domingo, 15 de maio de 2011

A fala e a escrita

No dia 13 de maio, o Jornal Nacional noticiou a polêmica que um livro didático recomendado pelo Mec para a EJA estaria causando por aí, a de afirmar que não existe o certo e errado na língua, mas o adequado e inadequado. A matéria exemplificou um trecho do livro que mostrava, através de um diálogo indireto, que se pode falar “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” , sem que isso possa ser visto como um erro. Sob o olhar da linguística, o “os” marcaria o sentido plural da idéia, não sendo necessário flexionar todas as demais palavras no plural(na frase, com exceção do verbo). É muito comum, na fala informal, expressões dessa natureza. Não é por burrice que se fala “os livro”, mas por economia de linguagem. No inglês isso é comum, faz parte da estrutura da língua. No português não é assim, existem as flexões, porque existem as concordâncias. Sem fugir ao fato de não ser erro, linguagem dessa natureza (e outras como “tu fez”, “tu mandou” – típico do linguajar gaúcho) não poderia ser considerada errada, já que a maioria (incluindo-se os intelectuais) falam dessa maneira, informalmente. Entretanto, se o Jornal Nacional tivesse publicado o restante do parágrafo de onde extraíram o trecho para criticar o Mec (o trecho integral do livro está transcrito no final da crônica), talvez não houvesse essa pendenga toda. Os autores não afirmam que se deve ensinar a falar errado na escola, como alguns âncoras de jornais da tevê mencionaram. Aliás, como se publicaram bobagens a respeito! Muitas pessoas que não tinham lido o livro, menos ainda as páginas do livro em que se baseou a reportagem, saíram vociferando a torto e a direito.
Deve-se aproveitar e valorizar a oralidade no aprendizado da língua escrita, sim. Assim como deve ser explicado que a fala existe, mas que há outra maneira de se dizer a mesma coisa, utilizando-se da língua culta padrão (o educador deve ter presente o aspecto político da questão, para não incorrer no erro de admitir que se fala certo ou errado). Quando se trata de didática, é importante ressaltar que a fala é uma coisa e a escrita é outra coisa. A escrita é a representação da fala, mas não é só isso. A escrita é mais complexa (e incompleta)que a fala.A gramática normativa ensinada na escola é um sistema de conservação da estrutura do português. O que acontece muitas vezes, é que variedades da linguagem oral passam a ser usadas por muita gente, passam a ser escritas por muita gente. E o que a norma culta padrão faz: a incorpora na linguagem escrita padrão como correta. Algo que poderia ser considerado errado noutros tempos, hoje não é. Lembram de o soja (que era o certo) e a soja (o errado). Hoje as duas estão certas, porque todos falaram tanto a soja e escreviam a palavra como feminina, que o termo virou substantivo e foi aprovado à norma padrão sem problemas. Atenção! Não estou querendo insinuar que os livro seria correto na linguagem escrita. Pelo menos por enquanto!
As pessoas entram na escola para aprender e ler e a escrever. Falar elas já sabem, formulam sua própria gramática e dela depreendemos razões coerentes para explicar determinados usos específicos de determinado grupo, que se constituem dialeto, linguagem falada e entendida por determinada comunidade. Na escola, as pessoas vão aprender que as coisas que se falam de uma maneira, podem ser escritas de outra. O erro, portanto, existiria na escrita, não na fala. Quanto mais as pessoas estudam a língua, vão aprendendo a falar a língua culta padrão, que é a língua ditada pelas regras gramaticais da escrita (que é a língua do poder, não nos esqueçamos disso). E a discernir que “os livro”, na sua comunidade falante, está adequado, mas que num texto escrito, ou numa linguagem formal, falada em determinada situação, poderá ser inadequado.
Ninguém fala errado, a menos que seja um profissional da fala, como certo jornalista famoso de uma rádio famosa aqui de Porto Alegre, que disse numa entrevista, “tu dissesses”; e outro repórter esportivo que disse num programa de tevê, “o jogador vai vim de Montevidéu na segunda-feira”. Esses estão falando errado, pois estudaram a gramática padrão, e usam o meio de comunicação para se expressar para o todo e não para sua comunidade restrita.
O que a imprensa talvez pudesse ter apontado, é a validade ou não de se tratar a dicotomia linguística e gramática num livro de Eja. O que será que ela queria com isso, hein?
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Agradeço a Tere e Amarildo, de São Leopoldo/RS, pelo empenho para que eu pudesse ter acesso aos livros da Eja.

A quem aprecia o tema da sociolingüística, recomendo dois livros saborosos de ler:
Luft, Celso. Língua e liberdade. Ática, 1998
Bagno, Marcos. Preconceito lingüístico. Loyola, 2009

O texto "A concordância entre as palavras", na íntegra:
A concordância entre as palavras é uma importante característica da linguagem escrita e oral. Ela é um dos princípios que ajudam na elaboração de orações com significado, porque mostra a relação existente entre as palavras.
Verifique como isso funciona:
Alguns insetos provocam doenças, às vezes, fatais à população ribeirinhas.
Insetos (masculino, plural) – alguns (masculino, plural)
Doenças (feminino, plural) – fatais (feminino, plural)
População (feminino, singular) – ribeirinha (feminino, singular)
As palavras centrais (insetos, doenças, população) são acompanhadas por outras que esclarecem algo sobre elas. As palavras acompanhantes são escritas no mesmo gênero (masculino/feminino) e no mesmo número (singular/plural) que as palavras centrais.
Essa relação ocorre na norma culta. Muitas vezes, na norma popular, a concordância acontece de maneira diferente. Veja:

Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.
Livro (masculino, singular) – os (masculino, plural) ilustrado(masculino, singular) interessante (masculino, singular) emprestado (masculino, singular)
Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:
O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:
Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.
Você pode estar perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro’”?.
Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito lingüístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas lingüísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.
Existe outro tipo de concordância: a que envolve o verbo. Observe seu funcionamento:
O menino pegou o peixe. (menino, singular/pegou, singular)
Os meninos pegaram o peixe. (meninos, plural/pegaram, plural)
O menino pegou o peixe. (menino, 3ª pessoa/pegou, 3ª pessoa)
Eu peguei o peixe. (eu, 1ª pessoa/peguei, 1ª pessoa)
Na norma culta, o verbo concorda, ao mesmo tempo, em número (singular/plural) e em pessoa (1ª/2ª/3ª) com o ser envolvido na ação que ele indica.
Na variedade popular, contudo, é comum a concordância funcionar de outra forma. Há ocorrências como:
Nós pega o peixe. (nós, 1ª pessoa, plural/pega, 3ª pessoa, singular)
Os menino pega o peixe. (menino, 3ª pessoa, idéia de plural – por causa do “os”/pega, 3ª pessoa, singular)
Nos dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala.
Por uma vida melhor: Educação de jovens e adultos: segundo segumento do ensino fundamental, volume 2 – SP: Global: Ação Educativa, 2009 (Coleção viver, aprender). Vários autores, PP. 14 a 16)

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