domingo, 21 de dezembro de 2014

A máquina de fazer espanhóis

valter hugo mãe disse em um programa de televisão que escolheu o nome mãe como uma coisa literária de completude. Sempre esteve convencido de que as mulheres, através da maternidade, experimentam o extremo da humanidade: não há nada que um ser humano possa fazer de mais milagroso do que a multiplicação, de desdobrar seu corpo em dois. os homens são a parte fraca da humanidade, pois há uma lacuna, um espaço vazio no homem, pois temos uma dimensão afetiva que não fica aproveitada, a menos que tenhamos filhos. a vida é uma coisa terrível, por isso se precisa de epifanias de felicidade que é uma coisa que se perde à medida que se conquista. a felicidade é podermos ser o que somos.

a máquina de fazer espanhóis é a renúncia da felicidade de sonhar, pela consciência da perda. o título refere-se a uma frustração portuguesa contínua, que durou 800 anos de soberania e fez com que os portugueses pensem de vez em quando: se fôssemos espanhóis teríamos uma dignidade de melhor qualidade. a máquina de fazer espanhóis é Portugal. vejamos um trecho emblemático:

antônio jorge da silva está diante do corpo da mulher morta que não lhe diria mais nada, por mais insistente que fosse o seu desespero, sua necessidade de respirar através dos seus olhos, sua necessidade vital de respirar através de seu sorriso. ele e sua mulher morta que se demitia de continuar a justificar-lhe a vida e que, abraçando-lhe como podia, entregava-lhe tudo de uma só vez. e ele, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do medo e recomeçava a gritar.
com a morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante. caí sobre a cama e julguei que fui caindo por horas, rostos e mais rostos colocando-se diante de mim, e eu por ali abaixo, ainda, sem saber de nada. quando, por fim, me levantei, estava a anos-luz do homem que reconheceria, e aprender a sobreviver sos dias foi como aceitar morrer devagar, violentamente devagar, à reveia de tudo quanto me pareceria menos cruel. e a natureza, se do meu coração não se esvaziou o amor pela laura, estaria numa aniquilação imediata para mim também, poupando-me à miséria de ver o sol que arde sem respeito por qualquer tragédia.

um problema com o ser-velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento,a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas a alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança que se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige. e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distração cada vez maior, na perda de reflexo e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos estupidez. fazemos por descoordenação entre o que está certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certou ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós.

enquanto alguns velhos queriam acreditar que a saúde não lhes faltaria e que poderiam concretizar muitos projetos, antônio jorge da silva não concebia o que era chegar àquela idade e ter projetos. o seu projeto era esquecer tudo, era protestar contra a morte de laura convencendo-se de que, depois da morte de alguém que nos é essencial, ao menos a memória do amor deveria ser erradicada também.

a máquina de fazer espanhóis, assim como outros livros do autor é escrito todo ele em minúscula, como forma de colocar tudo no mesmo pé de igualdade. Ele abandonou esse recurso nos livros mais recentes.

               paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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valter hugo mãe. a máquina de fazer espanhóis. sp, cosac naify, 2013, 256 pp., R$ 39,00

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