Eu me lembrava do Invetral 2.500 sempre que contava para mim
mesmo como havia sido a farra no hospital, relação hospital-remédio mais que
uma relação com o rótulo vermelho do Invetral 2.500?, eu não sabia, o vidro de
Invetral 2.500 eu havia deixado no carro, talvez fosse hora, decidi pagar a
conta (do bar) e ir até o carro, naquele momento um sujeito de óculos de uma
lente escura e uma clara aproximou-se do balcão, parou ao meu lado, fez um
pedido e enquanto esperava ser servido virou-se para mim e perguntou: posso
fazer uma pergunta?
Demorei para dizer alguma coisa porque fixei as minhas
atenções nos óculos dele, a primeira impressão era que o sujeito não teria
necessidade de usar óculos com uma lente escura e uma clara, a primeira
impressão foi que ele chamaria a atenção mesmo sem óculos com lentes
diferentes, talvez eu tenha imaginado o sujeito sem óculos com lentes
diferentes, talvez eu tenha imaginado o sujeito sem óculos com um olho escuro e
um claro, pode ter sido, pode não ter sido, passou algum tempo e o sujeito
sentiu demora ou hesitação, e repetiu a pergunta: posso fazer uma pergunta?
Depois que ele repetiu a pergunta, fiz uma pergunta para mim
mesmo: por que alguém pergunta se pode fazer uma pergunta?, porque duas perguntas
em vez de uma?, cogitei perguntar para ele se poderia fazer uma pergunta e
perguntar sobre os óculos com lentes diferentes, novamente demora ou hesitação,
o sujeito repetiu a pergunta: posso fazer uma pergunta?
Achei melhor responder logo porque minhas reflexões sobre
perguntas estavam sendo interrompidas pelas perguntas dele e isto poderia
acabar me irritando, eu me lembrava de que naquele momento emiti um sorriso
porque considerei engraçado o que eu havia pensado, ele percebeu o sorriso,
deve ter creditado o sorriso a uma tentativa minha de ser simpático, sorriu
também e repetiu a pergunta: posso fazer uma pergunta?
Pode sim, pode, é claro que pode, é evidente, fui repetindo,
e ele tendo recebido a resposta da primeira pergunta não fez o esperado, a
segunda pergunta, em vez dela fez um comentário, uma introdução à segunda
pergunta, a segunda pergunta tinha uma introdução, eu pensei, deveria ter
imaginado, eu pensei, então ele fez a introdução à segunda pergunta: é uma
velha mania.
Eu me lembrava de que a frase me pareceu mesmo como uma
introdução à segunda pergunta, introdução como preparação para alguma coisa que
poderia me surpreender?, ele acreditava que a segunda pergunta me
surpreenderia?, a segunda pergunta me surpreenderia mais que os óculos dele?,
então ele fez a segunda pergunta.
Que horas são?, ele disse.
Ao ler Encrenca, de Manoel Carlos Karam, achamos que compreendemos tudo, mas acabamos vendo que tudo acontece sem acontecer : as frases contêm uma expectativa que não se concretiza
nunca. O absurdo aparece como se fosse uma coisa natural. Encrenca começa e termina no nada. O estranho é real,
numa prosa bem humorada e aparentemente sem pé nem cabeça que poderá causar um
desconforto no leitor desacostumado com a prosa engenhosamente elaborada, com
um pé no absurdo. Mas não se trata de uma prosa difícil. Ela prende o leitor desde o início. É impossível passar por suas páginas sem dar
algumas gargalhadas, devido ao humor refinado de Karam.
Manoel Carlos Karam (1947/2007) é quase desconhecido do
público leitor. Era catarinense radicado em Curitiba. Há quem disse que a
literatura de Karam faz um bem danado para as ideias. Encrenca
funciona como um drinque delicioso para atiçar a inteligência. Adorei!
paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Manoel Carlos Karam. Encrenca. SP, Ateliê /Imprensa Of. do Paraná, 2002, 160
pp., R$ 34,00
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