domingo, 12 de agosto de 2012

O último leitor

O argentino Ricardo Piglia (1940) nos mostra em seu excelente O último leitor, que a obra literária começa e termina nele, no leitor. É aquele que, mesmo lendo mal, mal interpretando, faz o sentido da literatura, é sua tábua de salvação. Um único leitor, o último leitor, chega a sustentar por um momento todo o peso da literatura sobre os ombros.
O primeiro ensaio, “O que é um leitor?”, nos fala de Jorge Luís Borges, um leitor voraz, obstinado por bibliotecas, que perdeu a vista lendo. Borges seria a primeira imagem do último leitor. Ele mesmo disse que “eu sou agora um leitor de páginas que meus olhos já não veem”. Borges foi o leitor perdido em uma biblioteca, que vai de um livro a outro, que lê uma série de livros e não um livro isoladamente. Um leitor disperso na fluidez e investigação de todos os volumes que tem a sua disposição. Depois de cego, Borges passou a escrever, ditando seus livros para a secretária. Aliás, as secretárias tiveram suma importância na vida de muitos escritores. O leitor não é somente o que lê um livro. É o que se perde numa rede de signos. Que lê e relê o mundo de acordo com seu interesse e sua necessidade. A ficção não depende de quem escreve somente, mas de quem lê. A ficção depende do intérprete.
O segundo ensaio, “Um relato sobre Kafka”, discorre sobre a correspondência que Kafka manteve com Felice Bauer, sua noiva, com quem quase se casou por duas vezes, como um grande acontecimento da literatura contemporânea. Nas cartas, escritas entre 1912 a 1917, Kafka narrava à noiva seu processo de escritura e toda sua angústia envolvendo esse processo. Contava, também, de sua vida durante a Primeira Grande Guerra. O interessante é que Kafka manteve sua relação amorosa com Felice através das cartas. Quase nunca se viam. Assim, Felice passava a ser a leitora de Kafka. O leitor mantinha, através da leitora obediente, um mecanismo de controle e sedução.
O terceiro ensaio, “Leitores imaginários”, apresenta-nos o maior representante de leitor da era moderna, o detetive privado das histórias policiais, Auguste Dupin, criado por Edgar Allan Poe, aparecendo em três livros do autor: O assassinato da Rua Morgue, O mistério de Marie Rogêt e A carta roubada. A primeira cena de O assassinato da Rua Morgue se passa justamente numa livraria, onde o narrador conhece ocasionalmente o detetive Dupin, quando os dois estão ali em busca de um mesmo livro, raro e magnífico. Não sabemos qual é o livro, mas o que ele representa: aproximar os dois personagens. Desse encontro, surge a história policial.
O homem da era moderna relaciona-se com o mundo, através de um tipo específico de saber. A leitura funciona como um modelo geral de construção de um sentido para o leitor. Por exemplo, quando você era estudante universitário, qual era sua tendência política dentro da faculdade, que tipos de leitura você tinha acesso e que relação elas poderiam ter com sua atuação política? A indecisão de um intelectual pode ser sempre a incerteza da interpretação, das múltiplas possibilidades de leitura. Pode haver uma tensão entre o ato de ler e a ação política. O quarto ensaio, “Ernesto Guevara, rastros de leitura”, expõe ideias sobre a importância da leitura na formação intelectual do militante Che Guevara. Ricardo Piglia nos fala, por exemplo, de uma cena envolvendo Che Guevara ferido na luta em Cuba, pensando que iria morrer ali. Che recordou-se de um conto que havia lido, de Jack London, em que o protagonista, apoiado sobre uma árvore se dispõe a por fim a sua vida de maneira digna, ao saber-se condenado à morte. A literatura teve naquele momento, para Guevara, um sentido de reflexão existencial.
No quinto ensaio, “A lanterna mágica de Ana Karenina”, o ensaísta nos fala da relação da leitura com a formação do sentido, com a afetividade, com a tradição e com o desenvolvimento do romance de Tolstoi, Ana Karenina. É a época em que as mulheres são as grandes consumidoras da literatura. A partir da geração romântica, as mulheres passam a personificar a figura do leitor moderno. Os romances que se originaram dos folhetins, eram escritos em capítulos de jornal justamente para as mulheres. Ana Karenina lê seu romance num trem de Moscou a São Petersburgo. Nesse trem está o homem que ela vem a conhecer ali e que se tornará seu amante, levando-a à desgraça e ao suicídio. Ao ler seu romance, Ana Karenina identificava-se com a vida das personagens, tendo a ilusão de realidade que faltava a sua vida monótona com o marido. O protótipo da mulher como protagonista na literatura, era o de adúltera.
O último ensaio versa sobre “Como está construído o Ulysses”, uma das grandes obras-primas do romance moderno, que pouquíssimas pessoas leram, pelo alto grau de complexidade da obra. Eu tentei a tradução de Antonio Houaiss e parei na página 548, de 850, por ter perdido o fio da meada. Agora comprei a tradução de Caetano Galindo, pela Penguin Companhia, para nova tentativa. Parece ser mais acessível. Neste ensaio, Piglia nos diz que não existe o texto fechado e perfeito. O verdadeiro leitor lê com a certeza de que o livro não estará suficientemente terminado. Qual sua utilidade e seu valor? Joyce escreve a epopeia de Bloom em 24 horas, na cidade Londres, baseada na epopeia homérica de Ulisses. A obra literária tem sempre uma correlação com outra já existente, que se renova ou se transforma, no caso de Ulysses.
Aconselharia ao leitor dessa crônica que se aventurasse a um voo mais alto, buscando ler a O último leitor. Pode surgir uma dúvida ou outra, nada que o Google não resolva. É de leitura acessível e instigante.

Ricardo Piglia. O último leitor. SP, Cia. Das Letras, 2006, 192 pp. R$ 44,50

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