domingo, 28 de julho de 2013

O amor acaba


O lirismo na prosa, fácil de encontrar em mulheres escritoras, também permeia a alma masculina de Paulo Mendes Campos. Em O amor acaba, estão compiladas as melhores crônicas do autor mineiro, que também foi poeta, cujo tema é a divagação existencial da natureza humana. Ser cronista, para Paulo Mendes Campos, é frequentar os bares, habitar todos os lugares, promover misturas, enamorar-se do mundo. Ser cronista é dar à literatura as janelas sem as quais ela não teria vida. É adotar o ponto de vista dos cegos e dos bêbados. É adorar o impossível, reinstaurar a desordem, viver entre a beatitude e o horror. Ser cronista é esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto, é anunciar desolações, como fazem os profetas. É defender o homem contra seu destino obscuro. É amar “todos os serzinhos humanos” e ainda mais os passarinhos. Ser cronista não é apenas embalar o leitor com algumas doses de lirismo, ou diverti-lo com ditos espirituosos, mas atormentá-lo muitas vezes com desilusões, puxões de orelha e socos no estômago. Ser cronista é, a despeito de si mesmo, amar a vida – e escrever sobre seus dissabores, mesmo consciente de que “a vida não vale uma crônica”.

Na crônica que dá título ao livro recém-lançado pela Companhia das Letras, o cronista nos diz, O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
 
                                 paulinhopoa2003@yahoo.com.br
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Paulo Mendes Campos. O amor acaba. SP, Cia. das Letras, 2013, 286 pp. R$ 39,00

2 comentários:

  1. O plural de SERES é serezinhos! Não é serzinhos! - Note que serzinho é o plural de SER. - José Fernandes Costa - Recife./.

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  2. Olá, José. O autor marcou “todos os serzinhos humanos” entre aspas, para delimitar o sentido da oralidade que ele transpôs para a escrita. Foi um erro proposital de Paulo Mendes Campos. Obrigado pela observação e pela visita ao blog. Abraço

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