domingo, 18 de maio de 2014

Manoel de Barros, o poeta que queria ser lido pelas pedras

Manoel de Barros, poeta mato-grossense que revela a natureza e o homem pantaneiros através do verso, acredita que é necessário desver o mundo. Para isso, é preciso gostar das palavras quando elas perturbam o sentido  normal das ideias. Porque só os absurdos enriquecem a poesia. Para o menino criado no meio da mata, o conhecimento não era de estudar em livros. Era de pegar, de apalpar, de ouvir e de outros sentidos. As palavras se juntavam a ele para comunicar não através da sintaxe, mas por amor.  Ele queria o arpejo, o canto, o gorjeio das palavras. Hoje, adulto, confessa que também das percepções primárias nascem os arpejos e canções e gorjeios. A infância da palavra já vem com o primitivismo das origens, do absurdo divino das imagens: o menino que regava o rio para que os peixes pudessem sobreviver; passar a mão na bunda do vento; Bernardo armou sua barraca na beira de um sapo. A palavra não precisa significar, é só entoar.   O poeta não pode explicar as imagens, porque explicar afasta as falas da imaginação. O que Manoel de Barros quer fazer é brinquedo com as palavras. Fazer coisas inúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora. Poesia é coisa-nada. Se o nada desaparecer, a poesia acaba.

A Editora Leya acaba de lançar Manoel de Barros - poesia completa, com todos os livros publicados pelo autor, incluindo os livros de poesia infantil, mais um poema inédito de 2013.

O poeta que enaltece a 'vagabundagem profissional' e o estar à toa tem para si um sentido especial de ócio. Estar consigo, com sua imaginação, suas leituras e prazeres solitariamente, é o seu ócio. Para ele, a poesia esteve presente desde muito cedo no olhar do menino para as pessoas e coisas do seu entorno.
Ele já era um senhor de mais de 70 anos quando Millôr Fernandes descobriu seus poemas e escreveu uma crítica fazendo estardalhaço sobre certo poeta 'de verdade' que o Brasil precisava conhecer. 
  
Manoel, que nasceu em Cuiabá e foi menino para o Pantanal, viveu quase 40 anos no Rio de Janeiro. De lá, migrou uma vez mais para o Pantanal, para suceder ao pai na administração da fazenda de gado da família. Dez anos à frente da fazenda e o poeta quis mudar de novo. Foi com a mulher e os três filhos para Campo Grande, sua atual morada e onde escreveu quase todos os seus livros.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Melho do que falar do processo criativo de Manoel de Barros, é ler seus poemas, dos quais selecionei alguns:

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

 Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.


 INSTANTE ANUNCIADO

 Um chapéu velho!
Eu não via seu rosto, que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei que não chorava
E nem tinha desejo de falar.
Porque sabia que alguma coisa vinha chegando
De manso, alguma coisa vinha chegando...
Eu não via seu rosto,
Seu rosto sombreado que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei como ele amou aquele instante
Mas sei com que prazer ele esperou
Aquela que viria com os lábios úmidos para ele
A que havia de vir passar as mãos
Pelos seus joelhos feridos.


A ESPERA

Vejo sempre um homem ao lado das casas,
Olhando-as de frente como se elas fossem pessoas íntimas.
Vejo-o passando pelas casas comovido, afagando as mais pobres,
Satisfeito com a paz que lhe transmitem.
Vejo um homem caminhando pequeno na rua sem nome.
Vejo-o com o seu ocaso e o seu casaco de iodo às costas.
Vejo a erva depois crescer na pedra, e vejo, no coração,
O amor germinar como um rápido clarão na tempestade.
Esse homem não sabe como agradecer a penumbra que o esconde.
Vejo-o tocando com os seus dedos uns objetos esquecidos na tarde...
Vejo-o depois andar sobre a cidade errante como os cães vagabundos
E adormecer nas pedras junto ao mar.


MUNDO PEQUENO

I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
      maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
      com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
      besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
                                                           Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os
      ocasos.   

DESEJAR SER

2.

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava deter
uma perna mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho
farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc
ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar
para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc
toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do eu.



RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA

I

Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam as árvores por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol.

ASCENSÃO

 Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, como t, em latim.)
Como não ascender até a ausência da voz -
Lá onde a gente pode ver o próprio feito do verbo -
ainda sem movimento.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A Escutar
os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!


POEMAS RUPESTRES

5.

Com aquela sua maneira de sol entrar em casa
E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais -
como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio.
Depois o menino achou na beira do rio uma pedra
canora.
Ele gostava de atrelar palavras de rebanhos
diferentes
Só para causar distúrbios no idioma.
Pedra canora causa!
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.

                                               paulinhopoa2003@yahoo.com.br

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Manoel de Barros. Poesia completa. SP, Leya, 2013, 480 pp., R$ 54,90

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      

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