domingo, 29 de setembro de 2013

o sonâmbulo amador

Jurandir trabalha em uma fábrica de tecelagens. Está próximo à aposentadoria. Então, recebe a tarefa de resolver um problema trabalhista com um empregado da empresa que sofreu queimaduras no local de trabalho. Ao sair com o carro da empresa para visitar o empregado enfermo comete um ato insano e é internado em uma clínica para doentes mentais.

Lá, sente que a loucura, paradoxalmente, revela a lucidez de que viver dói. Incentivado pelo médico da clínica, começa a escrever suas memórias e sonhos, que o ajudam a reconstituir sua vida e enfrentar acontecimentos traumáticos, como o acidente que o deixou manco e a perda do filho num acidente de moto.
O sonâmbulo amador é o segundo romance do escritor pernambucano José Luiz Passos (1971). Narrado em primeira pessoa, divide-se em quatro cadernos que narram a fala aparentemente confusa e desarrumada de Jurandir, revelando seus pensamentos interiores, cheios de mágoa. Jurandir busca clarear o escuro de sua alma, enfrentar fatos dramáticos para tentar definir-se como sujeito, tentar compreender os labirintos que sua consciência cria, trazendo-lhe tristeza. Tristeza que não chega a constituir uma tragédia, apesar da força dos fatos.. Memórias e sonhos  escondem-lhe mistérios, criam armadilhas que confundem o limite entre a imaginação e o acontecido. O autor soube equilibrar isso de forma harmônica.

Apesar de jovem, José Luiz Passos nos apresenta em O sonâmbulo amador uma prosa madura e segura. O escritor vive atualmente nos Estados Unidos, onde leciona literatura e escreve.

                             paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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José Luiz Passos. O sonâmbulo amador. RJ, Objetiva, 2012, 270 pp R$ 39,90

domingo, 22 de setembro de 2013

A verdade das mentiras


Dessa vez, vamos comentar um livro sobre os romances. A verdade das mentiras, de Mário Vargas Llosa, debruça-se sobre 36 romances do século XX, que ele selecionou e releu, muitos anos depois, para analisar aspectos dessas obras, diferentemente da intenção primeira que o autor teve, ao lê-las pela primeira vez, quando jovem. Lançado em 2002, contém  ensaios independentes selecionados arbitrariamente e ligados por um denominador comum: de que a missão do romance é mentir de forma persuasiva, passar por verdade as mentiras.
Vargas começa afirmando que, de fato, os romances mentem, pois não podem fazer outra coisa. Mentindo, expressam uma verdade curiosa que só pode se expressar escondida, disfarçada do que não é. Isso acontece porque os homens não estão contentes com seu destino rico ou pobre, medíocre ou genial, célebre ou obscuro: gostariam de ter uma vida diferente da que vivem. Por isso, nos diz Llosa, surgiu a ficção. Na ficção, os leitores podem ter as vidas que não se resignam a não ter. No embrião de todo o romance ferve um inconformismo, pulsa um desejo satisfeito.

Mas, Vargas Llosa adverte: isso não significa que o romance é sinônimo de irrealidade. A verdade e a mentira no mundo da ficção estão semeados de armadilhas. Não se escrevem romances para contar a vida, mas para transformá-la, acrescentando-lhe algo. Todos os romances refazem a realidade, embelezando-a ou piorando-a. Nesses acréscimos sutis ou grosseiros à vida, nos quais o romancista materializa suas obsessões secretas, reside a originalidade da ficção.
Isto posto, ele nos fala de O coração das trevas (Conrad), Morte em Veneza (Mann), Dublinenses (Joyce), Mrs. Dalloway (Woolf), O grande Gatsby (Fitzgerald), O lobo da estepe (Hesse), O estrangeiro (Camus), A revolução dos bichos (Orwell), O velho e o mar (Hemmingway), Doutor Jivago (Pasternak), O tambor (Grass), Afirma Pereira (Tabucchi) e mais 24 obras que fizeram sucesso no século XX. Trata-se de ensaios curtos – média de 6 a 7 folhas, escritos de forma brilhante, numa linguagem acessível, discorrendo sobre o propósito da literatura, o futuro dos livros e o modo como a ficção transforma nossa experiência vital.

A tradução excelente é de Cordelia Magalhães. Lamentavelmente, estamos diante de mais uma obra de qualidade esgotada. Mas não desanime, nos sebos virtuais é possível encontrar um exemplar seminovo por um preço médio de 33 reais. Mas compre logo, porque são poucos disponíveis!
                        paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Mario Vargas Llosa. A verdade das mentiras. 3ª ed, SP, ARX, 2004, 368 pp.

