Justine e Balthazar através de uma perspectiva nova, com um narrador em terceira pessoa, que conta a vida do embaixador britânico Mountolive, que esteve por duas vezes no Egito, especialmente em Alexandria. O romance apresenta certo clima de romance policial, onde há complôs, traições e mortes, além de um impasse diplomático, envolvendo o Reino Unido, o Egito e a Palestina. Não nos esqueçamos que a trama dos quatro romances ocorrem antes da Segunda Guerra Mundial, quando o Estado de Israel ainda não havia sido demarcado.

Mountolive esteve pela primeira vez no Egito com a intenção de estudar melhor a língua árabe, já que poderia ser útil pela embaixada britânica futuramente ali. Quando chega, entra em contato com a família Hosnani,  coptas (egípcios cristãos), donos de grandes posses. Convidado pelo pai de Nessim a permanecer aquele tempo em uma de suas propriedades, para manter o contato com a língua mais estreito, Mountolive aceita e acaba sendo amante de Neila, mulher do patriarca, este paralítico. O embaixador fica sabendo que o casamento dela com o marido, bem mais velho, fora arranjado, para unir a fortuna das duas famílias. Através de conversas com Nessim, toma conhecimento de que os coptas encontravam-se oprimidos pela soberania dos muçulmanos no país, sublimando sua cultura cristã.

Mountolive retorna à Inglaterra e depois de prestar serviço em outro país, é nomeado embaixador no Cairo. Em seguida, recebe o relatório de um tal de Maskelyne, membro da embaixada britânica, denunciando uma conjuração copta contra o governo egípcio, comandada por Nessin Hosnani. Em conversa entre os dois, sobre o relatório, toma conhecimento de que os Hosnani não eram muito confiáveis. Nessin estaria contrabandeando armas para a Palestina, para prover Israel de um futuro levante. Para isso casara-se com a judia Justine, com o fim de trabalhar melhor o complô e manter contato mais direto com Israel.

Através de Mountolive, ficamos sabendo que Nessim estava sendo monitorado, em relação ao complô contra os árabes. Também sabemos que Marley foi usado por Justine e Nessim para controlar Melissa, amante de Marley e que tivera um caso com alguém que conhecia as tramoias sobre a insurreição copta. Naruz, irmão de Nessim, ameaça os planos do irmão, incitando os coptas do campo a formarem um exército para tirar do poder os egípcios muçulmanos. Isso soou como uma ameaça aos planos do grupo e Naruz acaba sendo morto.


Clea

Darley, novamente o narrador do quarto romance, recebe o convite de Nessim e Justine para voltar a Alexandria, para que o casal possa ver a menina. A Segunda Guerra já se iniciara. Ao desembarcar no porto, é recebido por soldados britânicos que lhe dão ordem de se encaminhar à embaixada. Como o escritor deixara partes de seus pertences lá, não se opõe à ordem. Ainda no porto, é recebido por um Nessim diferente, havia perdido um olho e um dos dedos da mão e vestia um uniforme. O egípcio o convida para irem ao solar, onde se encontra Justine. Durante o jantar, sente uma atmosfera pesada, onde é possível sentir o ódio entre Nessim e Justine. Fica, então, sabendo que Nessim vivia em liberdade vigiada, desde que sua conspiração fracassara, e Justine vivia presa no Solar.

Quando Justine e Darley ficam a sós, ela lhe questiona como pode ele perdoar a traição dela, sem guardar rancor. Enquanto ela fala, ele fica pensando que sua Justine havia sido realmente a criação de um ilusionista, sustentada por uma estrutura defeituosa composta de palavras, ações e gestos mal interpretados. O verdadeiro responsável pelo que acontecera entre os dois, era seu amor, que inventara uma imagem da qual se alimentou. O perfume inebriante que ele sentira nela, agora era insuportável. A imagem outrora magnífica de seu amor se esvaíra. Tornara-se, enfim, uma mulher asquerosa e gasta, como se um portão de ferro se fechasse entre eles.

Justine lhe conta que quando o plano deles sobre a Palestina ruiu, os judeus o acusaram de traição com os ingleses, e  em seguida ele se dirige à embaixada britânica e recebe, contrariado, a notícia de que o embaixador Mountolive o havia nomeado para trabalhar no departamento de censura da embaixada. Depois, encontra Clea e tornam-se amantes. Através dela, o escritor reencontra Balthazar, velho e amargurado pela velhice e a solidão numa Alexandria, envolta numa atmosfera de apreensão e nostalgia, sofrendo as consequência da Segunda Guerra Mundial.

Clea reúne as peças que faltavam ao quebra-cabeça, possibilitando compreender a totalidade da narrativa. O romance  se constitui no desfecho da tetralogia de Lawrence Durrell. Se nos três romances anteriores, a mesma história é vista de três pontos de vista diferentes, em Clea temos a continuação, pelo avanço do tempo.

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Lawrence Durrell. O Quarteto de Alexandria. 4 volumes. Rio, Ediouro, 2006. Tradução de Daniel Pellizzari