domingo, 8 de janeiro de 2012

A paixão segundo GH

A escrita é um ato de solidão. Ninguém pode fazer nada a ninguém, a não ser o escritor a si mesmo. A escrita literária é pura abstração poética. Uma das funções da linguagem poética é mostrar as coisas que não acontecem no convívio social. GH não tem memória empírica, é pura abstração. Está no quarto de empregada e logo mais num minarete no deserto. Sonha em se objetivar, mas é medrosa: “Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.” (p.8) Mesmo assim insiste, quer escrever sobre o que não tem controle, quer compartilhar sua individualidade. A paixão segundo GH não é um mergulho na loucura nem no inconsciente por si só. É a luta que deve ser a busca com o mundo. Está tentando dar uma forma à sua desorientação. GH quer a objetividade: “Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?” (p.16) Ela precisa dizer, mas não sabe como. Ao entrar no quarto da empregada que se fora, para arrumá-lo, depara-se com uma barata no guarda-roupa. Num impulso prensa o inseto na porta do móvel. Pronto! Deu-se o fluxo do inconsciente. Esse é o ponto de partida para a narrativa introspectiva. A personagem, perdida no exercício da memória, esforça-se para reorganizar o seu discurso, solicitando a atenção do leitor como a mão que a apoiará nessa tentativa de reorganização caótica da memória. No romance quase não há ação externa. Ficamos sabendo que mora sozinha, é independente financeiramente, é escultora, fez um aborto e amou um homem, mas esses acontecimentos externos não são desenvolvidos, não adquirirem importância na obra. O que vale é seu labirinto interior.
A paixão segundo GH pode ser considerado um romance metafísico. Trata-se de um monólogo centrado na experiência da linguagem. O eu e a coisa. GH e a barata (que inicialmente é nojenta). O romance é uma narrativa poética, como já se disse. GH efetua uma busca existencial, própria da poesia. O tempo interior é o que predomina, com suas angústias e seus gestos.
“Viver não é coragem, saber que se vive é a coragem.” (p.20)
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A paixão segundo GH. 6ª ed., Nova Fronteira, 1979, 176 pp

*** Esta crônica é dedicada a Rosa Ibaños, pelo incentivo

Um comentário:

  1. Oi, Paulinho, obrigada pela tua dedicatória, fizeste melhor o meu dia. Meu incentivo é para quem tem talento, tu o mereceste.
    Gostei muito da análise que fizeste. Fiquei com vontade de reler Clarice. Beijo.

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