 

 

domingo, 15 de setembro de 2013

O amor nos tempos do cólera


O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, é um romance que trata de um amor fora de moda. É a história de um homem que ama uma mulher profundamente e conserva seu amor intensamente por toda a vida.
O romance começou a ser escrito em 1984 em Cartagena de Indias, logo após o autor ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura. García Márquez se vale de alguns dados históricos da cidade, como a epidemia do cólera que assolou a cidade no final do século XIX, assim como o naufrágio do galeão espanhol San José, que carregava joias. Também aparecem hábitos, costumes e preconceitos da sociedade colombiana da primeira metade do século XX, o empobrecimento do país e as inúmeras guerras que assolaram a Colômbia nesse período.

A questão social também é um dado importante na narrativa. Trata-se de dois jovens de extratos sociais diferentes. Florentino Ariza vive com a mãe numa meia casa alugada, onde tinha uma loja de armarinho e também desfiava camisas e panos velhos que vendia como algodão para os feridos de guerra. Seu pai morre quando ele tinha 10 anos, sem reconhecê-lo. Cedo teve de largar os estudos para trabalhar. Um telegrafista interessa-se pelo jovem e lhe ensina o ofício, que mantém por bom tempo. Fermina Daza, a jovem, vinha de uma família que enriquecera de forma obscura. Seu pai tinha vínculo com contrabando e falsificações. Isso vem à tona quando o pai, falido, insiste para a filha casar-se com o médico rico e influente, Juvenal Urbino. Fermina, que inicialmente correspondia às investidas de Florentino, muda de ideia e casa-se com o médico, vivendo juntos por mais de 50 anos. Quando o médico morre vítima de uma queda absurda,  Florentino busca se reaproximar e declarar à velha senhora que continua amando-a com a mesma intensidade de sempre. Ela o rejeita de forma bruta. Mas ele não desiste.
Florentino coloca a esfera do sentimento como o sentido de sua vida. O amor que sente por Fermina é aquele que ninguém sentirá como ele sente. A guerra, o cólera ficam para segundo plano em função do amor de Florentino por Fermina. O sentimento dele  representa o sentido absoluto do amor. Recusado por ser pobre, busca enriquecer para que um dia possa conquistá-la.

García Márquez, como sempre, faz uso da memória e do tempo para contar sua história. O incentivo para o romance veio do amor de seus pais. Quando os dois se conheceram, o pai de García Márquez tinha uma vida simples, era telegrafista. O pai de sua mãe não permitia o casamento, até que de tanta insistência do noivo, os dois acabaram casando. As características dos personagens do romance, entretanto, seguem outras características psicológicas. O autor usa de recursos temporais para contar a história. Tudo começa na velhice, com a morte do médico, a seguir volta ao presente, para contar as coisas do princípio, do velório do médico à reaproximação de Florentino. A história é contada com o humor característico do escritor colombiano, embora a velhice seja mostrada com dureza, sem descambar para o grotesco.
A tradução da editora Record é de Antônio Callado.

                                 paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Gabriel García Márquez. O amor nos tempos do cólera. 27ª ed, Rio, Record, 2005, 434 pp. R$ 53,00          

