domingo, 23 de setembro de 2012

A literatura dramática de Samuel Beckett

Uma peça de teatro, quando lida ou mesmo recitada, é literatura. Na literatura, é a palavra que constitui a personagem. Quando representada, passa a ser teatro. Se na literatura a palavra é fonte da personagem, no teatro é fonte da palavra, graças à interpretação do ator em personagem fictícia, de acordo com a presença viva do homem no palco, visando comunicar-se ao vivo com seu público. A literatura dramática é muito menos lida que as obras narrativas. Publicam-se muito poucos textos dramáticos. É pena. Ler uma peça de teatro é uma delícia! O tempo de leitura não excede muito o tempo que a peça teria, se montada. Recentemente li três textos fundamentais de Samuel Beckett: num, dois vagabundos maltrapilhos à sombra de uma árvore esquálida, sozinhos no meio do nada; noutro, um cego paralítico e seu criado coxo confinados num interior austero e cinzento; e noutro, uma mulher vaidosa na meia-idade, enterrada até a cintura numa colina seca, sob um sol escaldante.

Escrita em francês em 1949, no pós-guerra de Paris, Esperando Godot foi feita para ser encenada por quatro atores e um menino num palco quase vazio, não fosse por uma árvore quase seca e uma lua ocasional. Dois vagabundos, Vladimir e Estragon, perdidos em meio à paisagem deserta, querendo partir, mas presos a um compromisso tão impreciso quanto inarredável, a espera por Godot. Para matar o tempo, os dois decidem praticar uma conversação, ou representando a peça dentro da peça, com as presenças de Lucky e Pozzo. Realiza-se uma pantomima. Em determinado momento, Lucky entra em cena puxando Pozzo por uma corda. Pozzo carrega uma maleta de que não se desfaz nunca. Se o elemento essencial do texto teatral é a ação, o que se passa aqui é a ineficácia da ação, optando pela apatia melancólica como estratégia de sobrevivência, da espera infinita, da esperança vã sem objetivo definido. A peça de Beckett por isso é inovadora, obrigando a redefinir o que se entende por drama.

As personagens de Fim de partida estão às voltas com a tarefa de acabar de existir, em um cenário que é um abrigo feio e quase sem luz, em que seus quatro habitantes, Hamm, Clov, Nagg e Nell, vivem como se fossem os últimos sobreviventes de uma humanidade destruída. A proximidade enganosa do fim está não apenas na escassez de meios (tudo no abrigo está acabando: remédios, provisões, bicicletas), mas também na decrepitude física dos personagens: um cego paralítico, um coxo, dois mutilados presos a latas de lixo, e na rotina vazia que custa a preencher o tempo de espera, completamente desprovido de esperança. O girar falso do relógio sintetiza o tédio a que são submetidos os personagens, apegando-se a rituais e hábitos cuja única finalidade é matar o tempo. A relação entre o par central, Hamm e Clov, é a de opressor e oprimido. Para evidenciar o jogo que se estabelece entre eles, Beckett opta por padrões quase geométricos: aos cinco risos de Hamm na abertura da peça, correspondem cinco bocejos de Clov; se Hamm tem a cadeira de rodas, Clov tem a escada; enquanto Hamm se esconde atrás dos óculos, Clov espia sua vista através da luneta; ao apito que Hamm emprega para chamá-lo, Clov responde com o despertador. Hamm submete Nagg e Nell, seus pais, a viver dentro de latões de lixo, impingindo-lhes rotinas sádicas, com o fim de provocar-lhes dor e humilhação.

Composta em 1961, Dias Felizes retrata Winnie no primeiro ato enterrada até a cintura e no segundo ato até o pescoço, exercitando um monólogo, já que seu marido, presente em cena de forma discreta, é apenas seu ouvinte. A solidão é o tema da peça. Winnie está enterrada sob um céu escaldante, tendo consigo uma sombrinha para protegê-la sem sucesso do sol e uma bolsa onde traz seus objetos de higiene pessoal. A parte visível de Winnie mostra uma mulher bem vestida, maquilada e enfeitada, que faz sua toalete diária como se fosse algo comum diante dessa situação inusitada. A fala de Winnie mostra o contraste irônico entre o que se passa na realidade e o que ela diz. Implorando respostas do marido que não vêm, está só e abandonada, procurando preencher sua solidão com gestos de tirar e usar objetos de sua bolsa, e com palavras para distrair o silêncio. O texto nos faz pensar: seria Winnie otimista, já que ela começa sua fala dizendo, “mais um dia celestial! Jesus Cristo amém.”? Ao finalizar seu monólogo, ela diz: “Ah, que dia feliz, este terá sido mais um dia feliz!” Acho que Beckett não escolheria o caminho mais fácil para Winnie. Os personagens de Beckett estão presos numa armadilha, de um tipo ou de outro. Em Dias Felizes, o que cabe a Winnie é uma colina de terra crestada. Ela encarna os despojos de uma vida enterrada numa cova prematura. Enterrada na terra, comida por formigas, castigada pelo sol, pela falta de memória e pela indiferença do marido, se manteria ainda otimista?
Em Beckett, a dignidade do ser humano é desmascarada, revelando-lhe suas condições precárias. O guarda-chuva de Winnie, cuidadosamente elaborado para protegê-la do calor, incendeia-se pelo sol. Os vagabundos de Esperando Godot são andarilhos forçados, incapazes de comunicar-se com o restante da humanidade, são contemporâneos da ficção e drama desses anos de pós-segunda guerra mundial. O velhos de Fim de partida poderiam partir, mas preferem se manter presos. Portadores dos despojos da civilização, convertidos em trastes, passam e repassam sua existência vazia de significados. O efeito disso tudo é avassalador, cômico e inquietante a um só tempo.

Muito do que que digo aqui, referente ao “viés filosófico” da dramaturgia de Beckett, vem dos textos introdutórios de Fábio de Souza Andrade (Tradutor das três peças que li).
===========================
Samuel Beckett. Esperando Godot. SP, Cosac Naify, 2005. 244 pp. R$ 69,00
Fim de partida. SP, Cosac Naify, 2010, 160 pp. R$ 59,00
Dias felizes. SP, Cosac Naify, 2010, 136 pp. R$ 59,00

Nenhum comentário:

Postar um comentário