domingo, 24 de agosto de 2014

Miserere

Miserere, o livro recém-lançado de Adélia Prado, é um diálogo com a divindade. O problema religioso sempre aparece em sua obra, mas não é a fé que a faz fazer poesia. Escrever versos faz parte da sua condição humana, é ela inteira que produz poesia. Aos 40 anos sentiu que precisava trabalhar a palavra: era poeta. Seus poemas são trabalhados com rigor, com o sentido de não trair o que está sentindo, pois detesta enfeites.
Seus versos revelam um sofrimento pessoal que todo mundo tem,  é condição de consciência, assim como a finitude da vida, sua precariedade, a velhice, a doença, a morte, os desconfortos físicos, morais e filosóficos. É preciso dizer um sim para aquela situação. O que alimenta sua poesia é o próprio susto e o próprio espanto que tem da vida. É poeta do cotidiano,  das paixões humanas, da perplexidade de existir. Existir é muito esquisito, ela costuma dizer. O que é, de onde veio, para onde vai são a base do questionamento da existência humana.
Adélia Prado, como sempre tem sido, conversa de forma aberta e afetiva com o leitor. Não acredito que exista alguém, mesmo ateu, que não goste de seus poemas. Sua poesia ecoa em todos os cantos.É linda! 

Deguste:

Branca de Neve

Caibo melhor no mundo
se me dou conta do que julgava impossível:
'Nem todo alemão conhece Mozart.'

Um óbvio, pois nem é preciso, 
cada país tem seu universal
e basta um para nos entendermos.
Com os russos me sinto em casa,
não podem ver uma névoa,
uma aguinha, uma flor no capim
e param eternos minutos fazendo diminutivos.
Como o jagunço Riobaldo que sabe do mundo todo
e tem Minas Gerais na palma da sua mão.
Fico hiperbólica para chegar mais perto.
"Geração perversa, raça de víboras"
não é também um exagero do Cristo
para vazar sua raiva?
Escribas e fariseus o tiravam do sério.
Mas todos eles? Todos?
Cheiramos mal, a maioria,
e sofremos de medo, todos. O corpo quer existir,
dá alarmes constrangedores.
Me inclino aos apócrifos como quem cava tesouros.
É evangélico que trabalhem cantando
os anõezinhos da história.
No fundo todos queremos
conhecer biblicamente,
apesar de que os pés de página,
por mania de limpeza,
não é sempre que ajudam.
O verdadeiro é sujo,
destinadamente sujo.
Não são gentilezas as doçuras de Deus.
Se tivesse coragem, diria
o que em mim mesma produziria vergonha,
vários me odiariam,
feridos de constrangimento.
Graças a Deus sou medrosa,
o instinto de sobrevivência
me torna a língua gentil.
Aceito o elogio
de que demonstro 'tino escolhitivo'.
Pra quem me pede dou lista de filme bom.
Demoro a aprender
que a linha reta é puro desconforto.
Sou curva, mista e quebrada,
sou humana. Como o doido,
bato a cabeça só pra gozar a delícia
de ver a dor sumir quando sossego.


                                 paulinhopoa2003@hotmail.com
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Adélia Prado. Miserere. Rio, Record, 2013, 96 pp, R$ 25,00

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