domingo, 8 de setembro de 2013

Os dragões não conhecem o paraíso

Caio Fernando Abreu nos avisa em Os dragões não conhecem o paraíso, que os textos podem ser lidos como histórias autônomas. Também podem ser lidos, fazendo parte de um romance móbile, em que as partes se interligam formando um todo, de acordo com o gosto do autor.
Em Linda, o personagem narrador volta para morar com a velha mãe solitária, está com sintomas da AIDS na pele. Em O destino desfolhou, ele relembra a infância e adolescência, quando teve contato com a morte na presença de Beatriz, antigo amor que morreu de leucemia na adolescência, virando uma estrela. Em À beira do mar aberto, relata a paixão não revelada pelo outro. Em Semana, blues, as marcas da ausência de Ana em sua vida, sem que soubesse os motivos. Vodca, lágrimas e café; os ciclos da terapia, psicodramas,  sonhos junguianos, promessas a Santo Antônio; o mundo tornando-se, aos poucos, um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Em Saudade de Audrey Hepburn, um cara solitário caminha pela noite paulistana, como à procura de um outro que perdera numa véspera de São João. Nessa trajetória de lembranças, a presença das entidades do candomblé. Em O rapaz mais triste do mundo, um homem solitário no fundo de um bar guei observa um homem também solitário de 40 anos que pega uma cerveja e senta numa mesa onde há um rapaz de uns 20 anos. Os dois se evitam, não se olham, não se falam. Esse rapaz parece ser o rapaz mais triste do mundo. Ele é, com os outros e com o leitor, um único homem perdido na noite, cercado de álcool e muita solidão. Sapatinhos vermelhos é o fetiche de uma mulher de meia idade, curtindo a fossa de uma separação na madrugada de uma sexta-feira santa. Num quarto da cidade grande, sofrendo de tédio e com ideias de suicídio, lembra da praiazinha de areia bem clara, no meio da sanga, em Passo do Guanxuma (cidade ficcional presente na obra de Caio), onde teve um encontro com Dudu há sete anos atrás, que teria motivado, quiçá, sua ida para São Paulo. Para fugir à ideia do suicídio ela escreve uma carta a Dudu. Em A dama da noite, ela, numa boate, bêbada, espera aquele um que virá buscá-la de uma hora para outra. Ela aluga um jovem para despejar seus demônios, é a dama da noite que envenena, contamina o sangue com todos os vírus, é a dama infeliz que, a cada noite, naquele bar, se mata e contamina a si mesma com a solidão dos desamados. Em Mel e girassóis, um homem e uma mulher passam férias sozinhos num hotel à beira-mar. Casualmente, fazem contato e vão se aproximando até um aparente happy-end, posto que quando os dois se descobrem, é véspera de cada um voltar a suas origens. Em A outra voz, morte e esperança. No conto Pequeno monstro, sabemos da presença de um primo que vem passar férias na praia e desencadeia a descoberta da sexualidade em um adolescente. A solidão é o tema de Os dragões não conhecem o paraíso, porque não precisam ser aceitos. Fogem do paraíso banal que inventamos, porque detestam o mundo perfeito que inventamos, onde nada dói, numa eterna monotonia de falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia. Os homens precisam da ilusão do amor para não afundarem no poço da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

                         paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Caio Fernando Abreu. Os dragões não conhecem o paraíso. Rio, Nova Fronteira, 2010, 192 pp. R$ 39,90

domingo, 1 de setembro de 2013

A natureza trágica de Adonias Filho

Carlos Nejar divulgou há pouco tempo no programa Globonews Literatura sua monumental História da Literatura Brasileira (da carta de Caminha aos contemporâneos). Durante a entrevista, referiu-se a Adonias Filho como o grande escritor que havia sido relegado a segundo plano pelos estudiosos da literatura brasileira, por questões ideológicas. Nejar não dá detalhes sobre a afirmação, mas se o fato ocorreu por causas ideológicas, poderia ter sido, talvez, porque o autor serviu ao governo militar, tendo sido membro do Conselho Federal de Cultura, de 1969 a 1973, período áureo da ditadura militar, e de 1977 a 1990, ano de sua morte. Hoje, entretanto, sua obra está sendo revalorizada e reeditada. Adonias Filho foi membro da Academia Brasileira de Letras.

A obra do baiano Adonias Filho (1915/1990) é carregada de imagens fortes, retratando o sentimento trágico da vida. Suas personagens, por vezes, vivem a dolorosa miragem gerada pela mata. Perto de Itajuípe, vizinha a Ilhéus, onde nasceu o escritor, acontece quase toda sua narrativa. A maior parte de suas  personagens são bugres, índios e pequenos agricultores arruinados, ao contrário de Jorge Amado que situou alguns romances no ciclo do cacau, com personagens negros ou mulatos. As personagens de Adonias Filho são seres embrutecidos pela paisagem hostil, em vales secos. As pedras, cobrindo a planície, rasgando o chão, são como dentes afiados, limados, cortantes, formando mandíbula fechando a passagem, constituindo a fronteira de outro universo. Aí caminha o homem, em conflito entre um corpo destrutível e uma alma sem governo, em agonia, numa região onde se permite o crime, o calor do ambiente sufocando o coração do homem que já não se considera humano. Carecem, então, de sentimento. A violência substitui o afeto, muitos são tratados como se fossem bichos.


