domingo, 17 de agosto de 2014

A costa dos murmúrios

A fotografia seguinte representa uma árvore alta, sem folhas, como se realmente queimada, e um grande galho donde pende o negro, pelo pescoço, baloiçando sem camisa. A seguinte tem a mesma árvore, o mesmo galho, o mesmo negro, mas agora nem tem nem calças nem camisa. O negro baloiça no galho da árvore, rodeado por soldados. Helena segura a fotografia. "Disse o Jaime que as calças dele escorregaram e que ejaculou para cima do capim, em frente dos soldados portugueses! O Jaime diz que nunca mais acontece - agora vão amarrar sempre as calças de quem for enforcado, para se pouparem a cenas dessas!" - disse ela. "Passe" - disse, com um olho na porta outro na janela. Passou outro pacote (...) que dizia Víbora Venenosa. Eram imagens de incêndios, aldeias em chamas, sem qualquer referência. O fotógrafo deveria gostar dos rolos de fumo. As seguintes tinham referência, localização, e número de palhotas destruídas - destruídas trinta, oitenta e três... Também traziam coordenadas. Agora no meio das palhotas incendiadas havia soldados correndo. Adiante, novo pacote. Estávamos sentadas num sofá de pano onde Helena ia empilhando e desempilhando. Helena mostrou-me com precaução o pacote que dizia spoilt como os outros e Víbora Venenosa III. Mais rostos, mais cabeças de soldados escondidos entre sarças, mais incêndios, e logo a imagem dum homem caído de bruços, depois dois telhados, e sobre um dos telhados de palha, um soldado com a cabeça dum negro espetada num pau.  Viam-se vários corpos sem cabeça à beira duma chitala, um bando de galinhas avoejava sobre eles na mesma fotografia. Helena passou. Helena tomou a seguinte e mostrou o soldado em pé, sobre o caniço. Via-se nitidamente o pau, a cabeça espetada, mas o soldado que a agitava não era um soldado, era o noivo. Helena de Tróia disse - "Vê aqui o seu noivo?" Ela queria que Evita visse. Era claro como a manhã que despontava que Helena de Tróia me havia trazido até àquela divisão da casa para que eu visse sobretudo o noivo.

Essa é uma das muitas cenas inquietantes em que se vê portugueses em meio às atrocidades da guerra em Moçambique. É a fase final da guerra, quando a nação africana prepara sua independência. A costa dos murmúrios, de Lidia Jorge, apresenta em sua estrutura duas narrativas. A primeira, Os Gafanhotos, é uma narrativa curta que termina com um FIM.  Trata-se da comemoração do casamento do alferes português Luis Alex (o da foto com a cabeça do negro) e sua noiva, Evita, durante uma trégua nos combates. Um cortejo de convidados dança e se diverte num clima eufórico no terraço do hotel Stella Maris, enquanto um fotógrafo registra as cenas da festa. Enquanto isso acontece no hotel, uma aglomeração de cadáveres de negros aparece na praia, recolhidos em caminhões de lixo.  Também acontece uma praga de gafanhotos e a morte do noivo de Evita. A segunda, que ocupa as demais páginas do romance retomam e desvendam uma série de imagens da primeira página, contada por vários personagens, sendo Evita uma delas. A morte misteriosa do noivo revela uma relação de adultério.

Se o leitor conseguir deixar de lado o estilo encaixado, com a colocação dos pronomes rigorosamente respeitados, vai se deixar envolver pela prosa criativa e inquietante de Lídia Jorge, que vem crescendo na literatura portuguesa e universal. Outro romance dela, A Noite das mulheres cantoras será comentada adiante, quando abordarmos a lista de livros recomendados pelo vestibular da UFRGS.
A obra em papel encontra-se esgotada. Pode ser encontrada em sebos por um preço médio de 40 reais um exemplar em bom estado de conservação.

                                           paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Lídia Jorge. A costa dos murmúrios. Rio, Record, 2004. 290 pp, 

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