domingo, 14 de setembro de 2014

Dois rios

Há um grão de loucura em Marie-Ange que me atraiu de forma arrebatadora. No princípio, não conseguia identificá-lo com exatidão, apenas sabia que ele existia e me tirava de onde eu permanecera nos últimos anos. Seu corpo pequeno, sua pele alva, seu cabelo não seriam propriamente belos não fosse esse grão de loucura. Foram seus detalhes pouco usuais, seus pequenos defeitos que me encheram de vontade de me aproximar e descobrir de onde vêm. Eu tinha apenas os indícios: a boca que entorna com o cigarro, o despudor ao falar, o jeito desengonçado de andar, o corpo solto.
Da areia, vi-a entregar-se ao mar como se a existência começasse no momento mesmo em que ela entrava na água, como se a vida pulsasse ali e o instigante valesse mais do que toda uma história. A sua liberdade escancarada me comoveu.

Dois rios, dois irmãos gêmeos, duas ilhas - Ilha Grande na vila de Dois Rios, onde se situa o presídio que abrigava presos políticos; Nonza, na Córsega, onde vivem os pais de Marie-Ange.
Na década de 70, em plena ditadura no Brasil, o pai de Joana ia toda semana visitar seu irmão, preso por questões políticas, e numa dessas visitas conheceu sua mãe, filha de um policial. Ela, de classe média baixa, católica, educada para casar e ter filhos. Ele, rico, ateu, criado para se dar bem na vida. Nenhum dos dois conseguiu cumprir nem descumprir seus destinos, eles apenas se esqueceram de ser felizes.

Foi Marie-Ange quem tirou Joana (a protagonista da primeira parte de Dois Rios) de uma casa repleta de histórias tristes, de dor e culpa, onde viu sua mãe perambular dia e noite, tomando cuidado para não pisar no rejunte que une os tacos de madeira do piso, conferindo se o garfo e a faca estavam na distância exata do prato, trocando de sabonete a cada vez que lavava as mãos. Onde também  viu sua mãe escutar por horas a fio "Ne me quitte pas", a música que seu pai costumava cantar para ela e que depois de sua morte a fazia chorar. Sua mãe cultivava essas lágrimas fugindo para um universo  onde acabou vivendo seus dias. A morte do pai tornou a vida de Joana e seu irmão frágil e vaporosa. O elo entre os dois se rompera de forma tão abrupta, que agora Joana passa a duvidar da sua memória.

Antônio, irmão de Joana, é o protagonista da segunda parte do romance de Tatiana Levy.  Aos 22 anos, Antônio  terminou a universidade e foi fotografar pelo mundo. A vida lhe parecia estreita no apartamento em que morava em Copacabana  e deixou a irmã com a mãe e a culpa.A reconciliação parecia cada vez mais improvável. Antônio, que conhecera Marie-Ange no Brasil, quando estava com a irmã, acaba se apaixonando pela francesa, indo morar com ela numa aldeia da Córsega, tendo essa relação marcado profundamente a vida dele também.


                           paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Tatiana Salem Levy. Dois rios. 2ª ed.,  Rio, Record, 2013, 224, pp, R$ 37,00

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