Memórias de Lázaro, narra a vida de Alexandre, separado criança dos pais e sendo criado por um tio. Em sua vida não há lugar para afeto. Quando isso acontece, a natureza de seu destino muda e elementos trágicos mexem seu destino, que sempre lhe foi dura, num universo sem lei nem rumo, mantendo-o trancado em si mesmo, na busca de uma experiência qualquer para os mistérios do mundo e do ser.

Corpo Vivo, situado ainda nesse universo duro e cruel, narra a vida de Cajango, que teve toda a família morta por jagunços, quando tinha 11 anos de idade. Auxiliado pelo padrinho, é levado a viver com um tio, um bugre rude que lhe ensina a forjar o ódio para vingar a morte da família e restituir as terras que lhes foram roubadas. Entretanto, quando o afeto se faz presente em sua vida, quando se apaixona por Malva, seu destino é alterado e o sentimento trágico da vida e da morte passa a acompanhá-lo.
O Forte narra uma história de amor mal costurada entre Jairo, um médico, e Tibiti, a neta do negro Olegário, que matou o genro para salvar a filha e a neta. Olegário julgado e feito prisioneiro no forte que guarda trezentos anos da história da Bahia e de como Olegário e Jairo se conheceram. A destruição do forte representa um recomeço na vida de Jairo e Tibiti. O romance carece da carga dramática dos romances anteriores. Aqui, a violência humana está mais dosada.
Léguas da Promissão é um livro de novelas. Apresenta o mesmo universo hostil e trágico que o autor gosta de retratar. Desse universo destaca-se a novela Um anjo mau, narrativa muito bem construída e que me impressionou muitíssimo. Açucena, que teve sua vida destruída pela violência física e sexual, é vingada pelo homem de sua vida, para que assim possa esquecer o passado.  
As velhas deu o Prêmio Jabuti de melhor romance a Adonias Filho em 1975. O romance narra a história de quatro velhas cujos acontecimentos se entrelaçam. Tari Januária, índia pataxó, pede ao filho Tonho que lhe traga os ossos do pai, morto em emboscada, para ser enterrado junto à família. Zefa Cinco, a pistoleira que matou o pai de Tonho, propõe entregar-lhe os ossos do pai, em troca da neta que estava longe em péssimas condições de vida. Zonga, a rainha negra, de quase dois metros de altura, representa a trégua na vida de Tonho em sua trajetória. E Lina de Todos, a que se recusou a ser mulher de um homem só e teve inúmeros filhos que desbravam a selva do sul da Bahia para o plantio do cacau; ela ajuda Tonho a conseguir seu intento. Quatro velhas marcantes em sua autoridade, em suas lembranças, seus rancores e cegueira vingativa.
Luanda Beira Bahia, três lugares ligados pela etnia negra em contato com o colonizador. Sardento, marinheiro português, tem caso com uma negra de Ilhéus e nasce-lhe um filho, Caúla, que cresce sem pai, pois Sardento abandona a família para correr o mar. Esteve em Angola, onde teve uma filha em Luanda. Caúla cresce e segue os passos do pai, depois que sua mãe morre. Em Luanda conhece a irmã, mas não sabe de quem se trata. Depois vai a Moçambique, onde tem um caso com uma adolescente na Beira. O caso de amor não avança e Caúla retorna a Luanda, onde volta a ter contato com a irmã. Os dois se apaixonam e decidem voltar à Bahia, onde a casa em Ilhéus espera pelos dois. Quando chegam à casa, Sardento lá estava, de volta. Ao descobrir que os dois são seus filhos e estão casados, os mata. Luanda Beira Bahia não é um bom romance, falta-lhe profundidade, já que nas narrativas de Adonias Filho costumam ser curtas. Se o autor enveredasse pelo caminho de uma história de amor, sem supervalorizar o trágico, talvez o romance ganhasse consistência.
                                  paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Adonias Filho. Memórias de Lázaro. 3ª ed, Bertrand Brasil, 1978,168 pp. R$ 33,00
               Corpo Vivo. 32ª ed, Bertrand Brasil, 2001, 134 pp. R$ 35,00
               O Forte. 10ª ed, Bertrand Brasil, 2002, 160 pp. R$ 33,00
               Léguas da Promissão. 4ª ed, Civ. Brasileira, 1975, 147 pp.
                                   Esgotado. Preço médio nos sebos de R$ 10,00  
               As Velhas. Bertrand Brasil, 2004, 160 pp. R$ 37,00
               Luanda Beira Bahia, 2ª ed, Civilização Brasileira, 1975, 144 pp.
                              Esgotado. Preço médio nos sebos R$ 10,00